domingo, 8 de junho de 2025

20- A vida incrível dum casal a quem saiu o euromilhões


 

- Amanhã de manhã arrumamos as malas, pagamos as contas e partimos!

- Podemos, na volta, passar por Fátima e acender duas velas, uma para pedir, outra para agradecer.    


Jacinto não era homem de gastar latim a tentar provar que Deus não existia mas Francisca também não era mulher que precisasse de grandes provas para acreditar na Sua existência, bastava-lhe entrar no Santuário para O sentir. Até há pouco tempo, quando se ajoelhava na Capelinha, pedia dinheiro e agradecia a saúde, agora pedia saúde e agradecia o dinheiro. E pedia também um pequeno suplemento: que a  Aparecida a ajudasse a manter de pé a mentira do pai reaparecido.

Jacinto nem sequer lá punha os pés porque, desde pequeno, aprendera a ser alérgico ao cheiro da cera, ficava nas imediações a bebericar uma cerveja e a descascar tremoços.


Registada esta prova de Fé da Francisca e a respeitável tolerância de Jacinto com os assuntos da Fé, chegaremos a casa já lusco-fusco, sem necessidade de inventar justificações para o Abílio ou ter de suportar o interrogatório dum encontro casual com um vizinho qualquer, que esteja na pesca da conversa à sua porta.

 

- Estão bem o Galhufo, as galinhas, as rolas e o resto. O Pisca-pisca merece ir amanhã dar connosco uma volta de táxi, cuidou bem da quinta. Aproveitaremos para saber da sua língua solta, o que têm dito de nós e, a coisa pensada, podemos até convidá-lo para jantar aqui em casa, com a dose certa de tinto e uma aguardente, poderemos até vir a saber mais das nossas vidas que nós próprios sabemos. Se correr bem a coisa, podemos até oferecer-lhe em desbarato toda a criação e o cão como brinde, para que possamos encetar uma longa ausência e nos livrarmos da trabalheira diária que é dar de comer à mentira, de manhã à noite, para evitar que a verdade venha ao de cima e nos afogue em desgraça.

 

Assim dito, assim feito, tal como o previsto, pagou-se a volta ao Pisca-pisca, foi-se ao Agroal, comeu-se um pica-pau, beberam-se uns brancos à pressão, tiraram-se os nabos da púcara e, no regresso, comprou-se um frango assado e umas garrafas de sete e meio para o jantar. Falou-se do futuro próximo das suas vidas com a segunda intenção do Pisca-pisca o espalhar na calhandrice.

Mas claro, não se podia chegar e dar meia volta e abalar. Era preciso conversar com as pessoas, dizer meias verdades, mentir, dar satisfações, agradar.

- O brasileiro nunca mais mandou dinheiro mas, verdade seja dita, nós também não lhe pedimos. Não somos gente de abusar da confiança.

- Temos estado no Parque de Campismo da Vieira, aquilo é muito barato. Tenho feito por lá umas limpezas em hóteis, não me faltam patrões, e o Jacinto tem feito uns biscates. Pode ser que, entretanto, ele consiga uma pensão de invalidez, aquilo que ele tem no coração é pra toda a vida e dizem os médicos que o que ele precisa é de ar de praia. Se arranjássemos por lá uma renda barata, mudávamo-nos era para lá. Mas como aquilo é zona de praia! A casita do parque de campismo é jeitosa mas não é para todos os dias!...

E assim ia Francisca treinando, encontro após encontro, o descalçar da bota e Jacinto aprendendo, de a ouvir, a repetir a conversa a quem não a tivesse ouvido. Na verdade, a ideia de desaparecer, de repente e de vez, sem dar cavaco, ainda que cautelosa, poderia levantar poeira, já que os poria ainda mais nas bocas do povo, quiçá desse azo a uma investigação policial ou, no extremo, chegasse aos jornais de manchetes vermelhas.

As aldeias nunca perdoam a quem as abandona sem explicações, ninguém fecha a porta duma morada onde viveu muita vida sem olhar para trás, não se parte sem abraçar quem um dia teve um gesto de consideração por nós. Merece, portanto, estes parágrafos, esta alteração de lugar central dos acontecimentos, necessária à história, não estando ainda pensado ou imaginado se, às páginas tantas, não teremos de voltar.

Bem, na preparação das despedidas, que se foram fazendo, nunca se disse “até sempre”, até porque o espaço do papa-reformas não dava para o volume da mudança e estava fora da equação fazer o transporte dos haveres nas rodas de terceiros, todos sabemos bem porquê.

Para evitarem serem novamente expostos às insinuosas apitadelas de outros automobilistas durante a viagem, com a pronta colaboração do Pisca-pisca, motorista profissional, tinham aproveitado estes dias, para dar umas lições de condução pelas ruas da aldeia à Francisca, nata de maior destreza e atenção do que o nefelibata do marido.

Tinham aproveitado estes dias para estabelecer contactos e encontros com o agente imobiliário, entregar documentos e sinais, preparar a escritura.

 – Sabe, o meu pai fez-me uma transferência e quer que a casa fique em nosso nome! 

Até chegar ao ponto em que lhes foram entregue as chaves da casa, já com tudo tratado, água, luz e jardim arranjado.

Reunidas portanto as condições para a carripana partir, atulhada até ao tejadilho, mulher ao volante, pendura a esfumaçar, pipi aqui, pópó ali, cá vamos nós e ala que se faz tarde!

2 comentários:

  1. Até que enfim que os nossos novos-ricos vão dar descanso à tola e adeus mentiras longe dessa gente que nunca os ajudou e agora lhes pede ajuda para tudo e mais alguma coisa.

    Ora aí está um carrito jeitoso para não andarmos a penantes, quando já não nos derem a carta.-.. Gostei do modelo e da cor.

    Um abraço.

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  2. Janita, achei que estavam a precisar duns dias longe de tudo e de todos. Vamos ver se podem apanhar sol descansados.
    Obrigado pela companhia e abraços.

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