domingo, 30 de junho de 2019

O Pensador da esplanada do Samambaia


Quando Egídio virou urbano, assentou praça numa grande esplanada da base de um prédio médio, num bairro com pequenas moradias. Foi lá que ganhou o hábito do galão e da torrada, do café com cheiro, da imperial com tremoços e do jornal diário. A princípio a mesa era só sua mas, com o andar do tempo, das conversas triviais, do futebol, da esquerda, da direita, dos livros, dos poetas, das histórias, dos filmes, dos discos, dos espectáculos, a mesa encheu e estendeu-se a outras ao lado. Egídio fez amigos, grandes amigos que com ele na esplanada planeavam frentes de salvação nacional, negócios, sonhos mas sobretudo saídas e noitadas e, às vezes, também se estudava.

Egídio estava a crescer. O pai, agricultor, pagava-lhe a vida ali para ele ser doutor. Não poderia adivinhar ou entender que já era muito mais do que isso, um homem pensador.

Com o andar dos anos os amigos começaram a partir e a casar e Egídio começou a ficar só com o Casimiro que fazia acrobacias com a bandeja. A namorada de Casimiro ganhou caminho para o quarto arrendado do Egídio e acabaram ambos por levar um enxerto de porrada.

Para evitar Casimiro e esconder os hematomas dos outros clientes da esplanada, planearam ambos arrendar um T2 num bairro do outro lado da cidade mas Egídio, pensador, não adivinhou novos amigos nem uma esplanada como aquela em que a bandeja vazia caía umas vezes pelo falhanço de uma acrobacia outras vezes porque Casimiro gostava de chamar a atenção. Dados os factos, acabaram-se as brincadeiras e se, a Casimiro não faria mossa ter uma namorada que fumava muito, que teve um deslize e que tinha muito horror aos bois e ao campo, já o pai de Egídio, camponês, nunca suportaria mulheres que fumassem e em segunda mão. Mas mais dia, menos dia, exigiria de tanta mesada, ao menos, a ponta dum canudo!

Sem curso, sem amigos e sem namorada, Egídio voltou ao pai...
- Isto na cara?! 
- Foi um professor que me bateu!
.. e à terra demonstrando os seus conhecimentos de Coimbra. Ainda tentou a lavoura adquirindo um tractor em troca dos bois mais uns fundos cee. Ainda foi três meses professor de português. Ainda quase casou com uma professora de Francês.

Mas, com o andar dos anos, Egídio habitou-se à pequena esplanada dum café, que fica no largo grande da pequena aldeia e voltou a falar de coisas triviais, de futebol, da esquerda e da direita, de livros, de poetas, de histórias, de filmes, de discos e espectáculos e, se alguém lhe prolonga a atenção, saca dos grandes amigos do passado - alguns grandes senhores agora! - diz que vai fazer vida com uma brasileira, que vai montar "negócio de fartura", que isto vai dar fome, que o português matou a agricultura - não amanhou, agora que se amanhe!

Enfim, um pensador! 
PS: Todos nós temos uma esplanada e conhecemos um Egídio. Porque todas as vidas são grandes, só se pode falar delas em síntese, como me aconteceu agora neste texto pequeno e trivial. Hoje fui ao funeral do pai do Egídio, estive na esplanada do café da terra e diziam as bocas, que falam com espuma de cerveja, que o filho não quer é trabalhar, que tem uma grande vida e que acabará por morrer não se sabe como. - Ora! Nem eu!
Pensemos: Desde quando é que pensar não é trabalho!? Desde quando é que viver não é mais do que pensar!

1 comentário:

Anónimo disse...

... e se cansa!
G'anda texto!