sábado, 7 de abril de 2018

Um pedaço de pequeno ódio numa grande cena

A Cena do Ódio é um dos maiores desabafos da minha vida e nem sequer tive o trabalho da escrever. Tenho, portanto uma grande dívida para com o Almada Negreiros. Por estes versos, bolço pedaços de alma, limo unhas em palavras de pedra, contenho ais em carateres fechados, aconchego a minha pequenez no grande poeta, beijo os meus, ergo dedos médios aos demais, peido-me, mijo-me, cago-me, entorno o vinho, olho para mim, olho para ti, dente por dente, verso por verso e, passados tantos anos, o ódio continua pertinente e a cena é a mesma num cenário diferente. 
....
Eu invejo-te a ti, ó coisa que não tens olhos de ver!
Eu queria como tu sentir a beleza de um almoço pontual
e a felicidade de um jantar cedinho
co'as bestas da família.

Eu queria gostar das revistas e das coisas que não prestam
porque são muitas mais que as boas
e enche-se o tempo mais! 
Eu queria, como tu, sentir o bem-estar
que te dá a bestialidade!
Eu queria, como tu, viver enganado da vida e da mulher,
e sem o prazer de seres inteligente pessoalmente!
Eu queria, como tu, não saber que os outros não valem nada
p'ra os poder admirar como tu!
Eu queria que a vida fosse tão divinal
como tu a supões, como tu a vives!
Eu invejo-te, ó pedaço de cortiça
a boiar à tona d'água, à mercê dos ventos,
sem nunca saber que fundo que é o Mar!
Olha para ti!
Se te não vês, concentra-te, procura-te!
Encontrarás primeiro o alfinete
que espetaste na dobra do casaco,
e depois não percas o sítio,
porque estás decerto ao pé do alfinete.
Espeta-te nele para não te perderes de novo,
e agora observa-te!
Não te escarneças! Acomoda-te em sentido!
Não te odeies ainda qu'inda agora começaste!
Enjoa-te no teu nojo, mastodonte!
Indigesta-te na palha dessa tua civilização!
Desbesunta te dessa vermência!
Destapa a tua decência, o teu imoral pudor!
Albarda te em senso! Estriba-te em Ser!
Limpa-te do cancro amarelo e podre!
Do lazareto de seres burro!
Desatrela-te do cérebro-carroça!
Desata o nó-cego da vista!
Desilustra-te, descultiva-te, despole-te,
que mais vale ser animal que besta! 
...

um pedaço da Cena do Ódio de Almada Negreiros

3 comentários:

O Puma disse...

Que vivam as pedras
abaixo os calhaus

Abraç

Manuel Veiga disse...

"ódio antigo não cansa" - sempre ouvi dizer nas minhas berças
dito inventado por um qualquer calhau, está bem de ver!

Maria disse...

Fantástico!