domingo, 26 de janeiro de 2025

1- A incrível história dum casal a quem saiu o euromilhões



Ter passado os últimos dias envolta na fantasia: se ganhar vou logo pagar o que devo, dar a este e àquele isto e aquilo, dar ao próximo, não dar nas vistas, uma casa, um carro, uns brincos, ir a Fátima, ir ao Brasil, ser rica e continuar a mesma.

Acordar de vez em quando e pensar que milhões de jogadores passam pelos mesmos pensamentos; que há gente que não investe na sua vida, crente que é desta que a sorte lhe baterá à porta; que afinal não passa de mais um opiáceo que é dado ao povo para conter a sua razão - que importa? Deliciosa ilusão! Até ao momento em que o sonho se desfaz frente à televisão e se lança mais um papel para a fogueira:
– Mal empregue o meu dinheiro!
Depois começará uma nova semana, um novo ciclo em que aqui e ali se irá ouvindo:
- Tenho de ir meter o euromilhões!
Não ela, que só jogou desta e foi exceção! E ai se o homem sabe!...
 
Pensamentos interrompidos pelo ruído da Sachs a subir a pequena ladeira que leva à casa inacabada, uma barraca no julgamento malacioso de vizinhança pouco certa. A aceleração de todos os dias, o mesmo chiar de travão, o parar do motor no alpendre de chapa junto à porta da cozinha. O trolha vai entrar.
 
Podia ter arranjado homem melhor, um engenheiro não que sempre fui burra na escola, um que ao menos conseguisse tirar a carta de condução!... Rico não, que sempre fui pobre demais para gostar deles... 
Com o andar dos anos vai mudando a maneira como gosta dele mas ainda gosta, não é de se cuidar no que veste ou no cabelo mas não bebe mais que os demais.
Hoje, por ser sexta-feira, é capaz de já vir um bocado entornado. Vê-se, entrou nem disse ai nem ui, daqui a um bocado começa a mandar vir por qualquer coisa. Acende o lume, é ele sempre que acende o lume, acende um cigarro com uma brasa na tenaz e é capaz de ficar dócil se se entretiver com a televisão. Vai dar o euromilhões. Ai de mim se ele sabe que eu joguei!
 
O homem também joga e tem uma forma estranha de jogar que quase todas as semanas ganha: preenche com uma, duas ou mais chaves num boletim mas não o entrega. Assiste ao sorteio, regista a chave e diz para a mulher:
- Esta semana não joguei três apostas, ganhei sete e meio, sempre dá para um almoço!...
- Quais foram os números?
- 10, 20, 30, 40, 50 estrelas 2 e 5.

Não pode ser escrito, tem de ser decorado. Desconfiará ele se lhe pedir para repetir? Repetiu. Dirige-se ao quarto onde guardou o boletim como quem caminha para a retrete quando tem diarreia, o tempo do percurso não limpará a memória dos sete números. Aguenta.

- 10, tenho... 20, tenho... 30 tenho – já dará para a despesa! - 40, tenho... – Elá! Calma coração!... 50!50!50? – Ai! Ai! Isto já é dinheiro! Estrelas? – 2 e 5!

Faz uma segunda, uma terceira leitura, confirma novamente a sequência: sim... Também, também, outro e outro! - Gaita isto deve ser muita massa! Duvida da sua memória. - Ai o meu coração! Não vejo mais! Vejo! Estrela! Estrela! Porra ganhei! Ganhei! Ai que não consigo ficar calada! Tenho de lhe dizer! Vou-lhe dizer! Controla-te! Controla-te!... E se ele viu mal os números?... Eu troquei os números, nunca tive jeito para decorar!

Regressa à cozinha, ele junta o fumo do cigarro à tiragem da chaminé. Em voz trémula e baixa pede-lhe a confirmação dos números. 

– Não te os disse? Também, que é que isso interessa? Não me digas que gastaste dinheiro nessa porcaria?

À voz irritada ela responde com um soluço “sim-sim” com a cabeça! Ele acentua a exaltação, ralha irracionalmente e não a ouve, mesmo quando ela, com o ritmo cardíaco descontrolado e a expressão de quem acaba de saber que lhe morreu alguém, sussura timidamente “mas calhou!...” ele continua e arranca-lhe o talão que ela segura entre ambos os polegares e indicadores e, cego, ergue-o na mão, lança impropérios ao vício do jogo, atira-lhe a autoridade de marido que se esfola a trabalhar para ela, aquela que agora resolveu brincar com o dinheirinho dele, atira-o para o lume e grita-lhe “nunca mais!”.

 

1 comentário:

Janita disse...

Ai, Senhor Jesus Cristo...! Quem ia morrendo com uma apoplexia era eu!
Ah, mas isto não pode terminar assim...

Se bem li na publicação de domingo passado, os leitores também tinham uma palavra a dizer, quiçá, acrescentar um ponto ao Conto.
Nesse caso, se o pregador não tiver mentido, eu pretendo acrescentar que a mulher do brutamontes, não era tão parvinha quanto se imaginava e a imaginavam.
Era até uma boa alma, simples e de boa índole, tanto assim que durante toda a semana planeou, honestamente, caso a sorte lhe batesse à porta, pagar a quem devia, ajudar quem precisasse e depois...depois, logo se veria.

De modo que, conhecendo de ginjeira o homem com quem vivia, há um ror de anos, jogou pelo seguro...E o que fez a Maria? - chamemos-lhe assim, pois toda a gente tem direito a ter um nome - Isso só será revelado, por mim ou por quem quiser escrever este Conto a várias mãos, quando o Monarca deste Reino nos der o seu aval.

E agora, se eu tiver entendido tudo mal, e for atirada para o lamaçal, onde fuçam os leittões, é o mesmo. Tomo um duche e fico como nova...

Abraço!