domingo, 13 de julho de 2025

25 - A história dum casal de aldeões a quem calhou o euromilhões

 

Francisca identificou a origem da chamada, atendeu o telefone e teve o primeiro embate quando reconheceu a voz do Jápintas no telemóvel do Pisca-pisca. À medida que este largava as informações, sem meias palavras, num tom indecoroso, surpreendentemente autoritário, portador de direito a pedir explicações, a atirar soluções, Francisca ensabocava-se e contorcia o corpo, alternando-lhe a forma entre o ponto de exclamação e o ponto de interrogação, até que chegou ao ponto em que conseguiu libertar a fala:

- Já estás com os copos, é o que é! Não tens mais nada para fazer senão telefonares a esta hora com uma história dessas?

- Só tenho uma pergunta a fazer:

- O que é que eu faço ao homem? Estou aqui com o Pisca-pisca e ele tem a chave da tua casa. Dizendo ele que é teu pai, já que aqui não há albergue, pode lá passar a noite?

- Meu pai calma aí! Ele que durma em tua casa!

Se se tratasse duma conversa cara a cara, teria de aguentar-se ao confronto, mesmo que virasse costas, era bem provável que o interlocutor a perseguisse a mandar farpas e ganchos de chamada à razão, mas o telefone tem esta vantagem – desliga-se e pronto.

- Esta mulher tem cá um génio! – disse Jápintas de olhos nos botões do telemóvel.

Marçal interrompeu o seu silêncio de velho apático, mas com consciência de personagem principal do momento, e perguntou:

- Então? Que disse a minha filha?

Desenvolveu-se a resposta com a explicação possível. O coração social dos dois resistentes, sentindo o fim do serão, começou a falar:

- Se ao menos a estação estivesse aberta toda a noite como antigamente!...

Não iam abandonar o homem ao orvalho e ao frio, era preciso dar-lhe enxerga e agasalho em algum canto. Coube a Pisca-pisca ceder à compaixão e disponibilizar a solução mais prática: dormiria na sua garagem, no banco de trás do táxi, mas com uma porta aberta para não deixar cheiro.

Jápintas fez o programa do dia seguinte, uma viagem dos três ao palacete de praia dos dois, para um derradeiro confronto entre a verdade e a mentira. No meio de tanto dinheiro, não há de faltar dinheiro para pagar o táxi e, em último caso, para os fazer calar. Pisca-pisca não discordou porque nunca recusava um frete ou a participação num caso com potencial para ser contado. O velho Marçal Marques não disse ai nem ui, como se a sua vida estivesse entregue aos trilhos do acaso ou duma predestinação.

Enquanto esta cena decorria, ocorria uma chamada telefónica duma casa da beira atlântica, para uma casa algures no Pinhal Interior. Um casal discutia, à distância, nos mesmos maus lençóis: a mentira, que os protegia e os alimentava há algum tempo, explodira nas suas mãos. Pressentindo as ideias que à mesma hora andavam a ferver em Vale dos Ovos, os astros aconselhavam que se tomasse de urgência uma decisão. E essa decisão foi Jacinto ficar onde está e Francisca mudar-se para um hotel onde ninguém a reconhecesse ou procurasse.

Retomemos o fio da meada do dia seguinte ao regresso de Marçal Marques às suas origens e viajemos daí até à casa da praia onde, para desilusão da trempe da investida, ninguém atende no vídeo-porteiro, nem nos telemóveis de um ou de outro, apesar das repetidas tentativas do Pisca-pisca e do Jápintas, assessorados pelo silêncio ansioso do pai reaparecido. A tentativa da visita frustada causava irritação, mas só vinha confirmar que, Francisca e Jacinto ao não darem a cara, não estariam de bem com a verdade, nem com os amigos.

Poder-se-ia aceitar, pelos factos passados, que Francisca não quisesse conhecer o verdadeiro pai, mas pelo menos podia atender o telefone! O ter espetado a toda a gente a mentira que o pai era rico, não é crime e, por isso, a malta com o tempo irá perdoar aos dois. A não ser que seja crime a origem dos sinais exteriores de riqueza que vêm timidamente mostrando, sendo que, nesse caso, mais cedo que tarde, as boas polícias que temos farão o seu trabalho e nós cá estaremos para prestar informação, se tal contribuir para que se faça justiça e ajudar ao esclarecimento da verdade.

Voltaram para o Vale, de mãos a abanar, os dois comparsas, discutindo o destino que teriam de arranjar para o passageiro do banco de trás, sendo que o mais acertado seria convencê-lo, ou forçá-lo, a entrar no comboio no cais oposto de onde ontem arribou. Sendo perceptível que dinheiro não tinha, fariam uma vaquinha e pagar-lhe-iam o bilhete de volta para Santa Apolónia.

Entraram no café e informaram o Abílio dessa decisão e, seguidamente, contaram em poucas linhas os passos da sua aventura, ou melhor, da sua boa ação.

Não sabiam era ainda a surpresa que Abílio, um homem maduro, de confiança e sereno, lhes reservava.

Durante a manhã, tinha recebido uma chamada da Francisca que queria confirmar se não era brincadeira de mau gosto, essa história dum homem que aparecera a identificar-se com o nome do seu pai e, se fosse verdade, que lhe contasse o que comentavam as pessoas que reagiam ao acontecimento.

Que desse dinheiro ao suposto pai e o encomendasse para de onde veio, que não tinha qualquer interesse em vê-lo ou conhecê-lo. Pedia-lhe também que, resolvido o assunto, lhe desse conhecimento e lhe apresentasse a despesa, que a conhecia há muito como freguesa de boas contas.

Pisca-pisca e Jápintas ouviam atentamente, entre a arrelia e o espanto, as novidades do homem do balcão, quando se falou do pai, olharam para trás e viram um homem velho e maltrapilho a chorar. Ainda insistiram com o Abílio para que tentasse novo contacto, já que a eles, pelos vistos, não queria atender, mas este abanou em simultâneo a cabeça e o indicador em sinal de negação:

- Ó senhores, não perceberam o que eu disse? É assunto para encerrar e, uma vez que andam com ele, peço-vos ajuda para lhe comprarem um bilhete e o pôr a andar daqui para de onde veio!

Com papas e bolos, ao fim dumas horas, lá se conseguiu despachar no comboio o velho e desorientado Marçal e, encerrado o episódio, Abílio ligou à Francisca dando-lhe nota disso mesmo.

Com as pulsações a voltar à frequência normal, depois duma noite para esquecer, Francisca voltou à sua casa de praia.

Com o azul do mar a amparar os seus pensamentos, dava voltas à piscina abrindo o seu passado. A sua primeira memória de criança era numa instituição, nunca a trataram mal, mas nunca soube o que era um afeto ou um laço familiar. Quando teve idade para perceber que não tinha mãe porque ela morreu, aceitou. O que nunca conseguiu aceitar, quando já crescidita lhe contaram, foi que o seu pai fora um cobarde que a deixou sem ninguém no berço de nascimento. Para isso não existe perdão. Será isso que ele quer agora pedir - perdão? Quererá apenas vê-la? Quererá carinho ou afeto? Procurará ajuda ou dinheiro?

Ou terá vindo apenas, qual enviado do diabo, para destruir a história perfeita que ela e o marido tinham construído para justificar a origem do seu dinheirinho?

Pois que não restem dúvidas, que a maneira abusiva e despudorada como tratou a figura paternal nessa história, diz muito sobre a consideração que conserva por quem a enjeitou! Seja qual for a razão por que agora o suposto pai aparece, só vem confirmar que não tem vergonha na cara, sendo que, tal é tão certo como não ter dúvidas, que nem vivo nem morto, queira alguma vez ver esse homem à sua frente.

domingo, 6 de julho de 2025

24- A história dum casal que foi premiado com o euromilhões

 A humilhação foi de tal monta que, com a noite a abrir-se, o Pisca-pisca desfez-se em emoção alcóolica e dirigiu-se para o destroçado que jazia, silencioso e só, na mesa do canto:

- Estás à espera que não haja mais comboios? A estação não tarda muito fecha!

- Não saio daqui enquanto não souber da minha filha!


- Podes esperar sentado! – acrescentou o Jápintas, que chegara há uns minutos, suficientes para se ter inteirado da situação.

E dito isto, disse também para quem o quis ouvir:

- Há muito tempo que me andava a cheirar a história mal contada. Ora, se está mal contada é preciso pô-la em pratos limpos. Portanto, é assim:

Ou este homem é um impostor e não é o Marçal Marques ou a Francisca nos anda a esconder a origem da sua súbita riqueza! Primeiro era cheques que a filha lhes enviava do Luxemburgo, depois eram depósitos que o pai transferia de Brasil, e agora? Vem de onde? Chove do céu?

Abílio interrompeu:

- Não tens nada a ver com isso!  Tiveram uma ajuda que não querem revelar e agora parece que se estabeleceram lá pró litoral a fazer uns biscates aqui e acolá, afinal de contas, mais ou menos o que faziam aqui. Parece-me abuso falar em riqueza!

- Pois aí é que ela impeça! Segundo o que estes dois olhos puderam ver, não é bem num Parque de Campismo ou numa casita que estão a viver!  

Atalhou Jápintas, continuando com o relato dos encontros que recentemente vivera com o casal, lá para os lados de S. Pedro de Moel.

- E depois?! Podia andar na limpeza e apetecer-lhe mandar um mergulho! – considerou Pisca-pisca em defesa do casal que tinha como amigo.

- Nã! Nã! Essa já não pega! Eles estão a viver lá, num casarão à beira mar, e vieram-me outra vez com a fortuna do pai reaparecido! Não me vão dizer que se estavam a referir a este homem?!

Os olhos do velho Marçal brilharam com estas revelações. Afinal de contas a filha não andava longe dali.

O Abílio, farto do tema e do dia, dava os passos e movimentos que se mostram aos últimos fregueses da noite, mas não queria ser ele a preocupar-se com o desfecho pendente de encaminhamento do indefeso forasteiro.

- Vou ter de fechar a porta!

Marçal Marques ergueu-se, trémulo e lento e, enquanto tomava a direção da porta, perguntou:

- Fico a dever alguma coisa?

- Esqueça isso homem! Leve consigo este pão que sobrou e um pedaço de queijo que deve estar com fome!

Pisca-pisca e Jápintas vieram também para a rua prolongar a conversa habitual do copito a mais, hoje ainda mais justificada porque o tema era quente e, mais do que isso, pareciam dispostos a serem atores vivos deste capítulo da história.

Porque a porta do café tinha a soleira tangente à faixa de rodagem, atravessaram a rua para junto dum banco público que fica no passeio frente ao edifício da estação ferroviária. Após instantes de desencontro, Marçal aproximou-se dos dois e sentou-se a ouvir a conversa como um paciente em sofrimento que ouve os comentários da equipa médica.

Constatamos que os dois copinchas, apesar de não revelarem respeito pela figura menor do velho, abusando com o “tu”, estavam com sensibilidade suficiente para não o deixar ao relento, contrariamente ao Abílio que usando a segunda pessoa do “você”, fechou o café e a sua alma de comerciante, sem se questionar sobre o local onde o pobre diabo iria passar a noite.

- Como és o taxista deles, deves ter o número de um deles? Se não lhes ligares tu, ligo-lhes eu! A Francisca precisa de saber que o pai rico está aqui com fome e sem abrigo!

- Liga-lhe tu que eu não me atrevo a tanto! Já agora, como tenho as chaves da casa deles, pergunta-lhes se podemos lá deixar o homem a dormir.




domingo, 29 de junho de 2025

Rei dos Leittões volta a publicar

Gostamos mais de papel, quer se trate de livros, quer se trate de dinheiro: eis a razão primeira que me levou a voltar a publicar. 

O Caminho do Fim da Terra é um livro de bolso para ler num dia de verão e pode interessar a três tipos de leitores: a quem já foi a Santiago a pé, a quem nunca foi a Santiago a pé mas pretende ir, a quem nunca foi nem nunca irá a Santiago a pé.

SINOPSE:

Sete Pés é um jovem que perde a mãe, ficando sem família. Sentindo-se livre, resolve então dedicar-se àquilo que mais gosta de fazer - caminhar - e parte para Santiago de Compostela. Durante o Caminho conhece Marie France, com idade para ser sua mãe, e prolonga com ela o Caminho até Finisterra para viverem uma paixão. A chegada a Finisterra, meses mais tarde, é ensombrada pela morte e Sete Pés é preso sem fazer questão de provar a sua inocência. 


O Caminho do Fim da Terra pode ser pago por meios digitais. Dez euros com portes de correio - é só dar a morada. Se for entregue em mão e pago em papel, é menos um euro.

À venda na Bookmundo online:
Pagamento por Multibanco, Cartão de crédito, PayPal ou MBway.
É um livro de bolso para ler num dia de verão. Também é bom para oferecer a três tipos de pessoas.

23- A vida incrível dum casal que ganhou o euromilhões


Vale do Ovos continuava a rodar à volta da estação e a ver passar comboios, até ao dia em que um estranho desembarcou na linha 2 e entrou no Café da Estação. Era um homem magro, de roupas gastas e barba desarranjada. O olhar cansado denunciava uma vida dura e o cheiro a estrada percorrida infiltrava-se no ambiente. Sentou-se pesadamente numa das cadeiras e, com um fio de voz, perguntou:

— Alguém aqui conheceu o Marçal Marques?

O silêncio instalou-se por um breve momento. O nome, recordado por alguns, poderia não ter causado grande impacto, mas a forma como foi pronunciado fez com que os olhares se cruzassem.

O Pisca-pisca, que até então bebericava a sua cerveja tentando manter o disfarce de sempre, sentiu o corpo enrijecer. Abílio interrompeu a lide do lava-loiça, virou-se para trás e dedicou olho e meio ao homem maltrapilho.

— Quem pergunta? — disse em voz de dono da casa, entre a curiosidade e a desconfiança. O forasteiro ergueu o rosto e respirou fundo antes de pilgarrear:

— Não me reconheces? Eras um garoto!...

O café explodiu em murmúrios. O suposto milionário brasileiro, cuja fortuna sustentava a nova vida do casal que por aqui se conta, estava ali, à vista de todos, sem um tostão furado. O plano cuidadosamente montado começava a desmoronar-se.

O Pisca-pisca, de olhos arregalados, foi o primeiro a quebrar o silêncio:

— Então... você é o pai da Francisca? Mas disseram que estava no Brasil,  a nadar em massa!

O velho riu-se, um riso triste, frouxo e rouco.

— Brasil? Dinheiro? Eu ando aos caídos pelas ruas de Lisboa há anos... Finalmente, arranjei uma réstea de força e coragem para procurar a minha filha que, confirmo, conheceis sobejamente.

Estava, portanto, o caldo entornado. Era agora claro que Francisca e Jacinto andavam a enrolar o mundo inteiro e não as perderiam pela demora. Mas era também certo que aquele desgraçado que ali estava de cabeça arrependida, não tendo corpo para as levar, teria pelo menos de as ouvir, antes de ser despachado como um embrulho sem destino, no primeiro inter-regional que ali parasse. Muito embora da sua triste figura atual fosse difícil reconhecê-lo, muita gente daquela terra mantinha a memória de o ter conhecido e os restantes, os mais novos, tinham pelo menos ouvido falar do pai que abandonou a recém-nascida à sua sorte, depois de a mãe lhe dar nome e adormecer para sempre. Um gesto cobarde como esse não tem perdão, mesmo se já pouco lembrado e perante o arrependimento confesso do seu autor.

Este despertar da memória da má sorte da pequena Chica, atenuava até a revolta recém-nascida pela presença do velho, que se tornarara testemunha e prova da grande mentira que ela e o companheiro andavam, há uns meses, a espetar a toda a gente.

Ao longo da tarde, os clientes do Abílio foram entrando e saindo, por acaso ou curiosidade, uns limitando-se ao consumo ou à avaliação do ambiente e outros, contribuindo com perguntas e sentenças para o julgamento popular, se antes não lhe podemos chamar linchamento verbal, tais eram os termos em que se dirigiam ao homem, quebrado, que ali permanecia como se estivesse cercado de ira num beco sem saída.

As pessoas são mais sensíveis ao sofrimento dos que tiveram um passado de boa vida, do que à desgraça dos que sempre foram desgraçados, basta olhar para a forma distinta como se preocupam com as tragédias humanas, conforme elas ocorrem no primeiro, no segundo ou no terceiro mundo. E isto, mais do que castigar Marçal Marques pelo ato cobarde que cometeu, há quase cinquenta anos, quando abandonou a filha recém-nascida, explica a forma rude e cruel como era recebido e tratado.

A humilhação foi de tal monta que, com a noite a abrir-se, o Pisca-pisca desfez-se em emoção alcóolica e dirigiu-se para o destroçado que jazia, silencioso e só, na mesa do canto:

- Estás à espera que não haja mais comboios? A estação não tarda muito fecha!

- Não saio daqui enquanto não souber da minha filha!

domingo, 22 de junho de 2025

22- A vida incrível do casal a quem calhou o euromilhões

 


Pois logo agora em que ponderamos mudar de local para que a história retome rumo, um pintor de construção civil que anda a trabalhar na moradia do lado, estica um olho pela janela para espreitar um corpo de mulher que se bronzeia numa espreguiçadeira.

 

Chamam-lhe o Jápintas e, entre pinceladas, tem por distração entreter a vista a mirar privacidades. Embora não se consiga observar o rosto da presa no melhor ângulo, faz-lhe lembrar muito a cara da Francisca do Jacinto.

 

- Coitada da desgraçada, a esta hora deve de andar a limpar retretes na Praia da Vieira, enquanto o homem repete cervejas e cigarros numa esplanada. Nem ela tinha corpo nem feitio para se estender assim ao sol como uma lagartixa!

 

Mas, como no dia seguinte se tivesse repetido a visão da vizinha e conterrânea, Jápintas não adiou a invenção dum pretexto para tocar à campainha. Por exemplo, um pedido de desculpas pelo ruído que iriam causar enquanto tivessem de ter ligado o compressor.

 

Foi Jacinto quem abriu a porta pelo que logo ali se esclareceram as dúvidas sobre a identidade do corpo da mulher. Jacinto, com cara de quem não tem onde se enfiar, sentiu o corpo a enrijecer enquanto Jápintas revelou um riso vitorioso e sarcástico de quem descobriu uma grande careca.

- Nem quero acreditar! Que andas tu aqui a fazer rapaz?

- Isso pergunto eu! Eu ando a fazer um serviço aqui ao lado! E tu? És chofer do dono desta casa?

 

As explicações de Jacinto foram um emaranhado de contradições. O casal tinha levado longe demais a sua criatividade. Se tivessem mantido a história do pai de Francisca como fonte de todas as riquezas, poderiam agora apresentar a justificação simples da casa ser do brasileiro como disseram ao vendedor imobiliário. Mas não, quiseram reduzir-se aos trabalhos e aos biscates em hotéis, à residência num bungalow, à vida pacata e remediada e, agora, tem de se haver com a difícil tarefa de inventar em tempo real.

Primeiro, Jacinto viera só arranjar umas persianas. Depois, confrontado com a presença de Francisca:

- Pois é, sabes como é! Os donos não estão cá, ela veio comigo e aproveitou para um mergulho!... Ó Francisca chega aqui, temos visitas!

Francisca, que não ouvira o diálogo entre os dois, manda entrar o pintor e oferece um copo com o à vontade de quem está em casa sua. Como se não bastasse, para aumentar a confusão instalada, veio com a sua ocupação de mulher-a-dias, dando um golpe fatal na credibilidade de toda a história.

 

Já de cerveja na mão, Jápintas afiou a língua e atirou sem dó:

- Mas vocês estão a fazer de mim lorpa ou quê? Vocês estão é ricos e não querem que ninguém saiba!

Francisca, mais hábil na arte da ficção, não teve outro remédio se não ir repescar novamente o pai para a rede, como proprietário do casarão de praia e patrão dos caseiros, filha e genro.

 

Sem direito, ou razão maior para os contrariar, Jápintas lá voltou para o seu trabalho pouco convencido, com dúvidas de que seria capaz de manter o segredo que eles lhe pediram, sendo que, nos dias que por ali andou, todas as tardes foi cravar uma cerveja aos dois amigos.

 

Este incidente despoletou um grave desentendimento no casal, que há tempos vinha acumulando tédio, apenas quebrado por pequenas discussões sobre o que comer, o que comprar ou o que fazer e grandes desentendimentos filosóficos sobre a vida que tinham e as razões de viver. Ter a questão económica garantida pode assemelhar-se à perda do leme que nos conduz para o futuro, o Jacinto e a Francisca aceleravam a sua marcha para a desorientação total.

 

A certa altura ainda puseram a hipótese, se não seria melhor acabar com o segredo, com as mentiras e enfrentar os perigos da vida milionária, mas acabavam sempre por voltar às razões do princípio. Ora, esse risco pairava no ar sempre que os problemas conjugais ameaçavam a prata do casamento, pelo que, antes que a relação descambasse de vez, Jacinto arrumou as malas, negociou com um taxista e partiu sozinho para Vila Facaia, nas suas palavras, para espairecer.

 

Francisca despediu-se com a frieza adequada à situação e entrou em casa a desenhar projetos de vida boa que a preenchessem até ao Natal, altura em que iria receber o telefonema da filha.

 

Assaltava-a recorrentemente, contudo, uma preocupação maior, a probabilidade do pintor, chegado a Vale dos Ovos, ter feito estragos na sua reputação, por abuso de bater com a língua nos dentes.

 

Deixemos pois a Francisca a inventar dias felizes e vamos nós até Vale dos Ovos, ver se há novidades.

domingo, 15 de junho de 2025

21- A incrível vida do casal a quem saiu o euromilhões


A casa ficava na primeira linha junto ao mar, a quase 40 metros de altitude sobre a praia, portões e muros para alta privacidade, jardim e piscina com vista livre sobre o oceano. Era pessoa rica o antigo dono, desfez-se dela por coisas da vida que não interessam aqui.

Pedra de Ouro é uma urbanização cogumelo, nascida no furor de finais de 70, por união de vontades duns novos-ricos de Leiria que queriam uma casa junto ao mar, onde não se vissem nem se ouvissem os pobres e os labregos. Dois restaurantes, três cafés, duas esplanadas, um minimercado que vende o necessário, ruas quase desertas, lotes em venda, casas quase novas, portas robustas, boas fechaduras, calma, paz e calma, brisa, azul e verde.

 

Toda a gente sabe identificar ao longe um agente imobiliário, uma mão segura o telemóvel ao ouvido, a outra segura um molho de chaves, de modo que nos cumprimentam sempre com um aceno e uma única palavra, para não interromperem o telefonema, ao mesmo tempo que nos esticam dois dedos para não deixar cair as chaves.


- Lá está ele! É aquele bem vestido que anda ali dum lado para o outro!


Estacionaram o papa-reformas junto ao portão, o vendedor caminhou na sua direção, cumprimentou-os nos modos já descritos, após alguns intantes desligou a chamada e pediu desculpa como era seu dever. Entraram os três, apontaram-se pormenores, experimentaram-se botões, testaram-se fechaduras, uma hora de aprendizagens e lições, a casa é vossa, qualquer coisa é só ligarem, a escritura está marcada para

 

Quando se viram os dois a sós, o papa estacionado na garagem, já era hora de almoço. 

- Aquele ao fundo da rua vende para fora, trazemos duas doses, duas garrafas e vamos experimentar a casa.


Duas pessoas estreiam uma casa grande, almoçam bem, de vez em quando correm a casa ou o jardim em reconhecimento, de quando em vez espreitam a rua ou mar numa janela, às vezes voltam à mesa para mais um gole ou um amendoim.

 

Uma casa junto ao mar. Não precisar de trabalhar. Um sonho?

- Ao menos aqui ninguém nos chateia!

- E o que vamos fazer amor?

- E o que vamos fazer, amor?

- Nada!

- Ainda não está tempo para a piscina!


Depois dum longo dia, dum longo serão e duma longa noite, seguiram-se longos dias, longos serões e longas noites. O tédio consumia-os, poucos afazeres, poucas conversas, nenhum beijo.

Uma casa junto ao mar. Não precisar de trabalhar. E depois?

- Passamos a vida a chatear-nos um ao outro!

Ninguém anda aqui para se deleitar com o relato duma vida comum a tantos casais sós: não faziam ponta dum chavelho, não tinham falta de dinheiro, tinham saúde para comer o que lhes desse na gana, estavam pelo pescoço um do outro, amor pouco, sexo nenhum, projetos zero.

 

Do seu interesse quotidiano, quase só, tudo o que estiver relacionado com a experiência de lhes ter saído o euromilhões: imprevistos, cuidados e pensamentos.

 

Pensamentos nunca faltam a quem leva uma vida monótona. 

Francisca esperava pelo telefonema de Natal da filha para lhe contar que a podia ajudar. A este anseio, Jacinto somava a culpa de não voltar à terra natal para ajudar os seus e estava a ficar farto de não fazer nada, de não ter ninguém com quem trocar umas bocas no café e da mulher dormir sempre virada para o outro lado. Francisca estava a ficar farta do ressonar do marido, de não ouvir ninguém na rua e de não ter nada para fazer.

 

- Isto assim não é vida! Temos de ir passar uns dias a Vale dos Ovos!

- E se fossemos à minha terra, Vila Facaia?

 

 

domingo, 8 de junho de 2025

20- A vida incrível dum casal a quem saiu o euromilhões


 

- Amanhã de manhã arrumamos as malas, pagamos as contas e partimos!

- Podemos, na volta, passar por Fátima e acender duas velas, uma para pedir, outra para agradecer.    


Jacinto não era homem de gastar latim a tentar provar que Deus não existia mas Francisca também não era mulher que precisasse de grandes provas para acreditar na Sua existência, bastava-lhe entrar no Santuário para O sentir. Até há pouco tempo, quando se ajoelhava na Capelinha, pedia dinheiro e agradecia a saúde, agora pedia saúde e agradecia o dinheiro. E pedia também um pequeno suplemento: que a  Aparecida a ajudasse a manter de pé a mentira do pai reaparecido.

Jacinto nem sequer lá punha os pés porque, desde pequeno, aprendera a ser alérgico ao cheiro da cera, ficava nas imediações a bebericar uma cerveja e a descascar tremoços.


Registada esta prova de Fé da Francisca e a respeitável tolerância de Jacinto com os assuntos da Fé, chegaremos a casa já lusco-fusco, sem necessidade de inventar justificações para o Abílio ou ter de suportar o interrogatório dum encontro casual com um vizinho qualquer, que esteja na pesca da conversa à sua porta.

 

- Estão bem o Galhufo, as galinhas, as rolas e o resto. O Pisca-pisca merece ir amanhã dar connosco uma volta de táxi, cuidou bem da quinta. Aproveitaremos para saber da sua língua solta, o que têm dito de nós e, a coisa pensada, podemos até convidá-lo para jantar aqui em casa, com a dose certa de tinto e uma aguardente, poderemos até vir a saber mais das nossas vidas que nós próprios sabemos. Se correr bem a coisa, podemos até oferecer-lhe em desbarato toda a criação e o cão como brinde, para que possamos encetar uma longa ausência e nos livrarmos da trabalheira diária que é dar de comer à mentira, de manhã à noite, para evitar que a verdade venha ao de cima e nos afogue em desgraça.

 

Assim dito, assim feito, tal como o previsto, pagou-se a volta ao Pisca-pisca, foi-se ao Agroal, comeu-se um pica-pau, beberam-se uns brancos à pressão, tiraram-se os nabos da púcara e, no regresso, comprou-se um frango assado e umas garrafas de sete e meio para o jantar. Falou-se do futuro próximo das suas vidas com a segunda intenção do Pisca-pisca o espalhar na calhandrice.

Mas claro, não se podia chegar e dar meia volta e abalar. Era preciso conversar com as pessoas, dizer meias verdades, mentir, dar satisfações, agradar.

- O brasileiro nunca mais mandou dinheiro mas, verdade seja dita, nós também não lhe pedimos. Não somos gente de abusar da confiança.

- Temos estado no Parque de Campismo da Vieira, aquilo é muito barato. Tenho feito por lá umas limpezas em hóteis, não me faltam patrões, e o Jacinto tem feito uns biscates. Pode ser que, entretanto, ele consiga uma pensão de invalidez, aquilo que ele tem no coração é pra toda a vida e dizem os médicos que o que ele precisa é de ar de praia. Se arranjássemos por lá uma renda barata, mudávamo-nos era para lá. Mas como aquilo é zona de praia! A casita do parque de campismo é jeitosa mas não é para todos os dias!...

E assim ia Francisca treinando, encontro após encontro, o descalçar da bota e Jacinto aprendendo, de a ouvir, a repetir a conversa a quem não a tivesse ouvido. Na verdade, a ideia de desaparecer, de repente e de vez, sem dar cavaco, ainda que cautelosa, poderia levantar poeira, já que os poria ainda mais nas bocas do povo, quiçá desse azo a uma investigação policial ou, no extremo, chegasse aos jornais de manchetes vermelhas.

As aldeias nunca perdoam a quem as abandona sem explicações, ninguém fecha a porta duma morada onde viveu muita vida sem olhar para trás, não se parte sem abraçar quem um dia teve um gesto de consideração por nós. Merece, portanto, estes parágrafos, esta alteração de lugar central dos acontecimentos, necessária à história, não estando ainda pensado ou imaginado se, às páginas tantas, não teremos de voltar.

Bem, na preparação das despedidas, que se foram fazendo, nunca se disse “até sempre”, até porque o espaço do papa-reformas não dava para o volume da mudança e estava fora da equação fazer o transporte dos haveres nas rodas de terceiros, todos sabemos bem porquê.

Para evitarem serem novamente expostos às insinuosas apitadelas de outros automobilistas durante a viagem, com a pronta colaboração do Pisca-pisca, motorista profissional, tinham aproveitado estes dias, para dar umas lições de condução pelas ruas da aldeia à Francisca, nata de maior destreza e atenção do que o nefelibata do marido.

Tinham aproveitado estes dias para estabelecer contactos e encontros com o agente imobiliário, entregar documentos e sinais, preparar a escritura.

 – Sabe, o meu pai fez-me uma transferência e quer que a casa fique em nosso nome! 

Até chegar ao ponto em que lhes foram entregue as chaves da casa, já com tudo tratado, água, luz e jardim arranjado.

Reunidas portanto as condições para a carripana partir, atulhada até ao tejadilho, mulher ao volante, pendura a esfumaçar, pipi aqui, pópó ali, cá vamos nós e ala que se faz tarde!

domingo, 1 de junho de 2025

19- A incrível vida dum casal a quem saiu o euromilhões

 - Os senhores vão ali ao Parque de Campismo que eles têm lá bungalows para arrendar.

- Bungaquê?

- São umas casinhas muito jeitosas. Tenho a certeza que os senhores vão gostar!


Mas a quem interessarão as pacatas férias, numa praia pacata, do pacato casal milionário? Então não é verdade que andamos por estas linhas de escrita pela mesma razão de que o casalinho está de férias?

Sim, andamos aqui, personagens, autor e leitores por causa do mesmo prémio do euromilhões! Mas, mais do que os pequenos episódios que marcam as alterações ao seu quotidiano, interessa-nos debruçarmo-nos sobre a experiência social e emocional, para que um dia, se semelhante sorte nos vier a acontecer, possamos estar melhor preparados para o embate.

Aliás, já estamos a advinhar que a estadia agora iniciada, numa aldeia balnear de mar bravo, rude urbanismo e mal cuidado campismo para servir o lazer, não acalmará a inquietação que habita este dois pobres corações. Pelo contrário, intensificar-se-ão e aprofundar-se-ão as perguntas que sucessivamente vêm fazendo a si próprios sobre o sentido do seu quotidiano, das suas vivências e das suas vidas.

Não vamos falar destas questões nos termos das explicações primárias, dos pensamentos toscos e no verbo fácil dos dois aldeões. Digamo-lo assim:

Na verdade, Francisca e Jacinto sentiam cada vez mais o peso da pobreza, tão pobres, tão pobres, tão pobres que só tinham dinheiro. Não só não conseguiam tomar o gosto à vida faustosa que podiam levar, como não apreciavam a vida lazeirenta dos últimos tempos. Para além disso, a sua vida social era tocada com pinças e mantida por arames, extremamente frágil, de laços inseguros e de motivações casuais. Não havia um vizinho ou uma amizade com quem partilhar uma confidência ou um jantar e, pior do que tudo, não havia família.

 

O pai de Francisca, tão provável estar morto como vivo, apenas dera sinais de si numa fantasia que sabe-se lá por quanto tempo os protegeria. A Lúcia distanciara-se do lar que a criou, quem sabe se por caprichos de menina maior, por mau génio ou sangue ou apenas porque, filha de pais de lágrimas sólidas criados sem calor, nunca sentiu o encosto dum rosto maternal ou a mão amiga dum pai.

E uma netinha! Uma menina a quem ainda nunca ouviram dizer avô, avó!

Por seu lado, Jacinto, acobardara-se na determinação de não voltar mais à terra ou voltar a ver o irmão e a mãe. Já nem falamos do pai que, se ainda não estiver morto por cirrose, que morra antes que o filho o volte a ver, não vão as recordações das sovas que este levou, levantar-lhe a ira e ser o próprio filho a tirar-lhe a vida e vai daí, não haverá milhões que o tirem dum futuro na prisão.

 

Esta partilha de pensamentos e outros questionamentos existenciais foram preenchendo os dias cinzentos da casinha do parque de campismo, apenas quebrados por passeios obrigatórios e desagradáveis pela marginal, por uns comes e bebes numa pastelaria ou num café de petiscos, ou por lautas refeições num restaurante daqueles que são só para alguns.

 

Foi também altura de fazerem um balanço. Decorridos três meses da sua ida à Santa Casa, tinham aritmética para estimarem que já tinham derretido cerca de cinquenta mil euros, mas não a suficente para subtrair milhares de milhões. Numa coisa estavam de acordo, ainda tinham muito, pelo que estava na altura de abrirem os cordões à bolsa, tirar a família - entenda-se a filha Lúcia e a mãe e o irmão de Jacinto - da pobreza extrema e porque não, procurar uma casa por ali, perto do mar e longe das invejas e mentes curiosas de Vale dos Ovos.

 

Para dar cumprimento à primeira decisão ainda falta história mas para a segunda não é tarde nem é cedo:

Apitem à vontade pobrezinhos de carrinhas de trabalho e riquitos de 4x4, o papa-reformas do casal que tem, ainda não sabemos quantos, milhões vai dar uma volta pela Estrada Atlântica. E zás, uns quilómetros feitos, S.Pedro de Moel para trás, mais à frente um pouco, uma urbanização cogumelo em pleno Pinhal do Rei e junto ao mar, Pedra de Ouro, um restaurante, um bom almoço, uma placa de vende-se moradia, um número de telefone, espera duma hora por um vendedor:


- O senhor não se assuste por não termos carro nem aspeto para tanto dinheiro! Sabe, é o meu pai que estava desaparecido há tantos anos no Brasil e que apareceu agora e, segundo parece, com dinheiro. Tanto assim é que me pediu que lhe arranjasse casa na praia, que quer cá vir passar umas férias. Por força que me quer conhecer mas não quer voltar à terra que o viu nascer, não tem saudades e não quer recordar a miséria que por cá viveu e nos deixou!

 

Jacinto ficou de tal maneira embascado com a desenvoltura do discurso da mulher que optou por quase não abrir a boca.

Uma compra, quando não falta dinheiro e se promete um pagamento pronto, faz-se depressa.

Antes, contudo, de fechar o negócio e abrir as portas da casa nova, interrompamos o assunto antes que nos esqueçamos que temos de dar um salto a Vale dos Ovos, não vá o Pisca-pisca no entusiasmo duma bebedeira, combinar uma patuscada com a malta e dar o golpe em todos os pescoços da capoeira e, se no final estiver completamente perdido, como é seu hábito quando a mesa é bem regada, ainda soltar o cão na linha para depois gracejar de mau gosto que este se suicidou debaixo do comboio.