A vida de criança na aldeia deixa marcas pela primeira vindima de que se tem memória, pelo primeiro porco que se ouviu cuinhar antes de morrer, pelo Ti Não Sei Quantos, quieto dentro do caixão, pelos mais antigos sapatos que se lembra de ter estreado na procissão da Nossa Senhora da Apresentação, pelo casamento que era festa de roupas novas, cantar, dançar, comer nozes e dormir onde o menino tivesse escuro para não acordar.
O primeiro casamento, de que tenho cirrus de memória, deve ter sido o último amigo da geração de meus pais a casar. Teria sido novidade porque de último, era o primeiro a casar com dinheiro da França, casa de primeiro andar com terraço, revestida a marmorite e noiva de branco que viria a tornar-se tradição. No adro da igreja, ao ver uma mulher assim vestida, lembro-me de ter perguntado à minha mãe:
- É a Nossa Senhora da Apresentação?!
Além da risada de resposta à minha interrogação, lembro-me de me ter apaixonado pela menina que ficou à minha frente na mesa do banquete, do baile e do som dele, das canções e de ver a minha mãe a cantar ao desafio com o meu pai e de ouvir palmas. Depois ficou escuro, devem-me ter levado a dormir num quarto escuro de alguma avó vizinha que cuidaria de mim também dormindo.
No segundo casamento já não era menino de embalar e assisti a tudo. Deve ter sido o primeiro amigo do meu pai a ter filha criada para dar boda. Não foi com dinheiro de França, vinham de Lisboa, provavelmente já casados de véspera, vinham também raparigas vestidas de calças e rapazes com calças à cobói e ao cancioneiro de tradição impôs-se uma canção:
E esta canção ficou por ali na aldeia a ecoar a partir de então, fez-se canção cantada como as outras que sempre se cantaram e aquele casamento ainda hoje deve ser recordado como aquele em que apareceu aquela canção.
Mais crescido, quando abril me acordou do quarto escuro, eu reconheci aquela canção, hoje esquecida, como a minha primeira canção de intervenção.
Estavam à espera que eu contasse a experiência pessoal de um segundo casamento?! Vontade não me falta! Só que ela diz que se eu fizer isso nunca mais dorme comigo nem nunca mais faz favas com chouriço!
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