sexta-feira, 27 de setembro de 2024

Elogio póstumo

 Companheiro de águas passadas, perdemos a meada ao caminho da poesia. A poesia é o caminho dos condutores de palavras. Os júris falam da engenharia e da arquitetura das palavras, as palavras devem ser complicadas, de modo a serem só compreendidas por pessoas inteligentes e complicadas. Mas para nós, simples, os poemas teriam de ser como borboletas, teriam de nascer e morrer no mesmo dia e, assim, irrompiam de ti versos espontâneos a um ritmo que a escrita não podia acompanhar. Vinham aos jorros entre a espuma de cerveja nos teus lábios, muito menos pensados do que os das pessoas simples da terra que cantavam à desgarrada, enleavam-se no fumo dos charros e cigarros. Se fossem escritos perdiam o sentimento. Os versos eram donos e coisa do momento e, quando começavas a debitar o que sentias, o grupo inteiro se envolvia e até os poetofóbicos metiam no meio um verso ou uma palavra, de modo que de poesia de todos se tratava. Um verso era uma onda efémera que se formava da ventania dos nossos pensamentos e que desaparecia no areal do céu das nossas noites longas. Mais uma cerveja. Talvez mais um poema coletivo até que o homem de serviço dissesse que ali no café não se falava de política. Quando nós até dizíamos que faltava política à poesia e poesia à política. Depois, para que se adiasse o regresso às casas frias e pobres onde dormíamos, alongávamos o caminho pelo arrabalde e lá te vinha outra vez um ataque de poesia onde, na pausa certa, até o zé, que não sabia uma letra, metia uma farpa de poeta. E se acontecia a perturbação dos faróis dum carro na nossa direção, de certo conduzido por um velho, que não perceberia ponta dum chavelho das conspirações da juventude, muito menos de poesia, algum de nós haveria de ordenar:

- Apliquemos o velho truque, fingimos que estamos a mijar!...
Até que um dia, Egídio, farto da política sem poesia, decidiste passar-te. De anarquista passaste a usar fato e gravata, de republicano passaste-te a monarca e, como se não bastasse, o rei eras tu. Nova monarquia. O partido será fundado sobre o cadáver do rei. O motociclo de el-rei, chamavas tu à tua Casal 2.

Já nada sei de ti há muitos anos. Mas nestes tempos que nos vencem todos os dias, vem-me muitas vezes a força da tua esperança:
“Sei que perdi os mares e o império e a satisfação do momento
mas é preciso não esquecer o chilrear das aves que se amam ao nascer do sol”.



2 comentários:

Janita disse...

Como se perdeu o caminho à Poesia se neste texto, sem um único verso, há mais Poesia do que em todo o Universo Poético já escrito ou por escrever?

E ainda hoje eu li, num blog sem imagens - a não ser de longe a longe - as pinturas do autor, que os blogs haviam sido dizimados pelas redes socias que expõem imagens e escancaram portas à futilidade vã. (Atenção: estas palavras são minhas, por não me ocorrerem as originais)
Discordo! Por aqui, neste blog, a imagem não foi coroada rainha - continua a reinar a escrita do Pata Negra - e muito menos a palavra foi deposta e exilada.
Por vezes, dá ideia de ter adormecido, é certo, mas logo vem uma aragem fresca que a faz sacudir o torpor e recupera o vigor.... :)

Pata Negra disse...

Muito obrigado pelas suas palavras Janita.