sábado, 2 de fevereiro de 2019

Florbela espanca os versos


Aquela espécie de soneto, sem regras de soneto mas ainda assim com qualquer coisa de soneto, não era de ler só por ler, em de banco de espera, sanita ou sarau, não era de guardar na gaveta ou de enviar por carta. Um ato de despedida onde não faltasse a poesia, uma última poesia de amante despedido. Convidei-a para um petisco no José Manel dos Ossos, saquei dum dos bolsos de trás das calças Lois a folha A4 dobrada em quatro, provei o vinho, desdobrei o manuscrito, pousei-o sobre a toalha plástica de padrão xadrez, pousei-lhe o copo em cima sobre um vinco, e lia-a enquanto degustava um osso, não sem antes perguntar:
- posso?

Florbela

Flor-minha-bela-ser-perdidamente
porquê? porquê perdidamente
fingindo amor-amar-perdidamente?

a porta do nascente abriu-se em cio
janela morta e dor
perdida de tanto ser amada

Flor-minha-bela-ser-perdida-a-mente
o moço de recados de prazer
partirá pelos prados férreos do poente
como quem parte do sítio da chegada

Flor-minha-Bela
parte! parte perdidamente!

perdido eu também fico
e também parto descontente
de perder-te.

Florbela espancou todos os versos, um a um, comeu e bebeu tanto quanto eu, retribuiu-me de igual para igual todos os olhares, pagou a conta e terminou, numa entoação de desprezo, com a expressão:
- Poetas!...

Como poderia eu ser um poeta se, passados tantos anos e enganos, não resisto, a despropósito, de borrar a escrita e terminar com um nome capaz de acabar de vez com toda a poesia? augusto santos silva!

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