Laurindo, filho de Laurinda, era “um bocado atrasado” – não gosto nada desta expressão - e tinha um porte desajeitado. Vivia com a mãe solteira, a tia Canicha e o tio Zé Coxo, num dos anexos da fábrica. Eram dos lados de Mação e vieram para ali sobreviver. As duas irmãs trabalhavam na recolha da resina nos pinhais, o homem trabalhava no estaleiro onde se descarregavam, pesavam e esvaziavam os barris que iam chegando e Laurindo era um moço de recados multifacetado que fazia circular a informação dentro da fábrica e que ia à venda comprar sete e meio, uma lata de atum ou meio quilo de pregos. Durante a noite e aos domingos os quatro acabavam por fazer guarda à fábrica.
Durante o Inverno, não se almoçava no telheiro que tinha uma mesa comprida onde as mulheres, à medida que iam chegando, abriam a alcofa, estendiam a pequena toalha e retiravam o tacho, a botelha, a broa e outros condimentos, enquanto acertavam as conversas que entretanto seriam estendidas aos maridos. No tempo do frio, junto à fogueira da máquina é que se estava bem e cada um ia inventando o seu lugar, o seu assento e a sua mesa com cilindros de troncos ou com tábuas, na paisagem da lenha que ali era rainha.
Foi neste ambiente que, pela iniciativa e mediação dos trabalhadores, foi assinada, com um abraço público, a reconciliação entre o Laurindo, filho de Laurinda, e eu.
Andámos o resto da tarde por tudo quanto é fábrica e acabei por conhecer o meu novo amigo, não digo todo, porque nunca se conhece ninguém completamente, mas mais de meio porque ele era simplesmente puro e verdadeiramente sincero.
Levou-me à sua espécie de casa. Num pequeno quarto, uma cama, um armário tapado com um pano de cortina, uma cadeira e uma mesinha, tudo mobiliário sem mãos de mestre carpinteiro. Umas mantas de retalhos e alguma roupa, nenhuma com aspecto domingueiro. Na cozinha, um fogão com dois bicos e uma garrafa de gás, uma estante com alguma loiça, uns alguidares, uma mesa tosca com uns bancos toscos, o soalho com ar de nunca ter sido lavado e de ser varrido raramente, a um canto uma lareira com o chão em terra e sem chaminé, a largar conforto, ao lado da lareira um estrado com roupa desarrumada que dava aspecto de servir de cama. Afinal de contas, mesmo sendo-se muito pobre, havendo casa, tinha de haver lareira. O cenário acabou por me ser familiar porque tinha textura e cheiro de resina. Não nos demorámos.
- O que é que vocês andam para aí a fazer?!
O estaleiro ficava ali a vinte metros e o tio de Laurindo, topando a incursão no seu território, era natural que perguntasse. O homem de pequena estatura, de ar pouco ágil porque mancava, um pouco pacato, de poucas palavras, de algum vinho, era, lá no fundo, um grande homem com muito para dar.
A mulher, também gostava da pinga e dava, em tudo o resto, o perfil de que tinha sido feita para ele. Aparentemente, apesar de se estar a acabar a idade para isso, o facto de não conseguirem filhos, não os castigava.
Laurinda, mãe de Laurindo, que os acompanhava na migração – provavelmente fugindo à pena da aldeia que a viu conceber um filho amaldiçoado sem homem que se lhe conhecesse - é que era caso. Laurinda era alta, esbelta, olhos verdes clarinhos, sorriso, riso e conversa de despertar atenções. Laurinda era bonita. Apesar das roupagens a que a obrigavam as condições de vida e a faina da resina, não era mulher com quem se pudesse falar ou passar sem se ficar contente e a pensar. Não admira que o pai do seu filho fosse incógnito, algum ricaço a quem a moral não permitira estragos no nome da família!
Durante o Inverno, não se almoçava no telheiro que tinha uma mesa comprida onde as mulheres, à medida que iam chegando, abriam a alcofa, estendiam a pequena toalha e retiravam o tacho, a botelha, a broa e outros condimentos, enquanto acertavam as conversas que entretanto seriam estendidas aos maridos. No tempo do frio, junto à fogueira da máquina é que se estava bem e cada um ia inventando o seu lugar, o seu assento e a sua mesa com cilindros de troncos ou com tábuas, na paisagem da lenha que ali era rainha.
Foi neste ambiente que, pela iniciativa e mediação dos trabalhadores, foi assinada, com um abraço público, a reconciliação entre o Laurindo, filho de Laurinda, e eu.
Andámos o resto da tarde por tudo quanto é fábrica e acabei por conhecer o meu novo amigo, não digo todo, porque nunca se conhece ninguém completamente, mas mais de meio porque ele era simplesmente puro e verdadeiramente sincero.
Levou-me à sua espécie de casa. Num pequeno quarto, uma cama, um armário tapado com um pano de cortina, uma cadeira e uma mesinha, tudo mobiliário sem mãos de mestre carpinteiro. Umas mantas de retalhos e alguma roupa, nenhuma com aspecto domingueiro. Na cozinha, um fogão com dois bicos e uma garrafa de gás, uma estante com alguma loiça, uns alguidares, uma mesa tosca com uns bancos toscos, o soalho com ar de nunca ter sido lavado e de ser varrido raramente, a um canto uma lareira com o chão em terra e sem chaminé, a largar conforto, ao lado da lareira um estrado com roupa desarrumada que dava aspecto de servir de cama. Afinal de contas, mesmo sendo-se muito pobre, havendo casa, tinha de haver lareira. O cenário acabou por me ser familiar porque tinha textura e cheiro de resina. Não nos demorámos.
- O que é que vocês andam para aí a fazer?!
O estaleiro ficava ali a vinte metros e o tio de Laurindo, topando a incursão no seu território, era natural que perguntasse. O homem de pequena estatura, de ar pouco ágil porque mancava, um pouco pacato, de poucas palavras, de algum vinho, era, lá no fundo, um grande homem com muito para dar.
A mulher, também gostava da pinga e dava, em tudo o resto, o perfil de que tinha sido feita para ele. Aparentemente, apesar de se estar a acabar a idade para isso, o facto de não conseguirem filhos, não os castigava.
Laurinda, mãe de Laurindo, que os acompanhava na migração – provavelmente fugindo à pena da aldeia que a viu conceber um filho amaldiçoado sem homem que se lhe conhecesse - é que era caso. Laurinda era alta, esbelta, olhos verdes clarinhos, sorriso, riso e conversa de despertar atenções. Laurinda era bonita. Apesar das roupagens a que a obrigavam as condições de vida e a faina da resina, não era mulher com quem se pudesse falar ou passar sem se ficar contente e a pensar. Não admira que o pai do seu filho fosse incógnito, algum ricaço a quem a moral não permitira estragos no nome da família!
15 comentários:
Os homens simples são talhados sem mão de mestre e desconhecem a moral que protege o bom nome. Excelente retrato social.
Majestade,
Este texto é daqueles que se lê e relê deliciado e ainda nos fica vontade de voltar a ele e saborear em particular alguns parágrafos em que verdadeiramente criou arte através da escrita.
Que texto tão bonito!!!
Um retrato tão vivo, tão cheio de veias, artérias, coração ...
Tive muito prazer em conhecer o seu amigo Laurindo.
Também já tive alguém como ele na minha vida. São pessoas que nos dão tudo o que têm e nem mesmo esperam que se lhes dê algo em troca, agradecendo a nossa atenção e o nosso afecto, como se nisso consistisse a maior riqueza do mundo.
Como escreve bem sua Majestade. Que honra imensa ser súbdita deste Reino.
:-)
Parabéns.
Um beijinho amigo
Maria
Ficarei atento para conhecer o resto da fábrica, por agora estou saciado. Gostei muito!
Nada como um abraço para selar a paz e a amizade entre os homens.
Abraço do Zé
algum ricaço a quem a moral não permitira estragos no nome da família! - ora esta passagem até parece ter duplo sentido, dado que o mundo tem frequentemente situações tão parecidas...
de resto, gosto do estilo algo nostálgico.
abraço
As migrações eram muito usuais no Alentejo, especialmente, no tempo da miséria...
Fico esperando.
Um abraço
Compadre Alentejano
Olá Majestade!
Já ouvi muitos dizerem "a minha vida dava um filme". Do que Sua Alteza Real aqui tem relatado já há «material» tão rico, tão diverso, tão honesto para vários filmes.
Conto que Sua Majestade continue a contar os seus contos para contentamento dos que conhecem este cantinho encantador da Net! Combinado?
Cumprimentos.
Alberto Cardoso
Continua a história do Laurindo e das boas gentes de Portugal.
Gosto.
Um abraço.
Também gosto deste tipo de contos, sejam eles reais ou não...como disse e mto bem, antigamente existiam mtos filhos incógnitos.Algum ricaço a quem a moral não permitiria estragos no nome da família! Quanto ao facto, lamento...pois quem vem a este mundo não pede para nascer. Quem não quer ser lobo não lhe veste a pele. Apenas um desabafo. Uma pergunta? O seu pai pagava bem aos empregados? Pelo que tenho lido de V.Majestade leva-me a crer que tivesse vindo de uma família generosa. Um abraço democrático
Luis
Majestade,
Continuo a seguir com todo o interesse a A Fábrica do Laurindo.
Um abraço nocturno
Ora assim é que era, cuspia-se na mão, dava-se um aperto e a amizade ficava restabelecida. Bons tempos!
Abraço, sem cuspo, não há necessidade.
Gostei da forma como trataste em supless da questão do "atrasado". Num País como Portugal o assunto dos "atrasados" tem muito que se lhe diga.
A não perder os próximos capítulos.
Abraço,
Zorze
um texto ,que ê um exemplo de vida,de muitos portugueses.Neste paîs,os simples atrasados,sô o sao porque existem conservadores atrasados,que se esforcam para que,no fundo, nada mude.Achei a narrativa deliciosa e fico ä espera de mais...
Um abraco
Já tanto merecidamente lhe aqui disseram sobre este magnífico texto.
Gosto da sua escrita, é sabido.
Por isso, em tudo o que o silêncio mais lhe diga, acredite.
Para quem sabe ouvi-lo nenhuma forma de comunicação é tão leal à realidade.
Um beijinho amigo
Maria
Agora que descobri estes textos de antologia, fico à espera de mais.
O que tu sabes da vida e das vidas.
Abraço
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