- Os senhores vão ali ao Parque de Campismo que eles têm lá bungalows para arrendar.
- Bungaquê?
- São umas casinhas muito jeitosas. Tenho a certeza que os senhores vão gostar!
Mas a quem interessarão as pacatas férias,
numa praia pacata, do pacato casal milionário? Então não é verdade que andamos
por estas linhas de escrita pela mesma razão de que o casalinho está de férias?
Sim, andamos aqui, personagens, autor e
leitores por causa do mesmo prémio do euromilhões! Mas, mais do que os pequenos
episódios que marcam as alterações ao seu quotidiano, interessa-nos
debruçarmo-nos sobre a experiência social e emocional, para que um dia, se semelhante
sorte nos vier a acontecer, possamos estar melhor preparados para o embate.
Aliás, já estamos a advinhar que a estadia agora iniciada, numa aldeia
balnear de mar bravo, rude urbanismo e mal cuidado campismo para servir o
lazer, não acalmará a inquietação que habita este dois pobres corações. Pelo
contrário, intensificar-se-ão e aprofundar-se-ão as perguntas que
sucessivamente vêm fazendo a si próprios sobre o sentido do seu quotidiano, das
suas vivências e das suas vidas.
Não vamos falar destas questões nos termos das explicações primárias, dos
pensamentos toscos e no verbo fácil dos dois aldeões. Digamo-lo assim:
Na verdade, Francisca e Jacinto sentiam cada vez mais o peso da
pobreza, tão pobres, tão pobres, tão pobres que só tinham dinheiro. Não só não
conseguiam tomar o gosto à vida faustosa que podiam levar, como não apreciavam
a vida lazeirenta dos últimos tempos. Para além disso, a sua vida social era
tocada com pinças e mantida por arames, extremamente frágil, de laços inseguros
e de motivações casuais. Não havia um vizinho ou uma amizade com quem partilhar
uma confidência ou um jantar e, pior do que tudo, não havia família.
O pai de Francisca, tão provável estar morto como vivo, apenas dera sinais
de si numa fantasia que sabe-se lá por quanto tempo os protegeria. A Lúcia distanciara-se
do lar que a criou, quem sabe se por caprichos de menina maior, por mau génio
ou sangue ou apenas porque, filha de pais de lágrimas sólidas criados sem calor,
nunca sentiu o encosto dum rosto maternal ou a mão amiga dum pai.
E uma netinha! Uma menina a quem ainda nunca ouviram dizer avô, avó!
Por seu lado, Jacinto, acobardara-se na determinação de não voltar mais à
terra ou voltar a ver o irmão e a mãe. Já nem falamos do pai que, se ainda não
estiver morto por cirrose, que morra antes que o filho o volte a ver, não vão
as recordações das sovas que este levou, levantar-lhe a ira e ser o próprio
filho a tirar-lhe a vida e vai daí, não haverá milhões que o tirem dum futuro
na prisão.
Esta partilha de pensamentos e outros questionamentos existenciais foram preenchendo
os dias cinzentos da casinha do parque de campismo, apenas quebrados por
passeios obrigatórios e desagradáveis pela marginal, por uns comes e bebes numa
pastelaria ou num café de petiscos, ou por lautas refeições num restaurante
daqueles que são só para alguns.
Foi também altura de fazerem um balanço. Decorridos três meses da sua ida à
Santa Casa, tinham aritmética para estimarem que já tinham derretido cerca de
cinquenta mil euros, mas não a suficente para subtrair milhares de milhões.
Numa coisa estavam de acordo, ainda tinham muito, pelo que estava na altura de
abrirem os cordões à bolsa, tirar a família - entenda-se a filha Lúcia e a mãe
e o irmão de Jacinto - da pobreza extrema e porque não, procurar uma casa por
ali, perto do mar e longe das invejas e mentes curiosas de Vale dos Ovos.
Para dar cumprimento à primeira decisão ainda falta história mas para a
segunda não é tarde nem é cedo:
Apitem à vontade pobrezinhos de carrinhas de trabalho e riquitos de 4x4, o
papa-reformas do casal que tem, ainda não sabemos quantos, milhões vai dar uma
volta pela Estrada Atlântica. E zás, uns quilómetros feitos, S.Pedro de Moel para
trás, mais à frente um pouco, uma urbanização cogumelo em pleno Pinhal do Rei e
junto ao mar, Pedra de Ouro, um restaurante, um bom almoço, uma placa de
vende-se moradia, um número de telefone, espera duma hora por um vendedor:
- O senhor não se assuste por não termos carro nem aspeto para tanto
dinheiro! Sabe, é o meu pai que estava desaparecido há tantos anos no Brasil e
que apareceu agora e, segundo parece, com dinheiro. Tanto assim é que me pediu
que lhe arranjasse casa na praia, que quer cá vir passar umas férias. Por força
que me quer conhecer mas não quer voltar à terra que o viu nascer, não tem
saudades e não quer recordar a miséria que por cá viveu e nos deixou!
Jacinto ficou de tal maneira embascado com a desenvoltura do discurso da
mulher que optou por quase não abrir a boca.
Uma compra, quando não falta dinheiro e se promete um pagamento pronto,
faz-se depressa.
Antes, contudo, de fechar o negócio e abrir as portas da casa nova,
interrompamos o assunto antes que nos esqueçamos que temos de dar um salto a
Vale dos Ovos, não vá o Pisca-pisca no entusiasmo duma bebedeira, combinar uma
patuscada com a malta e dar o golpe em todos os pescoços da capoeira e, se no
final estiver completamente perdido, como é seu hábito quando a mesa é bem
regada, ainda soltar o cão na linha para depois gracejar de mau gosto que este
se suicidou debaixo do comboio.
2 comentários:
Há algo de insólito e ate macabro, neste episódio, que me deixa descontente.
Se um dia eu tiver a sorte ou pouca sorte de me sair essa batelada de milhões, no Euromilhões, não me escondo, não minto nem fujo da vizinhança. Ajudarei quem sei precisar, darei uma casa nova à minha filha, a dela é pequena e está cheia como um ovo.
De que adianta ser-se rico se não se tiver com quem partilhar e, pior, andar escondido como se o dinheiro tivesse sido roubado?
Ah, não, antes pobrete mas alegrete, do que ricalhaço armado em palhaço.
Abraço, Monarca.
PS - É verdade, só agora me lembrei que fiz um Euromilhões na 2ª feira, na Galeria Comercial do Campus do HSJ para ontem e nem sei se enriquei ou não! :)
Bem me parecia que já tinha lido isto.
O capítulo 20 já se anuncia, mas... é se é prá amanhã, bem podias fazer hoje... ...Ahahaha
Desculpe, Monarca, estou a brincar.
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