quarta-feira, 28 de março de 2018

A cantiga é uma arma

A minha mãe não era saloia de todo. Viveu três anos em Alfama, como criada, e contou-me que uma vez foi de lá ao hospital de Santa Maria, sozinha e a pé, a uma consulta. Trouxe de Lisboa o gosto pelas marchas populares e pelo fado.
A minha mãe gostava de cantar sozinha ou acompanhada ou, se alguém a desafiava, à desgarrada.
A minha mãe mandou-me ir à fábrica levar uma "casse-cruta" ao meu pai porque o almoço tinha sido fraco. Ficou a encerar a sala porque era a altura da Páscoa e o senhor prior iria lá a casa. Ficou a cantar um fado que encantaria a vizinhança ou qualquer outro freguês que passasse no outeiro.
Desci a vereda e, a meio dela, ouvi cantar a Maria Rosa que guardava as cabras; passei pela almuinha e encantei-me com a cantiga da Maria da Quinta que colhia tomates; cheguei à ribeira e levei no ouvido a canção da Maria da Graça que lavava roupa; segui pela tapada e cantei com o eco das quadras da Maria dos Anjos que regava o milho; às primeiras casas escutei a Maria Natividade a rogar pragas no curral dos porcos; à porta da Maria da Luz só os cães ladravam. Cheguei à fábrica e o Cossa assobiava uma melodia em alta fidelidade; no canto das suas máquinas, o Torneiras entoava as suas canções brejeiras.
O meu pai mandou-me de volta e recomendou-me que fosse a cantar para enganar o medo dos cães da Maria da Luz, dos porcos da Maria Natividade, da tapada da Maria dos Anjos, das cuecas da Maria da Graça, dos colhões da Maria da Quinta, dos cabrões da Maria Rosa.
Ao entrar em casa a minha mãe continuava a moldar o seu fado.

Isto é, era normal cantar. Teria razão o Marceneiro que dizia que as gravações e a rádio iam dar cabo do fado? Hoje quem canta ou assobia - ainda há quem assobie? - uma melodia enquanto trabalha ou caminha não é visto como normal!

Para quê cantar se há quem cante por nós? Dedilham-se os botões do aparelho e ele dá-nos música.

E, já que estou em maré de me virar contra quem não canta, também não perdoo aqueles que cantam aquela palha, sem nunca transportar uma estrofe revolucionária que dê voz à voz do povo. Poetas e cantores que não encontram poesia para um protesto, que não encontram acordes para uma insatisfação, que não musicam um grito para uma revolta (rapazes do rap dou-lhes o meu carinho!).
Nem sequer se pode perdoar a cantores de maio e abril, que foram cantando e tocando cada vez melhor, grandes produções - dizem eles - tão grandes que já não cabem no salão da associação.
Puta que os pariu e ao vosso profissionalismo musical!

Já só canto no carro e no chuveiro quando estou sozinho. Que ninguém cante comigo eu ainda aguento, não suporto é que haja sempre um voz familiar a repreender-me: ó pai, cala-te! ó pai, nem na letra acertas! ó homem, as pessoas vão saber que tu és maluco!...

Não é que eu não cante bem, não tenho é voz e tenho muito medo do sucesso.

3 comentários:

cid simoes disse...

És O Calas da tua terra.

Rogério G.V. Pereira disse...

Julgava-me único

ó avô, cala-te! ó avô, nem uma letra acertas!

Queres formar um dueto?


Zambujal disse...

Tens medo do sucesso... mas assim não te safas! És um sucesso!