quarta-feira, 6 de novembro de 2013

8- A fábrica de Zé Coxo

O Zé Coxo, na voz do povo, era corno da sua própria cunhada. O Zé Coxo e os que dormiam com ele não iam à Missa. O padre bem tinha falado do alto do altar em avisos do Alto e em eventuais castigos. Pois não é que Zé Coxo tinha escrito no destino a sina da desgraça!
As bocas das barcas (as tais de que se chegou a pensar terem engolido o desaparecido Laurindo) onde se despejava a resina estavam sempre abertas. O trabalho de Zé Coxo, e de mais meia dúzia, era o de com a ajuda de ferramentas adequadas, sacar, através das bocas localizadas no dorso dos barris, a resina viscosa, para as barcas. Este trabalho era feito com os pés um metro abaixo do nível do estaleiro em cujo pavimento estavam abertas as bocas para a descarga. Zé Coxo, como os companheiros, repetia isto muitas vezes ao dia, subia os cinco degraus para o parque onde estavam os barris e rebolava um para a sua boca de serviço.
Foi numa dessas repetidas manobras que a perna que lhe falhava o atirou em desequilíbrio para dentro da sua boca de trabalho. Os colegas prontamente acorreram para lhe dar a mão enquanto ele se afundava na resina branca. A mão escapou-se. Deram-lhe à mão um cabo de ferramenta mas, como o diabo lha fizesse soltar, viram-no afundar-se e desaparecer como nos filmes se vêem as cenas nas areias movediças. Naturalmente, seguiu-se o pânico. Nada a fazer. A resina saía da barca por uma torneira de mais de dez polegadas mas, esvaziá-la, demoraria dias, além dos grandes prejuízos que acarretaria. Talvez os bombeiros tivessem bombas que fizessem o transvaze para a outra barca que estava quase vazia! E assim foi, durante o resto do dia e noite fora até que o corpo do pobre se distinguiu no fundo do tanque enlameado de resina.
Não existiam posses que possibilitassem que o corpo de Zé Coxo fosse transportado para a sua Beira Baixa para aí descansar em paz. Um grupo de rapazes foi buscar a carreta ao cemitério que distava dali quatro quilómetros. Deixaram-me ir também. O defunto foi a enterrar entre os ais de Canicha, as lágrimas de Laurinda, os soluços de Laurindo, os lamentos dos colegas de trabalho e o acompanhamento de toda a aldeia. Registe-se que a ausência do padre, que se recusou a fazer a cerimónia religiosa, não impediu o cortejo de todo o povo crente para encomendar a alma do desgraçado. Comentou-se até, em provocatórias conversas de insubmissão à Católica e Apostólica Romana, que Zé Coxo se estaria nas tintas para isso. Aliás, fora ele, que em brincadeiras de desejos de “quando eu morrer” dizia:
- Quando for eu façam um churrasco com a minha carne e não esqueçam que ela já vai temperada com vinho!
Entre os homens que ficaram à porta do espaço onde se fez o velório, largaram-se até umas gargalhadas quando alguém disse:
- Nem calculam o trabalho que deu lavar o Coxo coberto de resina, gastámos mais de um bidão de água rás! Ná! Mesmo grelhado, o corpo iria sempre saber a resina!
E no entanto, apesar destes desabafos, o ambiente era de pesar.
- Era um homem incapaz de fazer mal fosse a quem fosse; era um pobre desgraçado; gostava da pinga mas como dizia “muitos (juntos) bebem mais do que eu!”; podia ter acontecido a qualquer um; não ia à missa – e depois?!
Claro que, entre estas conversas, também surgiam comentários ao futuro incerto de Laurindo; à apetecida Laurinda e à, agora disponível, Canicha. Verdade seja dita, que ficaram por ali duas mulheres, sem homem, expostas às fantasias e às abordagens de homens que nunca teriam pés que substituíssem os calcanhares de Zé Coxo. Ficou também o meu maior amigo que não tardou a provar ao Senhor António que merecia, pelo seu desempenho, umas moedas que dessem para mais do que um copo de laranjada e um pacote de bolacha baunilha.
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Todas as Quartas há Fábricas
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19 comentários:

  1. Daqui bebo um caneco sem resina à memória do Zé Coxo.
    Ou muito me engano ou a Laurinda e a Canicha também irão passar pela pocilga...

    Saudações do Marreta.

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  2. O Zé Coxo caiu num caldinho do qual não se conseguiu livrar!

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  3. Paz à sua alma!

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  4. pena que não foi possível fazer o churrasco funeral... maldita resina!

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  5. Certamente que o organismo fiscalizador das condições de trabalho, não fiscalizou essa empresa...o Zé Coxo nunca podia estar a fazer esse serviço...
    Um abraço
    Compadre Alentejano

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  6. Olá Majestade.
    Várias vezes aqui disse quanto gostava das histórias do "Quarto". Agora que nos oferece as da "Fábrica", atrevo-me a afirmar que destas ainda gosto mais, porque parece que conheci todos os personagens que têm aparecido em cena. O “Zé Coxo”, estimado por todos e que se finou tão estupidamente podia ser da minha aldeia. (O “Coxo” da minha aldeia chamava-se Mário e morreu trucidado por um comboio). Resumindo e concluindo (como sempre diz o meu amigo Carlos) o que pretendo afirmar é que aprecio as sua histórias e gabo-lhe o engenho com que as conta.
    O servo,
    Alberto Cardoso

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  7. Pata Negra
    A história de Zé Coxo é a história de muitos trabalhadores sem história.
    É bom que haja quem fale destas pessoas e da "misericórdia divina" que certos padres assumem como enviados de Deus à Terra.
    Comoveu-me a história de Zé Coxo e a forma como a contaste.
    Abraço pesaroso

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  8. Pata Negra, estou feliz: SOU PAI!!!
    Mas tenho um problema.
    Não sei que é a Mãe.
    Elas foram tantas!!!
    Vasco

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  9. Pobre Zé Coxo, o que vale é que enquanto cá andou sempre gozou alguma coisa...
    Cumps

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  10. estas histórias podem ter algo de ficção, mas confundem-se proximamente com a realidade passada e actual; ainda há muito disto... e levando a coisa pela graça se diz muito drama...
    abraço

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  11. - Beijos à Canicha e á Laurinda!
    Gostei do texto, recordas-me Miguel Torga.

    Junta e edita "Contos da Carta..."

    Abrações e copos de vinhaça

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  12. Viva Majestade .
    Sem mais palavras : impressionante, arrepiante!
    E na busca de termos acabados em ...ante, proponho-lhe algo interessante :
    o festival do chocolate de 05 a 15 de Março em Óbidos.
    A propósito de chocolate e da sua doce e ternurenta história, pese embora a dureza da mesma, lembrei-me desta que achei gostará também de relembrar :
    http://www.youtube.com/watch?v=dLAuf4-a0I4
    E depois de tantos (:) 2 pontos usar, digo até mais, com um beijinho sempre amigo, a dobrar
    :-)))
    E que bem cairia agora um chocolate ...
    :-)))
    Maria

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  13. Majestade,
    Tenho andado calada, mas ando por aí. E, à quarta-feira há «Fábrica».Lendo de seguida vários textos das diversas semanas,ficamos com um documento impressionante e literariamente muito belo.
    Não vou aconselhar V. Majestade a tentar publicar um livro, pois o meio livreiro conheço-o eu bastante bem e sei como está difícil por estes dias.Mas os textos aí estão, publicados para quem quiser disfrutar deles e aprender um pouco mais acerca de um "certo" Portugal.
    Muitos parabéns pela qualidade e obrigada por partilhar esses momentos connosco
    Um abraço Nocturno

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  14. O Vasco Lameiras é parvo e os outos comentadores também.

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  15. Majestade
    Quem não conheceu
    um Zé Coxo, na vida
    não é português com certeza.
    Obrigada sempre pela partilha.
    abraço
    da amiga

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  16. Pata Negra, já pensaste em escrever um livro?

    Se tivesse uma editora, contratava-te. Mas "ainda" não tenho. Vai-te preparando.

    Abraço,
    Zorze

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  17. Este post comoveu-me sobretudo quando refere a laranjada e o pacote de bolacha baunilha! Também eu me lembro de o meu pai me levar à taberna, pedia um copo de vinho para ele e outro de laranjada para mim e ficava embevecido a olhar-me enquanto eu bebia a laranjada. Para ele, que não tinha tido nada em criança, um copo de laranjada era uma grande coisa, hoje isto dá-me alguma tristeza, pela miséria que representa. Quanto ao pacote de bolacha baunilha era quase a mesma coisa, quando tinha a sorte de algum me cair nas mãos, parecia-me o fim do mundo! Era como que uma graça de Deus! Hoje que podia comprar e comer quantos pacotes quisesse, não o faço, para não engordar! Mas que ironia!

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  18. A vida e a morte do Zê Coxo,nao foi nenhuma pera doce.Valeram-lhe os amigos,a Canicha,Laurinda e o seu filho.Hâ quem,nem isso tenha.O diabo do padre,nem por morte tao trâgica,se comoveu.Fez-me lembrar um,que se recusou a dizer missa de corpo presente,porque o defunto era comunista.Ê,por coisas destas,que eu sou ateiinha-da-silva.

    Um abraco

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