Ainda ontem fiz cinquenta anos, hoje faço noventa - nem todos o poderão vir a dizer.
É fácil recordar aniversários idos. Um exercício mais arriscado será irmos ao futuro e relatar acontecimentos não vividos. E o melhor é fazê-lo já, antes que a consciência nos limite a sua descrição ou que a morte provavél nos impeça de bater no teclado.
Faço noventa anos. A minha neta teve a ideia de reunir os meus amigos de que lhe costumo falar num restaurante aonde vou há muitos anos. Sabe que não gosto de festas surpresa nem de ter na mesma mesa gente que não pensa ou que pensa que eu penso com interesses segundos. Sou o mais velho na sala, posso dizer e fazer o que me apetece. Estão presentes, a minha companheira, dois colegas com quem trabalhei, três amigos com quem discuto há anos as questões curda e palestiniana, a redução da história à história da luta de classes, a adulteração do vinho com novas castas e a necessária abertura da sociedade à poligamia. Os restantes são gente mais nova que me acarinha a idade e me tem como uma espécie em vias de extinção ou, apenas, como um velho rabugento e ressabiado que, apesar de tudo, tem graça e diz umas verdades.
Falo já arrastadamente mas, como falo baixo e raramente, quando falo para um grupo toda a gente se cala ou baixa a voz, não sei se por respeito, se para me tentarem perceber, ou por me admirarem .
E então digo:
- Parece impossível como uma canção de melodia tão pobre e banal, uma letra tão pobre e banal, seja o tema mais universal e mais cantado por toda a humanidade nos últimos noventa anos. Ainda por cima, na versão portuguesa, ela não dispensou o " a você" brasileiro. Detesto essa música! Por favor, não me a cantem!
Começam a filmar.
- E por favor também não me estraguem a festa com câmaras de vídeo. Vivam os momentos, não os guardem para viverem depois ou para mostrarem a outros que estiveram presentes quando, afinal, não participaram neles porque deles se arredaram por detrás de objetivas. Enfiem os telemóveis e as tabletes no reticências com apenas dois pontos, um para cada um dos carateres.
(- Olha! Obedeceram-me!...)
E então, do alto dos meus noventa anos, subo para cima da mesa, parto dois ou três copos - coisa que não acontecia dantes - e começo a recitar a minha versão da Ceia dos Cardeais.
(Os parágrafos seguintes contêm termos impróprios para alguns arredados da linguagem popular mas um homem com noventa anos pode dizer aquilo que lhe apetece sem pedir desculpas a ninguém)
- E vós cardeal, nunca amastes?
- Amei sim, eminência, uma donzela, pura e bela! Mas o pai dela, esse estupor, casou-a com o labrego dum lavrador!
- E nunca mais a vistes?
- Vi sim, eminência! Um dia, encontrámo-nos a sós num belo jardim! Beijei-a na boca, na testa, no nariz! Eu sei lá o que lhe fiz! Logo ali, sobre um carro de rodas, lhe mandei quatro valentes fodas!
Entretanto, eis que chega o marido - um homem alto, trancudo e sagaz! Que me exclama à bruta:
- Então? Seu filho da puta! Isto é o da Joana? Isto é o que se quer? Chega-se aqui e fode-se-me a mulher?!
E dizendo isto, exclamou:
- Ó Bento, traz cá o jumento!
- E sabeis para quê eminência?... Para me enrabar!... E entre gritos e urros - se lhe parece, ser enrabado por um burro, lá sofri o meu castigo!...
E como se não bastasse mandou que me atassem a um carvalho e, logo ali, me cortam os colhões pendentes... e o caralho.
Justiça de marido: quis foder, fodi, mas fui fodido!...
E, rezada a Ceia, bateram palmas que nem uns desalmados e eu desci da mesa amparado por três deles. Todos acharam muita graça à minha recitação e todos perceberam que só a viveram porque desligaram as máquinas.
No entanto, passados instantes, já todos estavam nas suas mensagens e a reclamar que eu soprasse velas e a oferecerem-me presentes embrulhados.
- Estais preocupados com o ambiente? Então porque gastais papéis em embrulhos? E que prendas são estas que não são livros, nem vinho, nem azeite?! Parem com as fotos! Parem de me tratar como uma relíquia! Eu não sou nem mais velho, nem mais novo do que vós! Sou vosso contemporâneo!
- Irra que o velho é mesmo rabugento!
Puxo duma colher de sobremesa e tento atacar o autor da frase.
- João tem calma! São jovens, não pensam!
A minha neta segreda-me ao ouvido:
Rabugentos são os meus amigos! Avô, quando eu fizer noventa anos, vou fazer qualquer coisa parecido! E quando fizer cem, ainda estou para aprender com o que vais fazer!
E não é que eu ainda durei mais dez anos!...
(o título deste post foi pra facebookiano ver)
8 comentários:
Estranhei o título e vim a correr para ler a coisa como deve ser. Sabia que não eram assim tantas velas...
Cumps
Parabéns a V. Majestade, que conte muitos e que nos conte os mesmos.
Agora vou fazer-lhe um 'like'.
Com a devida vénia
:-D
gandaaaa piela, Majestade.
90 anos?
como cresceste meu irmão
13 de outubro, essa história Cheira-me a milagre.
Quando dizer a festa dos 90 anos já as câmaras de vídeo, os telemóveis e os tabeletes serão obsoletos. Terá que mudar essa parte Vossa Majestade. A tecologia já será outra.
O raio da música é que será a mesma.
Parabéns
Obrigadinho, ó mano. Já me adiantaste serviço (e eu sei do que falo...)
Oh Majestade esse marido recitado não tinha mesmo mente aberta à poligamia. Depois ainda há quem diga que abrir cabeças é tarefa fácil :-)
Eu gostava de estar na festa dos seus 90 anos, mas Vossa Majestade não me convidou.
E olhe que tenho umas teorias também sobre a Palestina : a culpa toda foi de Abrão que fez um Ismael à serva e um Isac à Sara e até hoje o pessoal não se irmaniza :-).
Espero que assim que Vª Majestade faça anos daqui para a frente se recorde deste fiel leitor. Prometo fazer-me acompanhar de guitarra portuguesa e por certo não escapará ao fado de ser parabenizado por uma voz sempre presente. Fantástico texto !!! ;-)
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