domingo, 29 de junho de 2025

Rei dos Leittões volta a publicar

Gostamos mais de papel, quer se trate de livros, quer se trate de dinheiro: eis a razão primeira que me levou a voltar a publicar. 

O Caminho do Fim da Terra é um livro de bolso para ler num dia de verão e pode interessar a três tipos de leitores: a quem já foi a Santiago a pé, a quem nunca foi a Santiago a pé mas pretende ir, a quem nunca foi nem nunca irá a Santiago a pé.

SINOPSE:

Sete Pés é um jovem que perde a mãe, ficando sem família. Sentindo-se livre, resolve então dedicar-se àquilo que mais gosta de fazer - caminhar - e parte para Santiago de Compostela. Durante o Caminho conhece Marie France, com idade para ser sua mãe, e prolonga com ela o Caminho até Finisterra para viverem uma paixão. A chegada a Finisterra, meses mais tarde, é ensombrada pela morte e Sete Pés é preso sem fazer questão de provar a sua inocência. 


O Caminho do Fim da Terra pode ser pago por meios digitais. Dez euros com portes de correio - é só dar a morada. Se for entregue em mão e pago em papel, é menos um euro.

À venda na Bookmundo online:
Pagamento por Multibanco, Cartão de crédito, PayPal ou MBway.
É um livro de bolso para ler num dia de verão. Também é bom para oferecer a três tipos de pessoas.

23- A vida incrível dum casal que ganhou o euromilhões


Vale do Ovos continuava a rodar à volta da estação e a ver passar comboios, até ao dia em que um estranho desembarcou na linha 2 e entrou no Café da Estação. Era um homem magro, de roupas gastas e barba desarranjada. O olhar cansado denunciava uma vida dura e o cheiro a estrada percorrida infiltrava-se no ambiente. Sentou-se pesadamente numa das cadeiras e, com um fio de voz, perguntou:

— Alguém aqui conheceu o Marçal Marques?

O silêncio instalou-se por um breve momento. O nome, recordado por alguns, poderia não ter causado grande impacto, mas a forma como foi pronunciado fez com que os olhares se cruzassem.

O Pisca-pisca, que até então bebericava a sua cerveja tentando manter o disfarce de sempre, sentiu o corpo enrijecer. Abílio interrompeu a lide do lava-loiça, virou-se para trás e dedicou olho e meio ao homem maltrapilho.

— Quem pergunta? — disse em voz de dono da casa, entre a curiosidade e a desconfiança. O forasteiro ergueu o rosto e respirou fundo antes de pilgarrear:

— Não me reconheces? Eras um garoto!...

O café explodiu em murmúrios. O suposto milionário brasileiro, cuja fortuna sustentava a nova vida do casal que por aqui se conta, estava ali, à vista de todos, sem um tostão furado. O plano cuidadosamente montado começava a desmoronar-se.

O Pisca-pisca, de olhos arregalados, foi o primeiro a quebrar o silêncio:

— Então... você é o pai da Francisca? Mas disseram que estava no Brasil,  a nadar em massa!

O velho riu-se, um riso triste, frouxo e rouco.

— Brasil? Dinheiro? Eu ando aos caídos pelas ruas de Lisboa há anos... Finalmente, arranjei uma réstea de força e coragem para procurar a minha filha que, confirmo, conheceis sobejamente.

Estava, portanto, o caldo entornado. Era agora claro que Francisca e Jacinto andavam a enrolar o mundo inteiro e não as perderiam pela demora. Mas era também certo que aquele desgraçado que ali estava de cabeça arrependida, não tendo corpo para as levar, teria pelo menos de as ouvir, antes de ser despachado como um embrulho sem destino, no primeiro inter-regional que ali parasse. Muito embora da sua triste figura atual fosse difícil reconhecê-lo, muita gente daquela terra mantinha a memória de o ter conhecido e os restantes, os mais novos, tinham pelo menos ouvido falar do pai que abandonou a recém-nascida à sua sorte, depois de a mãe lhe dar nome e adormecer para sempre. Um gesto cobarde como esse não tem perdão, mesmo se já pouco lembrado e perante o arrependimento confesso do seu autor.

Este despertar da memória da má sorte da pequena Chica, atenuava até a revolta recém-nascida pela presença do velho, que se tornarara testemunha e prova da grande mentira que ela e o companheiro andavam, há uns meses, a espetar a toda a gente.

Ao longo da tarde, os clientes do Abílio foram entrando e saindo, por acaso ou curiosidade, uns limitando-se ao consumo ou à avaliação do ambiente e outros, contribuindo com perguntas e sentenças para o julgamento popular, se antes não lhe podemos chamar linchamento verbal, tais eram os termos em que se dirigiam ao homem, quebrado, que ali permanecia como se estivesse cercado de ira num beco sem saída.

As pessoas são mais sensíveis ao sofrimento dos que tiveram um passado de boa vida, do que à desgraça dos que sempre foram desgraçados, basta olhar para a forma distinta como se preocupam com as tragédias humanas, conforme elas ocorrem no primeiro, no segundo ou no terceiro mundo. E isto, mais do que castigar Marçal Marques pelo ato cobarde que cometeu, há quase cinquenta anos, quando abandonou a filha recém-nascida, explica a forma rude e cruel como era recebido e tratado.

A humilhação foi de tal monta que, com a noite a abrir-se, o Pisca-pisca desfez-se em emoção alcóolica e dirigiu-se para o destroçado que jazia, silencioso e só, na mesa do canto:

- Estás à espera que não haja mais comboios? A estação não tarda muito fecha!

- Não saio daqui enquanto não souber da minha filha!

domingo, 22 de junho de 2025

22- A vida incrível do casal a quem calhou o euromilhões

 


Pois logo agora em que ponderamos mudar de local para que a história retome rumo, um pintor de construção civil que anda a trabalhar na moradia do lado, estica um olho pela janela para espreitar um corpo de mulher que se bronzeia numa espreguiçadeira.

 

Chamam-lhe o Jápintas e, entre pinceladas, tem por distração entreter a vista a mirar privacidades. Embora não se consiga observar o rosto da presa no melhor ângulo, faz-lhe lembrar muito a cara da Francisca do Jacinto.

 

- Coitada da desgraçada, a esta hora deve de andar a limpar retretes na Praia da Vieira, enquanto o homem repete cervejas e cigarros numa esplanada. Nem ela tinha corpo nem feitio para se estender assim ao sol como uma lagartixa!

 

Mas, como no dia seguinte se tivesse repetido a visão da vizinha e conterrânea, Jápintas não adiou a invenção dum pretexto para tocar à campainha. Por exemplo, um pedido de desculpas pelo ruído que iriam causar enquanto tivessem de ter ligado o compressor.

 

Foi Jacinto quem abriu a porta pelo que logo ali se esclareceram as dúvidas sobre a identidade do corpo da mulher. Jacinto, com cara de quem não tem onde se enfiar, sentiu o corpo a enrijecer enquanto Jápintas revelou um riso vitorioso e sarcástico de quem descobriu uma grande careca.

- Nem quero acreditar! Que andas tu aqui a fazer rapaz?

- Isso pergunto eu! Eu ando a fazer um serviço aqui ao lado! E tu? És chofer do dono desta casa?

 

As explicações de Jacinto foram um emaranhado de contradições. O casal tinha levado longe demais a sua criatividade. Se tivessem mantido a história do pai de Francisca como fonte de todas as riquezas, poderiam agora apresentar a justificação simples da casa ser do brasileiro como disseram ao vendedor imobiliário. Mas não, quiseram reduzir-se aos trabalhos e aos biscates em hotéis, à residência num bungalow, à vida pacata e remediada e, agora, tem de se haver com a difícil tarefa de inventar em tempo real.

Primeiro, Jacinto viera só arranjar umas persianas. Depois, confrontado com a presença de Francisca:

- Pois é, sabes como é! Os donos não estão cá, ela veio comigo e aproveitou para um mergulho!... Ó Francisca chega aqui, temos visitas!

Francisca, que não ouvira o diálogo entre os dois, manda entrar o pintor e oferece um copo com o à vontade de quem está em casa sua. Como se não bastasse, para aumentar a confusão instalada, veio com a sua ocupação de mulher-a-dias, dando um golpe fatal na credibilidade de toda a história.

 

Já de cerveja na mão, Jápintas afiou a língua e atirou sem dó:

- Mas vocês estão a fazer de mim lorpa ou quê? Vocês estão é ricos e não querem que ninguém saiba!

Francisca, mais hábil na arte da ficção, não teve outro remédio se não ir repescar novamente o pai para a rede, como proprietário do casarão de praia e patrão dos caseiros, filha e genro.

 

Sem direito, ou razão maior para os contrariar, Jápintas lá voltou para o seu trabalho pouco convencido, com dúvidas de que seria capaz de manter o segredo que eles lhe pediram, sendo que, nos dias que por ali andou, todas as tardes foi cravar uma cerveja aos dois amigos.

 

Este incidente despoletou um grave desentendimento no casal, que há tempos vinha acumulando tédio, apenas quebrado por pequenas discussões sobre o que comer, o que comprar ou o que fazer e grandes desentendimentos filosóficos sobre a vida que tinham e as razões de viver. Ter a questão económica garantida pode assemelhar-se à perda do leme que nos conduz para o futuro, o Jacinto e a Francisca aceleravam a sua marcha para a desorientação total.

 

A certa altura ainda puseram a hipótese, se não seria melhor acabar com o segredo, com as mentiras e enfrentar os perigos da vida milionária, mas acabavam sempre por voltar às razões do princípio. Ora, esse risco pairava no ar sempre que os problemas conjugais ameaçavam a prata do casamento, pelo que, antes que a relação descambasse de vez, Jacinto arrumou as malas, negociou com um taxista e partiu sozinho para Vila Facaia, nas suas palavras, para espairecer.

 

Francisca despediu-se com a frieza adequada à situação e entrou em casa a desenhar projetos de vida boa que a preenchessem até ao Natal, altura em que iria receber o telefonema da filha.

 

Assaltava-a recorrentemente, contudo, uma preocupação maior, a probabilidade do pintor, chegado a Vale dos Ovos, ter feito estragos na sua reputação, por abuso de bater com a língua nos dentes.

 

Deixemos pois a Francisca a inventar dias felizes e vamos nós até Vale dos Ovos, ver se há novidades.

domingo, 15 de junho de 2025

21- A incrível vida do casal a quem saiu o euromilhões


A casa ficava na primeira linha junto ao mar, a quase 40 metros de altitude sobre a praia, portões e muros para alta privacidade, jardim e piscina com vista livre sobre o oceano. Era pessoa rica o antigo dono, desfez-se dela por coisas da vida que não interessam aqui.

Pedra de Ouro é uma urbanização cogumelo, nascida no furor de finais de 70, por união de vontades duns novos-ricos de Leiria que queriam uma casa junto ao mar, onde não se vissem nem se ouvissem os pobres e os labregos. Dois restaurantes, três cafés, duas esplanadas, um minimercado que vende o necessário, ruas quase desertas, lotes em venda, casas quase novas, portas robustas, boas fechaduras, calma, paz e calma, brisa, azul e verde.

 

Toda a gente sabe identificar ao longe um agente imobiliário, uma mão segura o telemóvel ao ouvido, a outra segura um molho de chaves, de modo que nos cumprimentam sempre com um aceno e uma única palavra, para não interromperem o telefonema, ao mesmo tempo que nos esticam dois dedos para não deixar cair as chaves.


- Lá está ele! É aquele bem vestido que anda ali dum lado para o outro!


Estacionaram o papa-reformas junto ao portão, o vendedor caminhou na sua direção, cumprimentou-os nos modos já descritos, após alguns intantes desligou a chamada e pediu desculpa como era seu dever. Entraram os três, apontaram-se pormenores, experimentaram-se botões, testaram-se fechaduras, uma hora de aprendizagens e lições, a casa é vossa, qualquer coisa é só ligarem, a escritura está marcada para

 

Quando se viram os dois a sós, o papa estacionado na garagem, já era hora de almoço. 

- Aquele ao fundo da rua vende para fora, trazemos duas doses, duas garrafas e vamos experimentar a casa.


Duas pessoas estreiam uma casa grande, almoçam bem, de vez em quando correm a casa ou o jardim em reconhecimento, de quando em vez espreitam a rua ou mar numa janela, às vezes voltam à mesa para mais um gole ou um amendoim.

 

Uma casa junto ao mar. Não precisar de trabalhar. Um sonho?

- Ao menos aqui ninguém nos chateia!

- E o que vamos fazer amor?

- E o que vamos fazer, amor?

- Nada!

- Ainda não está tempo para a piscina!


Depois dum longo dia, dum longo serão e duma longa noite, seguiram-se longos dias, longos serões e longas noites. O tédio consumia-os, poucos afazeres, poucas conversas, nenhum beijo.

Uma casa junto ao mar. Não precisar de trabalhar. E depois?

- Passamos a vida a chatear-nos um ao outro!

Ninguém anda aqui para se deleitar com o relato duma vida comum a tantos casais sós: não faziam ponta dum chavelho, não tinham falta de dinheiro, tinham saúde para comer o que lhes desse na gana, estavam pelo pescoço um do outro, amor pouco, sexo nenhum, projetos zero.

 

Do seu interesse quotidiano, quase só, tudo o que estiver relacionado com a experiência de lhes ter saído o euromilhões: imprevistos, cuidados e pensamentos.

 

Pensamentos nunca faltam a quem leva uma vida monótona. 

Francisca esperava pelo telefonema de Natal da filha para lhe contar que a podia ajudar. A este anseio, Jacinto somava a culpa de não voltar à terra natal para ajudar os seus e estava a ficar farto de não fazer nada, de não ter ninguém com quem trocar umas bocas no café e da mulher dormir sempre virada para o outro lado. Francisca estava a ficar farta do ressonar do marido, de não ouvir ninguém na rua e de não ter nada para fazer.

 

- Isto assim não é vida! Temos de ir passar uns dias a Vale dos Ovos!

- E se fossemos à minha terra, Vila Facaia?

 

 

domingo, 8 de junho de 2025

20- A vida incrível dum casal a quem saiu o euromilhões


 

- Amanhã de manhã arrumamos as malas, pagamos as contas e partimos!

- Podemos, na volta, passar por Fátima e acender duas velas, uma para pedir, outra para agradecer.    


Jacinto não era homem de gastar latim a tentar provar que Deus não existia mas Francisca também não era mulher que precisasse de grandes provas para acreditar na Sua existência, bastava-lhe entrar no Santuário para O sentir. Até há pouco tempo, quando se ajoelhava na Capelinha, pedia dinheiro e agradecia a saúde, agora pedia saúde e agradecia o dinheiro. E pedia também um pequeno suplemento: que a  Aparecida a ajudasse a manter de pé a mentira do pai reaparecido.

Jacinto nem sequer lá punha os pés porque, desde pequeno, aprendera a ser alérgico ao cheiro da cera, ficava nas imediações a bebericar uma cerveja e a descascar tremoços.


Registada esta prova de Fé da Francisca e a respeitável tolerância de Jacinto com os assuntos da Fé, chegaremos a casa já lusco-fusco, sem necessidade de inventar justificações para o Abílio ou ter de suportar o interrogatório dum encontro casual com um vizinho qualquer, que esteja na pesca da conversa à sua porta.

 

- Estão bem o Galhufo, as galinhas, as rolas e o resto. O Pisca-pisca merece ir amanhã dar connosco uma volta de táxi, cuidou bem da quinta. Aproveitaremos para saber da sua língua solta, o que têm dito de nós e, a coisa pensada, podemos até convidá-lo para jantar aqui em casa, com a dose certa de tinto e uma aguardente, poderemos até vir a saber mais das nossas vidas que nós próprios sabemos. Se correr bem a coisa, podemos até oferecer-lhe em desbarato toda a criação e o cão como brinde, para que possamos encetar uma longa ausência e nos livrarmos da trabalheira diária que é dar de comer à mentira, de manhã à noite, para evitar que a verdade venha ao de cima e nos afogue em desgraça.

 

Assim dito, assim feito, tal como o previsto, pagou-se a volta ao Pisca-pisca, foi-se ao Agroal, comeu-se um pica-pau, beberam-se uns brancos à pressão, tiraram-se os nabos da púcara e, no regresso, comprou-se um frango assado e umas garrafas de sete e meio para o jantar. Falou-se do futuro próximo das suas vidas com a segunda intenção do Pisca-pisca o espalhar na calhandrice.

Mas claro, não se podia chegar e dar meia volta e abalar. Era preciso conversar com as pessoas, dizer meias verdades, mentir, dar satisfações, agradar.

- O brasileiro nunca mais mandou dinheiro mas, verdade seja dita, nós também não lhe pedimos. Não somos gente de abusar da confiança.

- Temos estado no Parque de Campismo da Vieira, aquilo é muito barato. Tenho feito por lá umas limpezas em hóteis, não me faltam patrões, e o Jacinto tem feito uns biscates. Pode ser que, entretanto, ele consiga uma pensão de invalidez, aquilo que ele tem no coração é pra toda a vida e dizem os médicos que o que ele precisa é de ar de praia. Se arranjássemos por lá uma renda barata, mudávamo-nos era para lá. Mas como aquilo é zona de praia! A casita do parque de campismo é jeitosa mas não é para todos os dias!...

E assim ia Francisca treinando, encontro após encontro, o descalçar da bota e Jacinto aprendendo, de a ouvir, a repetir a conversa a quem não a tivesse ouvido. Na verdade, a ideia de desaparecer, de repente e de vez, sem dar cavaco, ainda que cautelosa, poderia levantar poeira, já que os poria ainda mais nas bocas do povo, quiçá desse azo a uma investigação policial ou, no extremo, chegasse aos jornais de manchetes vermelhas.

As aldeias nunca perdoam a quem as abandona sem explicações, ninguém fecha a porta duma morada onde viveu muita vida sem olhar para trás, não se parte sem abraçar quem um dia teve um gesto de consideração por nós. Merece, portanto, estes parágrafos, esta alteração de lugar central dos acontecimentos, necessária à história, não estando ainda pensado ou imaginado se, às páginas tantas, não teremos de voltar.

Bem, na preparação das despedidas, que se foram fazendo, nunca se disse “até sempre”, até porque o espaço do papa-reformas não dava para o volume da mudança e estava fora da equação fazer o transporte dos haveres nas rodas de terceiros, todos sabemos bem porquê.

Para evitarem serem novamente expostos às insinuosas apitadelas de outros automobilistas durante a viagem, com a pronta colaboração do Pisca-pisca, motorista profissional, tinham aproveitado estes dias, para dar umas lições de condução pelas ruas da aldeia à Francisca, nata de maior destreza e atenção do que o nefelibata do marido.

Tinham aproveitado estes dias para estabelecer contactos e encontros com o agente imobiliário, entregar documentos e sinais, preparar a escritura.

 – Sabe, o meu pai fez-me uma transferência e quer que a casa fique em nosso nome! 

Até chegar ao ponto em que lhes foram entregue as chaves da casa, já com tudo tratado, água, luz e jardim arranjado.

Reunidas portanto as condições para a carripana partir, atulhada até ao tejadilho, mulher ao volante, pendura a esfumaçar, pipi aqui, pópó ali, cá vamos nós e ala que se faz tarde!

domingo, 1 de junho de 2025

19- A incrível vida dum casal a quem saiu o euromilhões

 - Os senhores vão ali ao Parque de Campismo que eles têm lá bungalows para arrendar.

- Bungaquê?

- São umas casinhas muito jeitosas. Tenho a certeza que os senhores vão gostar!


Mas a quem interessarão as pacatas férias, numa praia pacata, do pacato casal milionário? Então não é verdade que andamos por estas linhas de escrita pela mesma razão de que o casalinho está de férias?

Sim, andamos aqui, personagens, autor e leitores por causa do mesmo prémio do euromilhões! Mas, mais do que os pequenos episódios que marcam as alterações ao seu quotidiano, interessa-nos debruçarmo-nos sobre a experiência social e emocional, para que um dia, se semelhante sorte nos vier a acontecer, possamos estar melhor preparados para o embate.

Aliás, já estamos a advinhar que a estadia agora iniciada, numa aldeia balnear de mar bravo, rude urbanismo e mal cuidado campismo para servir o lazer, não acalmará a inquietação que habita este dois pobres corações. Pelo contrário, intensificar-se-ão e aprofundar-se-ão as perguntas que sucessivamente vêm fazendo a si próprios sobre o sentido do seu quotidiano, das suas vivências e das suas vidas.

Não vamos falar destas questões nos termos das explicações primárias, dos pensamentos toscos e no verbo fácil dos dois aldeões. Digamo-lo assim:

Na verdade, Francisca e Jacinto sentiam cada vez mais o peso da pobreza, tão pobres, tão pobres, tão pobres que só tinham dinheiro. Não só não conseguiam tomar o gosto à vida faustosa que podiam levar, como não apreciavam a vida lazeirenta dos últimos tempos. Para além disso, a sua vida social era tocada com pinças e mantida por arames, extremamente frágil, de laços inseguros e de motivações casuais. Não havia um vizinho ou uma amizade com quem partilhar uma confidência ou um jantar e, pior do que tudo, não havia família.

 

O pai de Francisca, tão provável estar morto como vivo, apenas dera sinais de si numa fantasia que sabe-se lá por quanto tempo os protegeria. A Lúcia distanciara-se do lar que a criou, quem sabe se por caprichos de menina maior, por mau génio ou sangue ou apenas porque, filha de pais de lágrimas sólidas criados sem calor, nunca sentiu o encosto dum rosto maternal ou a mão amiga dum pai.

E uma netinha! Uma menina a quem ainda nunca ouviram dizer avô, avó!

Por seu lado, Jacinto, acobardara-se na determinação de não voltar mais à terra ou voltar a ver o irmão e a mãe. Já nem falamos do pai que, se ainda não estiver morto por cirrose, que morra antes que o filho o volte a ver, não vão as recordações das sovas que este levou, levantar-lhe a ira e ser o próprio filho a tirar-lhe a vida e vai daí, não haverá milhões que o tirem dum futuro na prisão.

 

Esta partilha de pensamentos e outros questionamentos existenciais foram preenchendo os dias cinzentos da casinha do parque de campismo, apenas quebrados por passeios obrigatórios e desagradáveis pela marginal, por uns comes e bebes numa pastelaria ou num café de petiscos, ou por lautas refeições num restaurante daqueles que são só para alguns.

 

Foi também altura de fazerem um balanço. Decorridos três meses da sua ida à Santa Casa, tinham aritmética para estimarem que já tinham derretido cerca de cinquenta mil euros, mas não a suficente para subtrair milhares de milhões. Numa coisa estavam de acordo, ainda tinham muito, pelo que estava na altura de abrirem os cordões à bolsa, tirar a família - entenda-se a filha Lúcia e a mãe e o irmão de Jacinto - da pobreza extrema e porque não, procurar uma casa por ali, perto do mar e longe das invejas e mentes curiosas de Vale dos Ovos.

 

Para dar cumprimento à primeira decisão ainda falta história mas para a segunda não é tarde nem é cedo:

Apitem à vontade pobrezinhos de carrinhas de trabalho e riquitos de 4x4, o papa-reformas do casal que tem, ainda não sabemos quantos, milhões vai dar uma volta pela Estrada Atlântica. E zás, uns quilómetros feitos, S.Pedro de Moel para trás, mais à frente um pouco, uma urbanização cogumelo em pleno Pinhal do Rei e junto ao mar, Pedra de Ouro, um restaurante, um bom almoço, uma placa de vende-se moradia, um número de telefone, espera duma hora por um vendedor:


- O senhor não se assuste por não termos carro nem aspeto para tanto dinheiro! Sabe, é o meu pai que estava desaparecido há tantos anos no Brasil e que apareceu agora e, segundo parece, com dinheiro. Tanto assim é que me pediu que lhe arranjasse casa na praia, que quer cá vir passar umas férias. Por força que me quer conhecer mas não quer voltar à terra que o viu nascer, não tem saudades e não quer recordar a miséria que por cá viveu e nos deixou!

 

Jacinto ficou de tal maneira embascado com a desenvoltura do discurso da mulher que optou por quase não abrir a boca.

Uma compra, quando não falta dinheiro e se promete um pagamento pronto, faz-se depressa.

Antes, contudo, de fechar o negócio e abrir as portas da casa nova, interrompamos o assunto antes que nos esqueçamos que temos de dar um salto a Vale dos Ovos, não vá o Pisca-pisca no entusiasmo duma bebedeira, combinar uma patuscada com a malta e dar o golpe em todos os pescoços da capoeira e, se no final estiver completamente perdido, como é seu hábito quando a mesa é bem regada, ainda soltar o cão na linha para depois gracejar de mau gosto que este se suicidou debaixo do comboio.

domingo, 25 de maio de 2025

18- A história dum casal que ganhou o euromilhões

 


Francisca não se esqueceu das dificuldades da Lúcia relatadas pelo Paleco no café, há dias atrás, mas estava refém da distância e do distanciamento que as separava. Não tinha o número de telefone nem a morada da malvada, não encontrava ninguém que lhe servisse de correio, pelo que não via outro remédio se não esperar pelo habitual telefonema do Natal. Também não lhe ofereceria muito, não só para não a estragar, mas também porque ela não lhe merecia a confiança do segredo. Pelo sim pelo não, iriam tratar dum testamento, porque também não era filha de se deserdar.

 

Relativamente ao destino da outra parte do “dinheiro transferido do Brasil", na circunstância de nenhum dos conjugues se autoconsiderar com qualidades ou competências suficientes para tirar a carta de condução automóvel, e sendo ambos portadores de licença de condução  de ciclomotores, foi o próprio vendedor de quadriciclo motorizado de baixa potência que lhes deu umas lições de condução até os achar prontos para os soltar na estrada.

 

Incomodados pela crescente pressão popular que pedinchava empréstimos e oferendas, que especulava sobre deves e haveres e comentava gastos e comportamentos, o casal começou a pensar em dar de frosques. Parecia impossível como não tinham pensado nisso antes. Afinal de contas que laços fortes os prendiam àquela terra? Que família? Que amigos? Que vivências? Que satisfações deviam a quem?

Por outro lado, que sentido tem ir para uma terra onde não se conhece ninguém e onde ninguém nos conhece?

- Vamos encontrar um meio-termo: vamos desaparecer durante uns tempos, amanhã mesmo vamos dar uma passeio até à Praia, se já fomos lá de motorizada, havemos de conseguir chegar lá no Bolinhas. Não temos GPS mas temos AJP!

- O quê?

- AJP – abrimos a janela e perguntamos! Daqui para o mar é só seguir o sol!

- E o que vamos nós fazer para a praia com este tempo?

- Sabes como fazem as girafas quando se sentem ameaçadas?... Fogem! É o que temos de fazer! Num hotel, numa casa arrendada ou numa tenda, havemos de arranjar cama para passar uns tempos! Não te esqueças que dinheiro não nos falta!

- E que fazemos aos animais? O que dizemos aos vizinhos?

- Matamo-los todos e arca congeladora com eles!

- O cão também?

- O Galhufo vai connosco, não ouviste dizer que também há hóteis para cães?

- Ó rapaz, mas se agirmos assim é que a malta não se vai calar e vai desconfiar! Tu às vezes falas como se fosses um puto!

- Eu sou um puto, e tu?

- Olha! Olha que eu ponho-te um mês entregue às tuas mãos!

 Jacinto acalmou e acabou a ceder.

- Falamos com o Pisca-pisca que ele trata-nos dos animais. Vamos por quinze dias para apalpar terreno e depois logo se vê. Para já matamos alguma criação que podemos levar, oferecer ou congelar.

Há automobilistas deste país que, não tendo um palmo de terra onde plantar uma couve, acham que ter a carta de condução é um título que lhes dá um direito de propriedade sobre as estradas. Como tal, sacam da sua ladainha de palavrões, sempre que são surpreendidos pela velocidade lenta duma carroça em tração animal ou tem que dar um toque de freio perante a trajetória insegura dum papa-reformas. Esquecem-se que, quando eles nasceram, já existiam outros cavalos, burros e bois como animais de trânsito e que aqueles que não têm carta de condução também precisam de circular e ir à praia.

Vem isto a propósito do estado de nervos e humilhação com que Jacinto e Francisca, um dos casais mais ricos deste país, chegou à Praia da Vieira, tantas foram as apitadelas, tantos os insultos, por gestos e palavras, de que foram alvo, ao longo do longo itinerário que os trouxe à costa azul.

Como se não bastasse, viram-lhe ser recusada a admissão no único hotel da localidade, a pretexto de lotação esgotada, quando ficara bem visto que fora o dono que não gostara do modelo do carro que estacionaram à porta, do aspeto da bagagem e do aspeto dos hóspedes.

- Os senhores vão ali ao Parque de Campismo que eles têm lá bungalows para arrendar.

- Bungaquê?

- São umas casinhas muito jeitosas. Tenho a certeza que os senhores vão gostar!

Com a humildade que lhes era nata, lá foram, acabando conformados com a recomendação, pois sim, era verdade, eram umas casinhas jeitosas. Era até muito provável que por ali se sentissem melhor do que no hotel. Além disso, não faltavam por perto casas de pasto e afins onde comer à grande e à francesa.

domingo, 18 de maio de 2025

17- A história real dum casal a quem saiu o euromilhões

 


— Então, gostaste de conhecer o teu pai? — perguntou Abílio, ansioso por ouvir novidades.

O casal trocou um olhar cúmplice antes de Francisca responder com um suspiro bem treinado:

— Foi… uma experiência inacreditável.

Jacinto ajudou:

— O pai dela… está mesmo arrependido.

 

Iniciado o diálogo, os mais dois ou três fregueses presentes, pediram licença e aproximaram-se da mesa.

- Peçam para vocês o que quiserem que eu pago uma!

Ofereceu Jacinto com uma generosidade limitada a uma rodada, como quem diz, vejam, estamos de carteira cheia mas nada que nos permita esticar por aí além, do género, “hoje é tudo por nossa conta!”

 

O grupo presente olhava o casal, enquanto este mastigava, com expressões de augamento como se estivessem em estado de prontidão para comer as palavras que da sua boca saíssem.

Jacinto e Francisca já tinham descoberto que, para evitar riscos, não seria aconselhável produzir discurso de enfiada e tinham optado pelo método de ir cedendo corda à medida das questões que lhe fossem colocadas.

 

— E agora? O que vai acontecer?

Jacinto encostou-se à cadeira, assumindo um ar modesto, mas carregado de significado.

— O pai dela não quer que nos falte nada. Fez-nos um depósito generoso e disse que quando precisássemos de mais algum, que estivéssemos à vontade para o contactar.

- Milhões?

- Também não exageremos, digamos que um montante que nos dará para fazer uns melhoramentos na casa, que está praticamente como a minha avó ma deixou!

- E para aguentarmos mais uns meses sem trabalhar para ver se recupero de vez da doença.

 

Entre murmúrios impressionados alguém disse:

— Olha que sorte!

— Depois de tanto sofrimento, ao menos agora…

- Vocês merecem!

- O que é preciso é saúde e dinheiro para os copos!

- A vida é vossa, vocês é que sabem! Nós não temos nada a ver com isso!

 

No cozinhar da descrição do falso reencontro familiar, os sorrisos do casal eram um autêntico têmpero do embuste. O plano estava a funcionar e, se a mentira fosse servida em fogo brando, a verdade nunca viria ao de cima.

 

As despesas aumentaram mas continuaram a ser contidas: alguns luxos discretos, roupas novas, alguns móveis, umas obras na casa e no quintal, nada que desse demasiado nas vistas.

Na aldeia, o rumor da fortuna do “pai brasileiro” espalhou-se como fogo em mato seco. De repente, aquela mulher simples, órfã de mãe e abandonada pelo pai, tornara-se alguém com um destino invejável. O marido era agora visto com respeito e admiração.

 

Muitos insistiam em ouvir mais detalhes da história.

— E ele contou-te porque desapareceu tantos anos? — perguntava um dos vizinhos.

— Disse que, quando perdeu a minha mãe, ficou desesperado. Que não sabia como me criar sozinho e que, num momento de fraqueza, fugiu. Mas que nunca me esqueceu.

As cabeças balançavam, compreensivas.

— Coitado, deve carregar uma culpa danada.

Jacinto completava as falas com toques de dramatismo.

— Ele até chorou quando abraçou a filha em Santa Apolónia. Disse que tinha tido medo de morrer sem lhe pedir perdão.

As expressões dos ouvintes tornavam-se sombrias e emocionadas. A história parecia blindada e perfeita.

Aos poucos, começaram a surgir os primeiros desafios.

A nova condição financeira do casal não passou despercebida. E, como sempre acontece com os que parecem ter dinheiro, começaram a surgir os pedidos.

— Já que agora tens essa ajuda do Brasil… bem que podias emprestar-me algum para um conserto no telhado… — sugeriu um conhecido, meio a brincar.

Outro veio pedir apoio para comprar um novo trator. Uma prima afastada mencionou dificuldades e deixou escapar que um empréstimo temporário seria uma bênção.

O casal percebeu que, quanto mais falassem sobre o dinheiro, mais atenção atrairiam.

 

— Temos de dizer que o meu pai manda apenas o suficiente para nós. Nada de exageros. 

 

E assim fizeram. A partir de então, quando alguém perguntava, suspiravam:

— O meu pai ajuda, sim, mas também tem as suas despesas. Se começo a pedir muito ainda fico sem nada! Do que ele nos deu, tirando algum que quero enviar para a minha filha, já sobra pouco para um papa-reformas usado que estamos a negociar.

domingo, 11 de maio de 2025

16- A história real dum casal que ganhou o euromilhões.

 


Ao terceiro dia, fartos da vida monótona e estéril do hotel, ligaram ao taxista.

- Quanto é que o senhor nos leva de nos levar duma ponta à outra do Algarve?

Com multas de estacionamento, tabaco e almoço à nossa conta!

 

Não por bom-tom mas por entretenimento, regatearam o preço e lá partiram os três contentes.

- É a 125, um perigo de estrada mas não há forma de percorrer o Algarve que evite andar a entrar e a sair dela! Se os senhores concordarem, julgo que o melhor é fazermos assim: …

… e assim fizeram, de terra em terra, praias, cais, hotéis, marginais, pontes, rios,  ria, um cafézinho aqui, uma imperial ali, conta-se que aqui aconteceu, é ali, com certeza que já ouviram falar, almoçar onde se coma bem e seja bom o vinho, isto é Sotavento, do lado de lá já é Espanha, outro dia podemos ir lá, amanhã é Barlavento, e tal… Sagres!...

- Sempre! Se houver dessa não quero outra! – disse Jacinto.

- Para hoje já chega! E depois pensamos nós que não fazemos nada! Gaita! Estou cansada!

Disse Francisca enquanto se despediam do taxista à porta do hotel.

- Até amanhã.

E, na manhã seguinte, à hora marcada, lá estava à porta o homem do táxi – Barlavento, Albufeira, Portimão, Lagos, Sagres.

- Sempre! Se houver dessa não quero outra! – disse Jacinto.

E, no dia seguinte – Sotavento, Ayamonte, Portugal.

- Sempre! Nunca gostei de espanhóis! – disse Francisca.

- Quantos conheceste na tua vida? – perguntou Jacinto.

- Nenhum! – respondeu Francisca.

- Hum! – comentou Jacinto.

 

Mais um dia e vão sete, uma semana, chega de hotel e de turistas, de Algarve e de sol, de esbanjamento e mordomias, “a gente não nasceu para isto!”, “quem gosta disto que lhes faça bom proveito!”, mas na volta até estavam a começar a dar-lhe o jeito:

Francisca mandou arranjar o cabelo e as unhas, comprou algumas roupas para logo se arrepender: não poderia regressar à terra tão cuidada e bem vestida! Por outro lado pensou na sua infância e adolescência condicionada pelos regulamentos e a austeridade da Casa da Criança. Pensou também no passo mal dado duma vida a dois, prematura, que lhe traçou o futuro e a condição de pobreza .

Jacinto, “goleando” um whisky, na varanda, recordava o seu lar de infância, a pobreza, a porrada do pai, o pai que apenas brincava com ele à sardinha, e daí o seu sonho de criança: ser campeão nacional do jogo da sardinha. Pensou no passo bem dado, a saída de casa para vir trabalhar para a linha e engatar a Francisca para partilhar com ela a pobreza e a vida traçada.

 

Quem advinharia, há um ano atrás, que eles próprios iriam trair o destino, num impulso de sorte de Francisca, que decidiu jogar no euromilhões à revelia do marido?

Um pequeno gesto que lhes proporcionava agora uma nova vida, entendendo-se como nova vida, não esta que acabavam de experenciar por terras do Algarve, que para tal vida se confirmava agora não terem nascido, mas para a vida de fazerem o que lhes apetece.

 

Fazerem o que lhes apetece, pode dizer-se, porque nos últimos desenvolvimentos começa a ser notório que a “mentira”, ou melhor, a “ocultação da verdade”, melhor ainda, a “ficção”, os está a divertir e a entusiasmar. E é melhor assim porque este é um domínio em que ambos, personagens autênticos desta prosa, o autor e porque não, os leitores, têm de se haver, o de andar para aqui às voltas, a arranjar maneira de ninguém descobrir que há duas pessoas que estão podres de ricas e ninguém pode saber. E metemos também os leitores ao barulho, porque isto de fazer fantasias sobre o que faríamos se nos calhasse a sorte grande, já todos fizeram, sendo que uma boa parte deste “todos”, fez pensamento de não contar a ninguém, se não aos amados dignos de tamanha confiança. Se esta realidade influenciará ou não o interesse por esta leitura, é difícil podermos averiguar.

 

Coloquemos, portanto, de novo a Francisca e o Jacinto no seu lugar, sentemo-los a discutir detalhes e a dar retoques na sua invertida fantasia para consumo de próximos, coisa que estão a aprender a tomar-lhe gosto. Tivessem eles escola ou leitura que lhes desse traquejo para escrever, escreveriam eles próprios essa parte, folgando-me a mim, que só Deus sabe a dificuldade que tenho em inventar, não fosse tudo isto baseado numa história verdadeira, onde a verdade só não é assumida por questões de segurança dos premiados, e há muito que eu teria despejado a saga no almofariz.

 

Não vamos agora expor o combinado para se dizer a propósito desta semana que, para todos os efeitos, foi vivida em Lisboa entre encontros, refeições, projetos e afetos entre genro, filha, pai e companhia, não esquecendo que o genro também vai ter alta e começar a poder beber umas bejecas com autorização do médico do hospital. Para não nos repetirmos ou expormos contradições, o combinado para se dizer, vai ser revelado aqui à medida que for contado, em tempo real, aos destinatários, e apenas quando se entender ser de cariz relevante para a necessária coerência duma história desta natureza, sob pena de ficarem a descoberto as alegadas incompetências do autor menor, por quem tantos aguardam uma oportunidade de apontar o nu.

 

Quando regressaram à aldeia, estavam prontos para desenrolar a novela pelos ouvintes. Vestidos de forma discreta, sem extravagâncias, carregando a mesma mala com que partiram, atravessaram o largo da estação e dirigiram-se ao café do Abílio. Não tinham almoçado, vinham esganados.

- Arranja aí duas sandes de fiambre com manteiga e duas médias!

- Tem calma, já te contamos, estamos com tanta fome que nem conseguimos falar!

domingo, 4 de maio de 2025

15- O caso incrível dum casal que ganhou o euromilhões

 

O hotel era um imponente edifício branco com vista para o mar. Sentiram-se transportados para outro mundo. O luxo era esmagador para um casal habituado à simplicidade dos espaços rurais.


Certo que já tinham pernoitado no Tivoli quando foram receber o prémio, mas nesses dias estavam anestesiados, não tinham sentidos para reparar no que viam, ouviam, cheiravam, saboreavam ou no que mexiam.


— Isto parece coisa dum filme! — exclamou Francisca de olhos arregalados.

Jacinto, menos expressivo, tentava manter a compostura. Mas, quando entraram no quarto e viram a cama enorme, o minibar recheado e a casa de banho com uma banheira cheia de torneiras, largaram uma gargalhada e atiraram-se para cima dos lençóis macios.

Os dias seguintes foram uma sucessão de deleites e trapalhadas. Era tudo muito lindo mas nada combinava com eles, nem o serviço requintado, nem a comida deslavada, nem o brilho das superfícies, nem o odor das pessoas finas. Funcionava tudo muito bem mas nada fora feito para eles, nem as torneiras automáticas, nem os talheres tortos, nem as toucas da piscina, nem os avisos em inglês.


A vida, fora dos aposentos, era um emaranhado de cruzamentos com hóspedes estrangeiros que os ignoravam, mulheres de Lisboa que de lado os olhavam, doutores de sucesso que a casta lhe exibiam, crianças ricaças de educação de colégio que não os distinguiam, reformados velhos que nem sequer os viam, funcionários fardados a quem só faltava dizer: os senhores estão no hotel errado. E claro, o senhor da portaria que, depois de tanto se perguntar “será que eles vão ter dinheiro para pagar?”, acabou por os destratar pedindo-lhe todos os dias o cartão de crédito.


Este embate cultural, social e político de Francisca e Jacinto, com as pessoas finas da classe dominante que se estão sempre a queixar que pagam muitos impostos, provocou-lhes efeitos idiossincráticos que despertaram a sua consciência de classe e alteraram o seu comportamento inicial. Tão ricos ou mais ricos do que todos aqueles pobres de espírito com quem se cruzavam pelos espaços do hotel, não tinham satisfações a dar a essa gente, pegariam no garfo como queriam, beberiam demais se lhes apetecesse, dançariam devagarinho com a música ambiente, ergueriam a voz quando fosse preciso, falariam com muito orgulho português e, se lhes saísse a palavra “merda” da boca, paciência, não gostam, ponham na borda do prato. Isto falaram eles ao fim do primeiro serão, quando passaram o dia em revista, as figuras que fizeram e a figura que passaram e redefiniram os objetivos da sua estadia.

 

Viventes, contentes, entre as matutices e deslizes que experimentavam e gozavam nestes dias duma doce lua, não se esqueceram da representação que teriam de fazer quando regressassem a Vale dos Ovos, pelo que, o argumento da história para ser contada, era tema recorrente, recorrentemente remendado com cunhas e apêndices, novos episódios e aperfeiçoamentos feitos à “grande mentira” em contínua construção. O lado perverso da opção que tomaram, ao guardar para os dois tão grande segredo, tomou tal forma, que a partir de certa altura, a criatividade que se lhes exigia para desenvolver a ficção, transformou-se num divertimento próprio de gente ociosa, num passatempo que preenchia o vazio dos dias, num  desafio que, por portas travessas, os unia.

 

— Então, o que é que lhe perguntámos ao certo? — dizia Jacinto, de caderno na mão, enquanto estavam deitados ao sol.

— Perguntámos o que é que ele fez da vida no Brasil, porque nunca deu notícias… Ah! E ele explicou que passou anos a tentar contactar-te, mas nunca conseguiu.

— Sim, sim… e agora está podre de rico porque fez fortuna com… com quê mesmo?

— Pode ser café? Ou ouro? No Brasil há disso, não há?

— Tem de ser algo credível, mas que ninguém possa confirmar. Talvez negócios imobiliários. Sim, isso! O meu pai comprou terras baratas há muitos anos e agora valem uma fortuna.


A história ia ganhando forma. Cada detalhe era ensaiado até que ambos fossem capazes de contar a versão exata sem hesitações.