quinta-feira, 11 de julho de 2024

Tudo está consumado

Não voltaremos às praias quentes do sul nem voltaremos a dançar valsas no salão da associação.
Nunca mais chegaremos a casa de madrugada procurando em todas as gavetas um cigarro vivo.
Não voltaremos a descer a avenida grande, ditando palavras de ordem, nem nos colocaremos mais à frente do piquete de greve.
Os nossos corpos não tinham o direito de nos trair mas não traímos os nossos filhos como os nossos irmãos traíram os nossos pais. Olha ó que nós chegámos Emanuela, se falarmos de paz à mesa de Natal, sentiremos o poder de fogo daqueles que cresceram na mesma lareira do que nós! Por incrível que pareça esta é a maior tragédia das nossas vidas, maior que o ar de dor dos hospitais, maior que a cruel consciência de que o fim está atrás daquela nuvem em que nos fazemos transportar em cada dia. Afinal nunca fomos deles, nem eles dos nossos.
Valha-nos o termos lido o suficiente para aprender a tirar prazer da claridade, do silêncio das noites que não dormimos, dos nossos filhos que ainda nos pedem embalo ao berço. Mas o maior prazer que aprendemos juntos, foi a gostar dos dias chuvosos: 
- Que bom! Hoje não está nada bom para sair de casa!...
Há uma parte em que sempre encontrámos o equilíbrio, nunca foste tão desbocada como eu:
- Eu quero que eles se fodam! 
E se os vires a chorar quando eu morrer, a tecer elogios de crocodilo, manda foder a educação, manda-os foder!

sexta-feira, 5 de julho de 2024

À morte ninguém escapa


Tanto a minha mãe como o meu pai morreram prematuramente e, obviamente, eu fiquei orfão, também prematuramente! Portanto, de morte, já tenho o meu quinhão, embora tenha de reconhecer que, verdadeiramente, conhecedor do assunto só o serei tardiamente na minha hora, que acontecerá, espero, a partir deste preciso momento, num tempo que não me permitirá falar da minha experiência pessoal.

Na última semana morreram várias pessoas em Lisboa, no Alentejo, em Trás os Montes e, em Trás dos Matos, que é uma aldeia da freguesia de Vila Cã, ouvi dizer que também lá morreu um homem. Peso de modo igual a morte dessas pessoas mas mais a pesaria se alguma delas me fosse próxima. Não podem é acusar-me de frieza por não ir no embalo mediático das mortes da semana, de aqui-d ’el-rei  tens de chorar votos de pesar por nomes sonantes da arte ou da política, do desporto ou da fortuna, que me dizem tanto, enquanto mortos, como o senhor de nome provável José, natural de Trás dos Matos, que eu nunca conheci e de quem nunca ouvi falar. 

Na morte somos todos iguais, não é o que dizem? Pois saibam que não verto uma molécula de lágrima por alguém que nunca me tenha dirigido a palavra ou a simpatia, embora compreenda que alguns, em quem o poder da morte não é tão cérceo, sejam reconhecidos anonimamente pela sua arte, pela sua luta, pela sua destreza ou pela sua riqueza. Se o senhor José fazia esculturas de paus de louro, pertenceu à junta de Vila Cã, jogava bem à malha e deixou uma quantidade considerável de certificados de aforro, não vai ser por isso que eu o choro mais ou menos. Por isso, famosos, podereis ir morrendo que não perturbareis o meu santo sono diário e muito menos o eterno.

 Abaixo os funerais de estado e o panteão!

 Recordo uma cantilena que ouvi dos meus pais e que já passei aos meus filhos: 

À morte ninguém escapa, nem o rei, nem o cura, nem o papa. Mas hei de escapar eu! Tenho aqui um vintém, compro uma panela, meto-me dentro dela, tapo-me muito bem! Vem a morte não me vê. Bons dias meus senhores passem todos muito bem!

sexta-feira, 28 de junho de 2024

Tomei partido por uma caixa de sapatos

Ela deve ter-se embeiçado por mim porque me ouviu cantar “Michelle, ma belle”, acompanhado à viola, no jardim municipal. E se eu cantava bem! Eu estava com uns colegas de propedêutico, num daqueles bancos de tábuas ripadas, a ensaiar os primeiros acordes dum sonho de vida musical e ela estava com umas amigas, num banco próximo, a exibirem brincadeiras e a atirar olhares para os nossos lados. Não as conhecíamos do liceu - rapariguinhas de pais do operariado que se estavam nas tintas para os estudos e queriam era namorar.

De partida os dois grupos cruzam-se e sinto um encontro de ombros dela, provavelmente provocado pelo empurrão dissimulado duma companheira, simuladamente inadvertido, e divergimos para lados opostos, com risos divertidos de juventude em idade de contacto.

No dia seguinte, repetida a canção, ela vem ter comigo pedindo-me desculpa pelo encontrão da véspera e pediu-me um cigarro, depois um beijo, depois mais beijos e assim fomos nascendo.
Navegando a novidade, uma tarde, sugeriu-me um centro de convívio do seu bairro. Não estava ninguém, entrava-se sem ser preciso chave. Uns sofás, uma mesa baixinha de sala de estar e umas damas. 
- Sabes jogar?

E eu, num "sim" de novato ali e acanhado, rendi-me à solução preliminar e colaborei com destreza no posicionamento das pedras no tabuleiro. 
Beber? Claro, beber faz parte do jogo! Tirar a carica. Pagar? 
- Vê aí os preços nesta folha e faz os trocos com o dinheiro que está nesta caixa de sapatos.
Que associação é esta!? Quem pode confiar assim? Até as caixas de esmola da igreja têm cadeado! Pensei.

Estendeu-me a garrafa e eu levei-a à boca e desajeitado com o momento, babei-me com a cerveja até ao umbigo, tombei o tabuleiro e só dei por mim quando a espuma já untava os corpos próximos, estendidos num leito de eu sei lá. A coisa dava-se e, quando num bater mais acelerado do coração, parei os olhos, vi uma foice e um martelo sobre um fundo vermelho.
-  Qual centro convívio qual carapuça, isto é um centro de trabalho!

Julgo que foi este aparte ou o tom com que me saiu que fez com que o estado de enamoramento não tivesse durado muito mais tempo. Passado um tempo e mais uns beijos e humidades, ela mudou de terra ou de partido, eu mudei de terra mas nunca perdi o encantamento pela gestão daquela caixa de sapatos.
E foi assim, que do borbulhar duma  efémera paixão, parti para a vida de quem toma partido para a vida toda.



quinta-feira, 20 de junho de 2024

O doutor Zé António

 O doutor é um poeta da palavra - das palavras!... O doutor dá melodia às palavras e os seus versos sabem a música. O doutor sabe muito. O leitor também tem de saber alguma coisa para entender a palavra - as palavras!... perceber e sentir a melodia e consumir os versos do doutor. 

Quem não sabe nada nem entende - quanto mais sentir! - as palavras "enversadas" do escritor - perdão! doutor - é o Zé António. O Zé António lê nas flores o canto da próxima colheita, conhece cada ave pela melodia do assobio, sacia-se com a sonoridade da água que sussurra numa queda do regato, fala com a ovelha mãe e desabafa sentimentos com o vizinho meio  doutor. 

E o vizinho, que tem livros em casa, desiste de ler e bebe um copo com o Zé António para ver se aprende a olhar para as flores, a conhecer os pássaros pelo que cantam, a avaliar a água que acrescentaram ao vinho e a conhecer cada ovelha pelo seu olhar.

E no fim do copo, tão pequeno como a conversa, o Zé António a rematar:

- Pá! Não penses mais nisso! Tás cum olhar que parece o do meu carneiro mor! Isso há de passar! A mim disse-me que eu vou morrer mas não sabe quando! O doutor sabe pouco!




sexta-feira, 14 de junho de 2024

Terra-mãe

Ontem visitei a minha mãe. Já não é a mesma que conheci quando eu crescia. O alpendre da avó foi com um vento, a eira do tio foi com uma enxurrada, da casa do bisavô não resta nada. E foi morrendo cada geração e ela ficou ali rapando o sol e mastigando o frio. Podia ser pior. Passa um trator com corta-mato e o tratorista acena a tudo o que mexe. A Sagrada Família ainda vai de casa em casa. Podia ser pior!... O doutor de letras restaurou a casa que herdou do pai. Isto vai! Digo que sim, respeitando quem o diz mas a minha mãe não tem a mesma alegria. Os filhos tiveram mais partidas que regressos. Vêm ver uns marcos e dar algum dinheiro para o andor. Deus Nosso Senhor lá sabe. A minha mãe tem a flor da pele marcada pela ausência das sombras das árvores que os incêndios levaram. A minha mãe tem os cabelos despenteados pelo fim dos arados que os tempos levaram. Já só a visito por ser mãe e folgo em saber que ela está para durar nem que seja só para enterrar os que vão morrendo. Outros destinos traíram-lhe o destino.

É claro que falo da minha terra-mãe que a do ventre já se foi e não viu isto. 

Dizia eu, em tempos, que quem perde as suas raízes, seca. Pois então falei a uma retro e a um camião e trouxe uma carrada de terra lá da terra e fiz um canteiro no meu quintal. Agora estou melhor! Tudo o resto são saudades e remorsos.
Eu devia ter sido pastor ou lavrador como os avós.
Mas não! Fui no engodo de que estudar é que era! Com a certeza de merda que qualquer cidade me daria mais. E olha agora, a minha terra-mãe a morrer e eu longe dela!

Toda a província padece deste mal. É bem feito em quem parte e em quem fica dizendo:
- O meu está muito bem, vive em Aveiro!
- O meu lá está para França e lá fez vida! 
- O meu neto está um homem, foi pró Dubai!
- A minha filha está tão contente desde que o filho arranjou emprego na Inglaterra!

Nas aldeias ninguém cria os filhos com projetos para que eles venham a viver nelas. Uma terra com os campos ao abandono não tem futuro. Um país que abandona as suas aldeias não tem futuro. Um Estado que fecha tudo o que é serviço público nas aldeias, não é um Estado é um bananal! Os pobres que ficaram nas aldeias a carpir por Salazar são bananas! ...Eu não sou nêspera!




terça-feira, 4 de junho de 2024

O meu companheiro da quarta classe

 


Ao longo da vida tenho reunido muitos diplomas mas só este teve direito a caixilho. Na quarta classe eu era o melhor na escola e o pior na bola e o Cuca era o melhor na bola e o pior na escola. Éramos só os dois.

Para fazer o exame, fomos os dois sozinhos, a pé, até Albergaria e apanhámos a camioneta para Pombal. Toda a gente dizia que eu ia dar um lindo padre (ia) e  fui todo o caminho a rezar ave-marias para o Cuca passar e eu não vomitar. Não me recordo mas a professora, que era da vila, devia estar à nossa espera e deve-nos ter acompanhado à escola grande onde prestámos provas. O facto de, da nossa escola, termos passado cem por cento, obrigava a professora a cumprir a promessa de nos levar ao castelo que só conhecíamos de ver ao longe. 

Para nós, poder tocar nas pedras dum castelo seria uma forma de realizarmos parte das fantasias que as imagens dos livros de História nos ofereciam.

Acontece que a professora, por estar nervosa com o período dos exames ou por outro período qualquer, disse-nos chorosa que estava com tamanha dor de barriga ou de cabeça, ou das duas coisas, que não conseguiria fazer tal passeio mas que ia pedir à mãe dela que fizesse as suas vezes.

E lá fomos os três, nós ligeiros de idade e felicidade, e a senhora a passo de bengala, ofegante mas segura no cumprimento da missão. Quem conhece sabe que o monte, subido a butes não é para qualquer idade ou condição e a pobre mulher  viu-se obrigada a desistir já se avistavam as portas:

- Os meninos vão lá que eu os amparo daqui com os olhos mas não entram que eu não os quero perder de vista!

E assim foi, chegámos à porta e meia volta. E assim continuou a minha amizade com o Cuca, volta e meia encontrávamo-nos, até que recebi a triste notícia que cinquenta por cento dos que fizeram comigo a quarta classe...

Desculpa lá, companheiro de classe, acabar a homenagem assim mas de ti irei guardar memórias de brincadeira da escola e de que eras um tipo lixado para a bola.

sexta-feira, 31 de maio de 2024

 

A coisa começou a correr bem ao homem depois de 74: mais esperança, mais liberdade, menos medo, menos fiscalização, animaram a sua atividade de caixeiro viajante e os seus negócios começaram a prosperar.  

Sabia-se que, para tal sucesso, era necessário untar as mãos a guardas fiscais, republicanos e outros mais. Sabia-se que não trabalhava com letras, nem com cheques, nem com bancos. A massa viva  guardá-la-ia onde só Deus sabia mas, quando os maços começaram a ficar grossos, temendo um diabo que os levasse, começou a dar-lhes caminho fazendo anexos, muros e escadas, latadas, portões e arruamentos, valorizando assim o seu quintal, dando trabalho a alguns e vida à terra.

Pensava numa de noite e de manhã ia falar ao pedreiro e a uns jovens estudantes que gostavam de ganhar algum e... mãos à obra. A mim, talvez por me achar um trinca-espinhas, por me ter por contestatário ou por não engraçar comigo, nunca me falou para fazer nada. 

Sem nada para fazer, peguei na motorizada para dar uma volta e parei para apreciar os trabalhos e dar um ponto de conversa aos meus amigos. O muro estava praticamente acabado e, como alguns dos serventes já andassem de mãos penduradas e houvesse sobras de blocos, deu-lhes o homem o trabalho de fazerem mais duas fiadas sem cimento - pelo menos ficavam arrumados.

 - Ó homem, com a massa fresca e esse peso em cima não tarda muito isso desaba tudo!

- Rapaz, eu não te falei porque já sabia que és uma caga-agoiros, some-te daqui antes que leves uma pazada! 

Não tardou nada, o muro tombou e eu vi-me obrigado a rir. Antes que o homem descarregasse em mim a sua ira, sorte a minha, pára o jipe da GNR e foi com eles que ele desabafou do seu azar, enquanto a malta olhava para o bonito serviço e eu me dirigia para junto da minha motorizada. 

Entretanto aproximou-se de mim um guarda e perguntou-me pelos documentos e pelo capacete.

- Mas a mota está parada, o senhor não sabe nem se é minha nem se eu me desloco nela!

- Sou testemunha que a mota é dele e que ele aqui chegou nela sem capacete!  

Para acelerar a alhada que se estava a desenrolar, o filho do homem, que havia ido ao café buscar umas cervejas para o pessoal, chega a acelerar na sua Zundap e, para animar a história, também não trazia capacete. 

Bem podia eu animar ainda mais a história,  prolongar o texto com discussões fictícias mas a verdade é que, traído pela memória, pela imaginação, pelo jeito ou pela vontade, por mais voltas que dê pela tecleta (palavra criada agora mesmo da composição de teclado com caneta), não consigo desembaraçar-me da incoerência e chegar com pés e cabeça à frase final que tinha pensado:

- Não há gatos polícias.

quarta-feira, 22 de maio de 2024

Não gosto da vossa europa

- Eu queria uma Europa que não se armasse, que não desviasse a água do meu milho e que não me obrigasse, depois, a fazer guarda à eira.

Parece que ouço a minha mãe a dizer isto antes disto acontecer, antes de desaparecer, descalça, pelo milheiral adentro para, com os calcanhares e a sachola, encaminhar a água à raiz de cada pé de espiga, quando eu ficava ali, seguindo as voltas da burra emprestada p´lo mê ti Sicrano, vendada e amarrada à nora, repetindo voltas sempre iguais, cumprindo com os seus círculos o sucesso da próxima colheita. E eu andava por ali, também às voltas, seguindo solidário as suas voltas, caçando borboletas, contando os alcatruzes a cada despejo, seguindo os caminhos da água até esta desaparecer pela sombra fechada do milho que escondia a minha mãe. Impossível repetirem-se esses cheiros, essas águas, esse verde; nem a vida me permitirá chegar aos calcanhares do mê ti Sicrano - dificilmente conseguirei um dia ter uma burra!
Mas sou bem herdado na parte que toca a ter passado. Usufruí dessa riqueza de partilhar com a burra o verde do milho, o som da água, a sombra da latada que completava o poço e toda a engenharia da secular nora.
Banho-me nesta infância, olho os senhores da europa e concluo: não sabem nada, andam todos à nora!

quinta-feira, 16 de maio de 2024

Que os coletes verdes os salvem

 


Hoje em dia, o colete verde está para os peregrinos de Fátima como o colete encarnado está para os campinos.

Ir a Fátima a pé é uma nova forma de religiosidade que, na Fé do crente, redime o absentismo pelas práticas tradicionais do ir à missa ao Domingo e à confissão, por outras palavras, de andar à volta das saias do padre.

Fátima, à volta da Imagem da Senhora, tem-se “vaticanizado” e transformado numa sucursal da Praça de S.Pedro onde os leigos, cada vez mais pecadores, se ajoelham aos gestos do secular clero. Mas os padres de Fátima nunca foram bons anfitriões do peregrino pedestre e a hotelaria local nunca lhe suportou o chulé, embora, ambas as partes, os tolerem porque os reconheçam como um dos dentes da chave do negócio.

Vêm estes parágrafos, aparentemente inconsequentes, à razão, pelas razões que me atravessam a revolta quando vejo tanta gente caminhar perigosamente pelas estradas, respeitosamente por Fé, incompreensivelmente sem a devida atenção ou consideração pela parte das autoridades religiosas ou civis. Todo o apoio que encontram pelo caminho, nasce da iniciativa de organizações ou movimentos que nada têm a ver com os cofres ou com os lucros com que o negócio-milagre tão bem se alimenta.

Reconhece-se que o peregrino de Fátima, português, caminha, antes de mais nada, por penitência, que dispensa o conforto e tem Fé que do perigo a Sua Senhora o livrará. Mas não seria a altura, agora que a indumentária refletora esconde o Portugal pobre do século XX, dos chefes da Igreja e da governança terem uma pequena consideração por esta gente?!

Sensibilização seguida de encaminhamento para caminhos e trilhos que os desviassem do asfalto sem bermas, mapeamento de parques e albergues que lhes permitissem dignas paragens e, se mais não fosse, apenas isto: um parque de campismo e balneários na pequena cidade-fenómeno. Mas não, a Igreja reverteu todas as esmolas para a maior obra de culto que se fez em Portugal desde o Convento de Mafra: a nova Basílica. Não foi feita para o “pé de ténis chineses” de quem chega a pé, foi feita para os japoneses, brasileiros e portugueses que vêm com os pés limpos das alcatifas dos modernos meios de transporte e que melhor servem os  interesses do turismo religioso.

Nestes dias, entre os automóveis viram-se muitas tendas e coberturas de plástico. Ao menos um parque de campismo em Fátima! Nunca ninguém se lembrou!? É de bradar ao Céu!...

sexta-feira, 10 de maio de 2024

Mães

Onde as mães se metem a História realiza-se.
As mães da Praça de Maio.
As mães de Kiev.
As mães do Terceiro Reich.
As mães de Gaza.
As mães de Bragança.
As mães de Abril.

Quando as mães nos chamam é para dar.
As mães, dão livros, filmes e à luz.
As mães dão orfãos, soldados e poetas.
As mães dão tudo de todo o coração.
As mães são assim.
As mães são menos que os filhos.
As mães são muitas.

Mãe há só uma e todos tiveram mãe.
As mães dos filhos da puta.
As mães dos meus amigos.
As mães das vítimas.
As mães dos recém nascidos.
As mães das mães.
As mães que morrem.

Numa noite de natal fiz uma mãe.
A mãe de Gorki.
A mãe pátria.
A mãe de todas as bombas.
A Mãe de Deus.
A mãe dele.
A minha mãe.

- Mãe! Oh Mãe!...

sábado, 4 de maio de 2024

Abdul Nawaf tem 12 anos e deixou de falar.

Abdul Nawaf, 12 anos, vivia com três primos num abrigo, entre ruínas, na cidade de Rafah. Há alguns meses que nenhum deles se afastava mais de cem metros do “lar”. Resistiam física e psicologicamente a cada dia, inventavam, naquele círculo, a sua sobrevivência e a sua razão de existir. Tinham receios mas não medos. Aliás, tinham medo de sair dali porque sentiam e pressentiam os acontecimentos da sua terra em guerra. Um estrondo daqui, um grito dacolá, a proximidade do ruído de um carro de combate, ao longe um vulto de arma içada, um avião israelita rasgando o céu, um cão farejando nas ruínas próximas, um gato morto…

Um dia Abdul Nawaf, fez-se às ruas transformando todos os medos em receios, e foi verificando como a cidade era feita de abrigos iguais aos seus, como eram iguais os métodos de sobrevivência dos seus semelhantes e como continuava igual a sua razão de existir. À medida que ia caminhando, ia perdendo a identidade, ia sentindo que não valia a pena viver em lado algum mas, pior que isso, que também não valia a pena morrer. Encontrou um meio-termo, deixou de falar. Continuou deambulando, entretido a observar os outros, evitando despertar olhares e foi neste passo que o narrador, que fazia a cobertura daquelas existências, lhe perdeu o rasto …

Como todos os narradores ele era incógnito e, morreu de romance ao meio, por não conseguir voltar a alimentar-se de Abdul Nawaf.

Quando os outros narradores voltarem à terra assassinada, já os jornalistas que, cá longe e em terra firme, operam as máquinas da opinião pública de cada dia, hão de ter cozinhado e servido a História que servirá aos vencedores. E nós, mais uma vez, ficaremos mais cultos quando virmos uma fita de cinema dessa guerra, bem narrada mas sem cheiro e abriremos as torneiras para os "macrons" lavarem as suas mãos.

(Quem está convencido que pertence a um povo escolhido por Deus, nunca conseguirá respeitar os outros povos como iguais.)



quarta-feira, 1 de maio de 2024

A morte saiu à rua

Singular, foi um homem singular. 

(Vou ter de me equilibrar evitando as três pessoas do singular, os egos de "eu",  lamechas de "tu" ou referindo-me a "ele").

Ele foi conhecido como militante do Partido Comunista Português. Tu foste um natural de Lisboa apaixonado por Ourém. Eu experimentei o sabor da tua amizade e vivi o interior desse triângulo em que tantos te reconhecerão: Amigo, Ourém, Partido.  

Sei que o coletivo fez e fará proveito da sua militância, do seu conhecimento e do seu legado político. Mais tarde ou mais cedo, a sua terra terá de engolir o preconceito e realizar atos de reconhecimento que não lhe fez em vida. Resta-me, portanto, dar testemunho daquilo que tantos receberam dele, a capacidade extraordinária de criar e alimentar a amizade.

Ele tinha idade para ser meu pai, mas nunca mostrou qualquer gesto de paternalismo. Pelo contrário, às vezes as coisas descambavam para a brincadeira e eu tinha a sensação de estar a conviver com um amigo da escola. 

- Vamos lanchar?

- Então telefono para  casa a dizer que não vou jantar! 

Dar a volta a todos os temas e assuntos, pôr a conversa em dia até chegar ao pleno da amizade plena: o tempo do silêncio com cada um a olhar para o seu lado, a mastigar as ideias ou as iscas. E à quinta:

- Este tipo que te veio cumprimentar é teu amigo?

- Conhecemo-nos, mas nunca bebi quatro imperiais com ele!

- Adotei também esse mínimo como critério de amizade.  Aprendi tanto contigo pá! Até a ser amigo!...

E depois, chega-se agora ao fim e tem-se a agradável sensação de não se estar só, de serem tantos os que passaram para além das quatro. Tantos os que conviveram com um "homem-centro-cultural",  que tiveram que responder à proposta  "temos de fazer coisas, pá", que sentiram nos ombros a palmada de incentivo " está porreiro aquilo que fizeste, pá" ,  que ouviram a referência a terceiros na forma "é um tipo extraordinário", que presenciaram o respeito pelo limite das idiossincrasias (um termo que usava). 

E, no entanto, ele cuidava de cada amizade com particular dedicação. Há três semanas, abraçou-me as mãos dizendo-me "gosto muito de vocês", trazendo para o afago a célula familiar.

- Falaste-me do provável caminho da demência e que já não te despertava interesse, nem a novela nacional, nem a situação internacional. Percebi que estava a viver uma despedida. Aquilo com que frequentemente enquadravas os milímetros da nossa existência nos quilómetros da História, era representado na tua fragilidade. A tua humanidade vai ter de dar-te mais uns milímetros, vamos recordar-te ainda por uns tempos Zeferino:

- Disseram em toda a parte o Sérgio morreu.

sexta-feira, 26 de abril de 2024

Vá, façam vocês em novembro!

Gosto de estar à beira mar sentado a observar, uma a uma, as pessoas a passar, de lhes medir os corpos, de lhes julgar o andar, de lhes estudar expressões e de especular acerca de quem são e de onde são.

Nada que não se possa fazer numa paragem de descanso de desfile de manifestação aos Restauradores. E estava eu ali sozinho nesse entretém quando uma senhora de 80 anos upa lá, de mala de senhora pela curva do braço, de vestuário bem encaixado na idade, muito mais baixa que eu, que não sou alto por aí além, encostou a sua isolação à minha e estendeu-me unicamente estas palavras, assim sem mais nem menos, sem boa tarde, sem adeus, ou quem és tu: 

- Eu nunca vi tanta gente em toda a minha vida! Ui Jesus, o povo que para aí vai! Venho lá de cima do Marquês e vem gente de todas as ruas, a Avenida é uma enchente, aqui é o que se vê! Credo Santo nome de Deus! Em toda a minha vida nunca vi tanta gente! 

E dito isto seguiu, de passos pequenos mas frequentes, para o Rossio. Não faço ideia de onde vinha, para onde ia ou porque estava ali. Nem sequer interessa se era manifestante, transeunte, se ia para sua casa que era logo ali, se dava a sua volta habitual ou se ia apanhar a camioneta para o Samouco. O que fiquei foi muito contente de ter visto aquela senhora entre tanta gente e de entre tanta gente ela me ter visto a mim e de ambos termos visto tanta gente como uma senhora nunca viu em 80 anos.

 




sexta-feira, 19 de abril de 2024

Tratem-me da saúde

A minha carteira tem cartão de condução, cartão do contribuinte,  cartão de eleitor, cartão do cidadão,  cartão de residente, cartão do banco, cartão de desconto, cartão de cliente, cartão de ponto, cartão de juventude, cartão do sindicato, cartão da associação, cartão do clube, cartão de utente, cartão de saúde!...

Enfim, sou tanta coisa e a minha identidade esta a rejeitar todos os cartões.

Sei bem onde tenho a carteira, desta vez não a perdi, ela é que me perdeu. Procuro-me e não me encontro! Já corri a estante, o quintal, os montes e vales das redondezas, a casa da Mariquinhas e, nada, não há sinais de mim! Se por acaso alguém encontrar um indivíduo com cara de mau e despenteado, desnorteado e sem centro, com ar desempregado, com carteira, sem cartões, sem saúde mental e sem dinheiro, devo ser eu. Nesse caso, é favor contactar-me através do número de telefone: 249001974.

Sem saber do meu paradeiro, dirigi-me ao Centro de Saúde. Achei muito estranho, estava tudo mudado, o balcão de atendimento, outros funcionários, etiquetas com preços por todo o lado... e atendeu-me uma senhora com um estranho soutien.

- Olhe minha senhora, eu concordo inteiramente com o princípio do utilizador-pagador, se você fumou e contraiu cancro, se comeu muito toucinho e teve um à você, se andava na azeitona e caiu de uma oliveira, porque diabo hão de os saudáveis pagar os seus descuidos!?  Um país não pode hipotecar a sua economia na prestação de serviços de saúde a quem não se cuida ou no prolongamento da vida de quem já nada pode dar à sociedade! Mas o meu caso é diferente, eu não estou doente por culpa própria! Foram os governos e as suas sociedades anónimas que me trataram da saúde e da identidade! Agora exijo que me informem do meu paradeiro, que me localizem, que identifiquem a minha situação, que me deixem viver sem cartões e que me atribuam um subsídio para a substituição das fitas coloridas do guiador da minha bicicleta!

- O sinhô é uma meda! Não pechebe nada! Isto  já não é um centlo de saúde! É uma loja de chineses!

- Ah é!? Se eu sou uma meda porque é que me comem todos os dias!? Querem cartões?!Querem identidades?! Para mim não existem chineses, nem pretos, nem brancos, nem teslas, nem bicicletas! Existem apenas porcos e suinicultores!

E, dito isto, num impulso de rara lucidez, peguei num monte de cartões de embalagens que estavam atados à entrada do edifício e fugi com eles em cima do guiador da minha bicicleta.

Já estou melhor, vendi os cartões, fiz algum dinheiro e pu-lo na carteira. Recuperei a identidade e a sanidade. Peço desculpa pela banalidade do texto, termina aqui. Tenho mais que fazer, vou às bombas beber um café, comprar tabaco e abastecer a bicicleta.

(Quem nunca viu um porco a andar de bicicleta?)


quinta-feira, 11 de abril de 2024

Antipático o raio que os parta!

O fotógrafo rabeava à minha volta no pequeno estúdio, dando jeitos em tripés, projetores e na minha pessoa: gola, cabelo, cabeça, ombros e o raio que o parta, nunca mais estava tudo bem.  E, na hora do passarinho, nem ele, nem a minha mãe, me conseguiram arrancar a expressão da lei: uma pessoa para ficar bem na fotografia tem de arreganhar.

Foi assim e assim continuou a ser em todas, conforme testemunha um quadro que tenho na sala com cartões de identidade da juventude: de estudante, da JCP, de militar, de sócio da ARCA, passageiro da CP, condutor de velocípedes e músico de cabaré.

Sou, portanto, um fulano sisudo, carrancudo, incapaz de responder com uma gargalhada a uma boa anedota, que só mostra os dentes se tirar a prótese.

A minha primeira foto tipo passe foi para tratar da documentação da matrícula no ensino preparatório. A minha mãe lá foi toda contente, comigo de má cara ao lado dela, e só voltou a dar um passo pelos meus estudos quando foi com o meu pai a Coimbra carregar o carro com as minhas gabardinas e sebentas. Foi então que me fez a pergunta: “Filho, que curso é que tiraste que as pessoas perguntam-me e eu não sei dizer?”.

E o meu pai virou-se para ela, apontou para mim e observou contente:

- Mulher, afinal ele ri! 

Já com o canudo, tentei candidatar-me a tudo e quando candidato à Junta da minha freguesia, ao fim de horas de sujeição à tortura fotográfica, nem um dente brilhou na objetiva, pelo que os responsáveis da lista desistiram de mim com o objetivo de não afastar os eleitores. 

Na verdade eu rio-me muito por dentro, a maior parte das vezes de mim próprio e nunca me conformei pelo facto de tanta vezes me dizerem, com descarada simpatia, que sou um mal-encarado. Também já me aconteceu rir com amizades novas que me revelam: enganaste-me bem, afinal és um monstro de simpatia.

A verdade é que o atributo de ter cara de poucos amigos, prejudicou de tal modo a minha carreira e a minha vida, a ponto de me ir reformar na mesma classificação em que comecei, cepa torta e de, com esta bonita idade, ainda não ter passado do primeiro casamento.

Na verdade… a verdade… mirando a foto e o espelho… eu era e sou bonito!