quinta-feira, 29 de fevereiro de 2024

Festa de anos entre os meus

Ainda ontem fiz cinquenta, hoje faço noventa - nem todos o poderão vir a dizer.

É fácil recordar aniversários idos. Um exercício mais arriscado será irmos ao futuro e relatar acontecimentos não vividos. E o melhor é fazê-lo já, antes que a lucidez nos limite a sua descrição ou que a morte provável nos impeça de bater no teclado. 

Faço noventa anos. A minha neta teve a ideia de reunir os meus amigos, de que lhe costumo falar, num restaurante aonde vou há muitos anos. Sabe que não gosto de festas surpresa nem de ter na mesma mesa gente que não pensa ou que pensa que eu penso com segundos interesses. Sou o mais velho na sala, posso dizer e fazer o que me apetece. Estão presentes, a minha viúva, dois colegas com quem trabalhei, três amigos com quem discuto há anos as questões curda e palestiniana,  a  redução da história à história da luta de classes, a adulteração do vinho com novas castas e a necessária abertura da sociedade à poligamia. Os restantes são gente mais nova que me acarinha a idade e me tem como uma espécie em vias de extinção ou, apenas, como um velho rabugento e ressabiado que, apesar de tudo, tem graça e não pode ouvir que lhe digam que diz umas verdades.

Falo já arrastadamente mas, como falo baixo e raramente, quando falo para um grupo toda a gente se cala ou baixa a voz, não sei se por respeito, se para me tentarem perceber, ou por me admirarem.

 E então digo:

- Parece impossível como uma canção de melodia tão pobre e banal, uma letra tão pobre e banal, seja o tema mais universal e mais cantado por toda a humanidade nos últimos noventa anos. Ainda por cima na versão portuguesa, ela não dispensou o " a você" brasileiro. Detesto essa música! Por favor, não ma cantem!

Começam a filmar.

- E por favor também não me estraguem a festa com câmaras de vídeo. Vivam os momentos, não os guardem para viverem depois ou para mostrarem a outros que estiveram presentes quando, afinal, não participaram neles porque deles se arredaram por detrás de objetivas. Enfiem os telemóveis e as tabletes no símbolo do cobre. (- Olha! Obedeceram-me!...)

E então, do alto dos meus noventa anos, subo para cima da mesa, parto dois ou três copos - coisa que não acontecia dantes - e começo a recitar a minha versão da Ceia dos Cardeais.

- E vós cardeal, nunca amastes?...

E, rezada a Ceia, bateram palmas que nem uns desalmados e eu desci da mesa amparado por três deles. Todos acharam muita graça à minha récita e todos perceberam que só a viveram porque desligaram as máquinas. 

No entanto, passados instantes, já todos estavam nas suas mensagens e a reclamar que eu soprasse velas e a oferecerem-me presentes embrulhados. 

- Estais preocupados com o ambiente? Então porque gastais papéis em embrulhos? E que prendas são estas que não são livros, nem vinho, nem azeite?! Parem com as fotos! Parem de me tratar como uma relíquia! Eu não sou nem mais velho, nem mais novo do que vós! Sou vosso contemporâneo!

 - Irra que o velho é mesmo rabugento!

Puxo duma colher de sobremesa e tento atacar o autor da frase.

- Homem tem calma! São jovens, não pensam!

 A minha neta segreda-me ao ouvido:

Rabugentos são os meus amigos! Avô, quando eu fizer noventa anos, vou fazer qualquer coisa parecida! E quando fizer cem, ainda estou para aprender com o que vais fazer!

E não é que eu ainda durei mais dez anos!...

Regresso ao presente e embirro com a prenda da foto, ao menos que soubesse escrever o meu nome: - É com “u” seus analfabetos!

Mas pronto, pelo menos acertaram na idade.



3 comentários:

  1. Esta narrativa diz respeito a um aniversário cumprido hoje?
    Então, não se preocupem os descendentes, vão ter avô e Ceia dos Cardeais ainda por muitos anos. Estes velhotes rabugentos têm sete vidas...

    Gostei muito desta história que só não é verdadeira por ser ficção. :))

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  2. Se Salvador Dali
    fosse daqui
    faria de teu aniversário
    um belíssimo quadro

    Abraço "a você"
    nesta data querida
    muitas felicidades
    muitos grunhidos de vida

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  3. Li, gostei e vou fazer o mesmo ... em breve!!!

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