Depois, Francisca
começou a exteriorizar satisfação com o novo teatro que teriam de representar.
- É perfeito. Ninguém vai desconfiar.
Depois, Francisca
começou a exteriorizar satisfação com o novo teatro que teriam de representar.
- É perfeito. Ninguém vai desconfiar.
Iam assim os dias do casal milionário, ainda sem plena consciência do valor dos milhões que tinham em depósitos, saboreando o desafogo financeiro, mas ainda engaiolados no medo e no segredo.
— Quanto
tempo vamos conseguir viver assim? A fazer de conta que não temos nada?
— O que
queres dizer?
— Quero dizer… não faz sentido termos tanto
dinheiro e continuarmos a viver como se fôssemos pobres.
Ela suspirou.
— Eu sei. Mas se começamos a gastar de
repente, toda a gente vai desconfiar. Não te lembras do que aconteceu ao teu primo
Toino?
O António era um exemplo conhecido em Vale
dos Ovos. Há uns anos, tinha saído para França em busca de uma vida melhor e,
quando regressou, apareceu com um carro novo, roupas caras e pôs-se a fazer uma
casa estilo “maison”, com janelas “ à la fenêtre” e telhados para a neve, só
lhe faltou pôr suportes para colocar os esquis no hall de entrada.. Mas a inveja e os rumores foram tantos que, em
pouco tempo, começou a ter problemas. Diziam que se metera em negócios escuros,
que devia dinheiro a agiotas. O falatório foi tanto que António acabou por
vender tudo e ir-se embora de vez.
— Sim, lembro-me — respondeu o Jacinto. — Mas
também não podemos viver como miseráveis. Há coisas que podemos melhorar sem
dar nas vistas.
- Então mas não estamos a gastar muito mais
do que gastávamos?
- Sim, mas não estamos, nem de perto, a
gastar de acordo com o que temos!
- Vamos com calma! Para já vamos aguentar a
versão que a Lúcia nos está a ajudar! Depois inventamos outra!
Pois, tinham mesmo de inventar outra, havia
mais gente de Vale dos Ovos no Luxemburgo. Um deles, o Paleco, veio cá uns
dias, esteve no café da estação. Contou que estava perto do Alberto, que via a
Albertina todos os domingos à saída da igreja, que o Joaquim trabalha com ele,
que a Joaquina tem os filhos na mesma escola, que o Costa está muito bem, tem
um café, a coisa não está muito bem é para a Lúcia, a filha da Francisca, passa
lá por muitas dificuldades, o gajo embebeda-se e ela vê-se negra para pagar a
escola do filho!...
Abílio, primeira testemunha da surpreendente
contradição entre o discurso do casal sobre a origem do seu repentino desafogo
e as informações fresquinhas do Paleco, recorreu à sapiência de tantos anos a
encher copos e engoliu para digerir mais tarde. Como só ele ouvira, aguardaria
para testar se o Paleco contaria a mais alguém e, em função disso, moldaria a sua
posição pública sobre o assunto.
Uns dias mais tarde, constatando que ninguém trouxera
o nome da Lúcia à conversa no café, e tendo já Paleco passado além dos
Pirinéus, Abílio mostrou-se amigo de Jacinto e confrontou-o em tom paternal, em
privado, com o que não batia certo e queria explicações.
Jacinto engasgou-se com o carioca de limão e
aproveitou o tempo do engasgo para um raciocínio rápido que o teria de livrar
de pôr os pés pelas mãos e dar-lhe as palavras certas para acalmar o inquiridor.
- Ora Abílio, isso é uma longa história!
Graças a Deus que, no meio de tanta desgraça, eu e a Francisca temos tido uma
ajuda, que não é pequena, mas que ainda não podemos dizer de onde vem. Não
contes por favor a ninguém a conversa do Paleco que eu prometo-te que serás o
primeiro a saber a verdade.
Quando Jacinto, regressado a casa, contou à
Francisca o percalço, esta estremeceu em pensamentos por ter recebido notícias
menos felizes da vida da filha emigrada – teria de arranjar maneira de a ajudar –
mas não questionou a insensibilidade de Jacinto, que parecia apenas preocupado
com o facto da mentira ter perdido a validade. Era
necessário inventar uma nova mentira com crédito assegurado e, já agora, que
desse para poder mostrar a carteira ainda mais cheia.
A ideia surgiu na noite abafada e já longa,
enquanto partilhavam um copo de vinho ao calor da lareira. O silêncio da aldeia
envolvia a casa como um manto pesado e, o peso da manta dos milhões, embora os
fizesse sentir agazalhados e protegidos, pesava-lhes cada vez mais.
— A aldeia sabe da história do teu pai —
disse o homem, rodando o copo entre os dedos.
A mulher ergueu os olhos.
— Sim, todos sabem. Que ele fugiu para o
Brasil depois da morte da minha mãe pelo meu parto.
Jacinto abanou a cabeça positivamente
preparando o espaço para a próxima deixa:
— E se… e se ele tivesse entrado em contacto
contigo? Se, depois de tantos anos, te tivesse procurado, cheio de
arrependimento?
Francisca franziu a testa, tentando
acompanhar o raciocínio do companheiro.
— Estás a dizer que…
— Que o teu pai fez fortuna. É, sem exageros,
dono de meio Brasil e agora quer compensar-te por te ter abandonado. Pôs uns
detetives à tua procura, encontrou-te, vai telefonar-te e começar a enviar
carcalhol a rolos. Quem sabe, vai até querer que a gente vá ao Brasil!...
Houve um momento de silêncio, enquanto a
ideia se instalava entre os dois. Depois, Francisca começou a exteriorizar
satisfação com o novo teatro que teriam de representar.
A casa, herdada da avó, tinha sido já dos bisavôs mas resistira ao tempo. Duas águas, uma porta ao meio, uma janela de cada lado, cozinha, sala, dois quartos e uma casa de banho desalinhada da arquitetura porque construída mais recentemente, na época em que o banho se popularizou e a água canalizada trespassou paredes. Num alçado lateral, um alpendre em chapa zincada protegia a entrada de serviço, a da cozinha, e ainda dava para abrigar a motorizada. A traseira da casa apoiava um telheiro para a lenha, ferramentas e o que calhasse. Ao fundo da cerca do quintal, à guarda do cão acorrentado, existiam uns currais para galinhas, coelhos, rolas e outra miudagem animal, sobrando ainda espaço para uma horta de subsistência, uma figueira, dois pessegueiros, uma macieira e uma latada de uvas de comer.
- Amanhã vou fazer uma lista: reparar o curral das galinhas, arranjar um alpendre para a mota, fazer uma estufa, isso mesmo, vou fazer uma estufa!
- Não te esqueças de falar ao Jápintas para
pintar o quarto e a sala e ao Bucha para nos vir instalar um esquentador!
À noite, quando se deitavam, ficavam em silêncio por longos minutos, cada um perdido nos seus próprios pensamentos.
Agora compreendia que a vida dos ricos que
não trabalhavam não era tão fácil assim. A tristeza que não é uma pessoa não
ter nada para fazer, andar para aqui e para acolá à procura dum serviço que lhe
ocupe a tarde.
- Ora Jacinto, os ricos sabem pôr o corpo ao
sol, jogar xadrez e andar de avião… gostam de ler livros, ver filmes e
bailados, fotografar monumentos e dormir em hóteis com vista!...
- E também jogam no casino e fazem festas de arrebentar!...
Um dia destes vou é voltar a trabalhar! No café é sempre a mesma coisa: uns
jogam cartas ou dominó, isso para mim são jogos de garotos! Outros olham para a
televisão a ver futebol, eu não gosto de futebol! Ler o Correio da Manhã?
Aquilo é só mentiras! O Abílio é sempre a mesma conversa, “ó Jacinto é branco
ou tinto?” brinca ele um dia, para no dia a seguir me repreender como se eu
fosse uma criança, “não voltas a entrar aqui a fumar!”
A única coisa que sei fazer é trabalhar! Pensas
que isto é fácil? Tu já estavas habituada a não fazer nada! … Agora eu!...
- O caralho que te foda!...
Sabemos que cai aqui mal esta linguagem mas
perante tal impropério de Jacinto, Francisca tinha de reagir de imediato. Sem
tempo para pensar outra reação, saltou-lhe a tampa, soltou-se-lhe a língua, ferveu
de indignação e saiu-lhe a resposta curta e concisa no mais imprópio par de
palavrões do vernáculo nacional. Até o autor foi surpreendido, sem tempo para
dar a volta ou texto ou cordões para trair a realidade de modo que, pede desculpa
e promete dar continuidade à narrativa em modos próprios.
Doméstica era apenas uma palavra quando tinha
de responder ou escrever a profissão. Mas não bastava “doméstica” ser já o cabo
dos trabalhos, Jacinta trabalhava ao dia fora muitos dias, contribuindo para a
casa, às vezes quase tanto como o homem. Plantar batatas para esta, ir prá
vindima daquele, apanhar azeitona para os demais, servir numa boda de
casamento, fazer de criada ao regimento daquela que pariu, caiar os muros dum
vizinho, dar uma limpeza geral à casa dos que vêm de férias, tratar do gado dos
que foram dar uma volta, trabalhadora para todos os serviços menos para um.
- Olha, eu sinto-me bem folgada e não me importo de viver assim o resto dos meus dias! Se não me queres fazer companhia, vai trabalhar que eu ainda tenho cara e cintura para arranjar um rapaz mais novo que tu! E então agora com dinheiro! Se o trabalho nas obras fosse assim tão duro, não estarias com essa conversa de voltar ao trabalho! Hoje em dia vocês têm máquinas para fazer tudo: gruas, guinchos, porta-paletes, betoneiras, martelos elétricos, berbequins, escavadoras, vibradores. Esfregar! Esfregar é que é trabalho duro!
Jacinto pegou nestas palavras, “esfregar”, “duro”,
“trabalho” e jogou com elas confundindo provocação com sedução. Francisca
riu-se, já sabia o que se gastava em casa, não ia cair novamente no uso
desnecessário das palavras feias, isso é coisa de pobres! Sentiu-se suficientemente
rica para poder dizer ao companheiro de leito:
- Vamos mas é dormir que amanhã podemos não ir trabalhar!
Jacinto mordeu a língua num pensamento de contentamento,
quer ela dizer que amanhã podemos… podemos… podemos trocar o pê pelo fê…
Retomemos então ao ponto em que íamos fechando este parentises, aos dias seguintes, ao regresso de Lisboa e da Santa Casa.
Ele deixou de ir trabalhar, passaram a ser pouco vistos e quando vistos, sempre de afetos um com o outro, pediram a um ou outro um empréstimo da ordem das dezenas, garantindo por juras e juros a sua devolução e o povo foi entregando a sua pena e compreensão ao desgraçado acometido pela doença, certamente grave pois não trabalhava, e a ela coitada que poderia ficar viúva e sozinha, em idade avançada para haver quem lhe pegasse, se tal viesse a acontecer.
Dentro deles, crescia o segredo sufocante. Era difícil falarem com os outros e, entre eles, o tema repetia-se interrompendo os seus semblantes introspetivos, até que, ainda não tinham passado três semanas, receberam a visita duma psicóloga e dum técnico da Santa Casa - uma enfermeira e um médico na versão para consumo da vizinhança. Não havia outro remédio se não confiar em alguém, a senhora doutora iria acompanhá-los nas questões emocionais e o senhor doutor iria tratar do processo de distribuição inicial dos depósitos por várias instituições bancárias sem que eles tivessem de dar a cara. Mais tarde, desfeita a montanha em montes por questões de segurança ou discrição possível, poderiam então tomar nas suas mãos o seu património financeiro ou entregar a sua gestão a alguém que lhes merecesse crédito.
Depreende-se que no tempo decorrido, ainda a
fortuna não tinha acrescentado qualquer prazer extra ou laivo de felicidade às
suas vidas, pelo contrário, o esforço para conter tamanho segredo e o medo de
serem extorquidos, atazanava a sua pacatez. Tornavam-se assim longos os dias,
ainda mais longos por não se trabalhar para além de fazer a comida, comer e dar
comida aos animais e por se recear a vida social. Ainda por cima a simulação da
doença não permitia a Jacinto chegar ao balcão do Abílio e beber uns copos para
se distrair e a suposta continuação das dificuldades económicas, não dava para
Francisca ir espairecer comprando isto e aquilo na mercearia da Júlia ou fazer
como outras vizinhas que volta e meia gastavam uma tarde na Graça cabeleireira.
Mas pronto, esta visita do médico e da enfermeira, aqui para nós, técnicos da Santa Casa, seria para os ajudar a ultrapassar esta fase inicial em que não se sentiam minimamente preparados para lidar com a fartura financeira que deles se apoderou.
Depois de feita a aprendizagem de trabalhar com os bancos – uma ida ao banco era sempre justificada como uma consulta ou um exame médico - começaram a saldar as dívidas e a pagar tudo prontamente. Não ficou esquecida a generosa e secreta transferência para os “bem vestidos” da Santa Casa que os atenderam e desenrascaram em Lisboa.
Para este súbito desafogo económico
encontraram a justificação perfeita para enganar amigos e conhecidos: a filha
dera sinais de si e estava tão bem na vida que lhes mandava algum dinheiro para
os ajudar. Não era um argumento para fazer despesas na ordem do que os seus
depósitos bancários mereciam, mas pelo menos permitia calar o povo que exige
satisfações quando alguém próximo tira o corpo da miséria e começa a viver a
vida que toda a gente merece.
- Talvez… talvez possamos fazer pequenas
mudanças, devagarinho. Começamos por trocar algumas coisas da casa, mas nada de
luxos exagerados.
- Sim, e podíamos comprar uma televisão
melhor. A nossa já tem quase vinte anos…
A mulher sorriu.
- Sim, uma televisão ninguém estranha.
Assim começou o jogo da cautela.
Nos dias seguintes, foram fazendo pequenas aquisições: primeiro, uma televisão nova. Depois, uma mesa de madeira para a cozinha, já que a antiga estava torta há anos. Mas cada compra vinha sempre acompanhada de uma explicação bem pensada para os vizinhos.
- A televisão? Comprámos em segunda mão, uma pechincha! - diziam quando alguém perguntava.
- A mesa? Já andávamos a juntar dinheiro para
isto há tempos - acrescentavam.
Contrariamente ao que seria de esperar o casal
estava até a entender-se muito bem. Dir-se-ia que o pacto do “não dar nas
vistas” estava a funcionar lindamente. Estas pequenas despesas eram normais
para quem tinha descendência bem emigrada.
Toda a gente aceitava que era normal que, por
causa da doença saíssem algumas vezes, que por terem pouco para fazer fossem
muitas vezes passar a tarde à praia dos pobres, a nascente do Agroal, que
fossem outras tantas vezes a Fátima pedir velas de saúde à Santa e fossem a
feiras, mercados e festejos para passar o tempo.
- Quem diria que a galdéria da Lúcia iria
endireitar a vida a ponto de auxiliar os pais desta maneira?
Como
último favor, chamaram táxi para os ir buscar ao 194 da Avenida da Liberdade,
com discretas despedidas para não levantar suspeitas.
Jacinto limpou os pés no tapete de entrada do prédio antes de descer para o passeio da avenida, sinal de que ainda não tinha os pés bem assentes no chão. Francisca e os “bem vestidos” sorriram compreensivamente.
Acontece
que por si, o número da porta já dá uma pista para o taxista que conhece a
Avenida como a palma da mão e, vai daí, ainda os assustou: - Foi muito?!...
Foi
muito o sarcasmo e muito o descaramento pelo que, depois do choque inicial, o
casal acabou por reagir dissimuladamente, fingindo não perceber, não dando troco,
dando um par de sorrisos com ar torto, não dando confiança ao pobretanas que
passava o dia acravado no inferno do trânsito da cidade grande.
Ainda por cima era burro, alguma vez, se fosse o caso de terem ganho um grande prémio, iam para Santa Apolónia apanhar um comboio para Vale dosOvos?!
Sentiram
alívio quando finalmente se viram sentados na carruagem. Agora a sensação era
completamente diferente da viagem para Lisboa. Não havia tanta ansiedade nem
incerteza, mas sim um peso invisível sobre os seus ombros. Sabiam que estavam
prestes a enfrentar o maior desafio das suas vidas: esconder a fortuna de uma
aldeia inteira habituada a saber da vida de todos.
— Vamos manter tudo igual, ouviste? Nada de
gastos exagerados, nada de mudanças bruscas. Se começamos a comprar coisas
caras, toda a gente vai desconfiar.
Jacinto assentiu.
— E se alguém nos perguntar por onde andámos
estes dias?
— Dizemos que estiveste internado! Não saiste
de casa de ambulância? Quando chegarmos vamos logo diretos ao café para parecer
tudo normal e evitar falatórios.
Entraram no seu café de todos os dias como se
nada tivesse mudado, como se continuassem a ser os mesmos de sempre. Um grupo
de fregueses jogava às cartas mas mostraram as orelhas quando o Abílio disse do
lado de trás do balcão:
— Então? Ouvi dizer que estiveste no hospital!
Pela tua cara já estás pronto para voltar ao trabalho!
A mulher sorriu com naturalidade.
— Oh, foi um susto mas julgamos que já
passou. Coisas do coração! Trabalhar é que por enquanto… está quieto! Por agora
vai ficar de baixa.
Jacinto não disse nada. Sempre fora pior a
mentir do que a Francisca e agora sentia que qualquer palavra a mais podia
estragar tudo.
Tomaram o caminho de casa a pé, sentindo os
olhares curiosos de vizinhos, a mulher dando conversa a este e àquele acerca da
convalescença e da doença do marido, e este sempre calado com o ar empedernido
de quem acabou de sair dum internamento.
Agora que a incrível história deste casal que ganhou o euromilhões já vai em andamento, convém tomar conhecimento das origens destas personagens, aqui caídas somente por terem ficado ricas sem ser à custa de outros, sem corpo, sem feições e sem passado. As mãos do narrador não estão, por agora, viradas para dar formas físicas ao homem e à mulher mas exige-se que, ao fim de duas mãos de dias deste enredo, de Francisca e Jacinto se saiba alguma coisinha da sua história “antes-prémio”, já que do futuro haverá ainda muito a contar ou não estivéssemos aqui senão para outra coisa.
Saiba-se então que Francisca ficou orfã de mãe
pelo seu parto e o pai, safado, safou-se da criar e desapareceu, segundo lhe
vieram a contar já crescidita, fugiu para o Brasil ou para lá perto.
Foi criada numa instituição para meninas em Tomar,
onde, chegada à adolescência, se tornou indomável, transgredindo regulamentos,
desaparecendo à noite, estabelecendo contactos com pessoas pouco recomendáveis,
uma dor de cabeça para os responsáveis pela casa.
Foi nessas aventuras que conheceu Jacinto, já
ambos nas raias da maioridade.
Jacinto viera há poucos meses para a zona, vindo dos lados de Oleiros, trazido para trabalho duro por um empreiteiro de obras viárias, fugindo a um lar disfuncional, o pai alcóolico que desde pequeno o carregava de porrada, um irmão deficiente mental e a mãe, desistente do direito a momentos de alegria, acabrunhada, rendida ao destino, sem amor para dar, apenas presença.
Foi neste contexto que ambos se identificaram e se uniram, juntaram-se e ocuparam a casa velha da avó materna de Francisca, nas imediações de Vale dos Ovos, sua única herança, conjuntamente com dois palmos de terra e uns currais velhos ao redor. O pai, quem sabe ainda vivo em S.Paulo ou em Manaus, nada deixara, tudo indicando que, tal como Jacinto, caíra por ali como forasteiro, trazido para obras de melhoramento na linha férrea.
Ainda não tinham vinte anos quando lhes nasceu a filha que, com os genes dum ou de outro, por sina, acaso ou má criação, desapareceu prematuramente do convívio familiar, já o contámos. Antes que nos esqueçamos, deixemos, ainda o seu primeiro nome, Lúcia, pois, só podia ser, se atendermos ao nome dos progenitores.
Volto a repetir: é dia!
Hoje é dia de passear com ela
Porque é o seu dia.
Já que nunca encontro um pretexto para falar de poesia,
Já que há muitos anos que perdi o estado de poesia,
Podem não achar piada mas esta rima entrelaçada
Vou dar uma volta com ela. Com a poesia! Ainda não sei se a levarei presa por uma corda, como quem leva a vaca à fonte, ou se a levarei presa por uma trela como quem leva a cadela a defecar a monte. Ou então irei sozinho ver as árvores, os cães, as vacas e as pessoas. Talvez nesses encontros eu possa refletir acerca da forma como eu, se fosse poeta, traduziria os sentimentos em poesia.
Chega! Já disse o suficiente para assinalar o dia.
Apetece-me um verso! Mas não tenho pão em casa e um verso sem pão não tem graça!
Uma sandes de versos ia! Uma poetisa ia...
Não vou a lado nenhum com esta prosa!
Vou beber um copo para embebedar a poesia! Talvez com vinho ela vença a timidez
E desabroche! Chega não se diz! Basta! Não tem graça!
- Gostava que viesses comigo!
Eu tinha vindo a casa passar as férias de Natal de 75, sou de 62, tínhamos acabado de jantar, vesti a gabardine e fui com ele a pé, lugar abaixo, à casa de fulano tal que servia de intermediário de sicrano.
Abriu-se a porta, sentar, beber alguma coisa, alguma conversa trivial e deu-se início ao ato de negociar.
Não era um negócio qualquer como vender dois quarteirões de pinheiros, trabalhar à troca ou comprar uns leitões, íamos adquirir o primeiro automóvel da família. Já conhecíamos aquele Hillman de vista, as mãos do dono e a sua seriedade, sabíamos que era carro com condições para ir à Nazaré, à Batalha, a Fátima e à missa de domingo, o montante é que era o delas!
Quando se chegou aos 13 contos o meu pai olhou para mim e eu, primeiro pensei que ele tinha achado graça à coincidência de ser a minha idade mas não, ele estava a indagar silenciosamente pela minha concordância.
Fechado o negócio, voltámos para casa a pé, mas com carro comprado, e todos sentimos que havia mais um homem na família.
Anos mais tarde, já o Hillman IMP tinha dado lugar a outro e não tinha direito a garagem nem a grande futuro, aprendi a conduzi-lo. Desafiei o meu pai para ir dar uma volta comigo nele:
- Conduzes bem! Acho que devias começar a pensar em tirar a carta de condução!
- Mas nós não temos conta no banco!
Desta vez o homem alto e bem vestido não
se riu, virou-se para a colega como que perguntando com é que vamos resolver
este assunto. Sim, era evidente que nos próximos dias teriam de abrir contas,
preferencialmente em vários bancos. Mas como poderia a Casa adiantar algum para
eles pernoitarem em Lisboa e regressarem a casa?
A mulher baixa e bem vestida riu-se, virou-se
para o colega como quem diz que encontrou a única maneira.
Saíram os dois por instantes e regressaram à
sala para apresentar a única solução. Eles próprios, os dois funcionários,
iriam ao multibanco e levantariam algum para lhes emprestar. Era só uma questão
de se determinar a quantia e de assinarem um papel confirmando o empréstimo.
Francisca e Jacinto não tiveram outro remédio se não concordar, prometendo que
lhe duplicariam a quantia. Não seria necessário, responderam-lhes, mas além de
lhes emprestarem algum líquido, iriam com eles a um hotel 5 estrelas, ali próximo,
para ali pernoitarem e ali experimentarem os luxos da sua nova vida.
Os dois funcionários prometeram e pediram sigilo
absoluto nestas combinações, não fossem os regulamentos internos arranjar-lhes
alguma mancha na carreira. Não tinham dúvidas que estavam a agir por bem,
embora não fosse muito normal, pobres desenrascarem ricos com dinheiro.
Riram-se os quatro do bom entendimento. Os
felizes contemplados foram deixados no hotel, com o disfarce possível para os
empregados não estranharem ou perceberem que se tratava de felizes contemplados
com o primeiro prémio do euromilhões.
Sentiram incómodo por não haver maneira de
esconder a sua origem e condição, provincianos pobres entre aspas, andaram
pouco à vontade por circularem por espaços e tocarem objetos que lhes eram
estranhos.
Na suíte foi diferente, ninguém os via.
Testaram almofadas e colchões, espreitaram por janelas, miraram espelhos - para
que é isto? como é que isto funciona? olha aqui isto! -tomaram banho, tentaram
fazer amor, não conseguiram - mau! mau! – disse Jacinto - é muita emoção! –
disse Francisca.
Desceram para Jantar. Nem aquela comida era
para eles, nem aquela mesa e aquela toalha, nem aqueles pratos e aqueles
talhares, nem aqueles jovens assim vestidos e com palavras a condizer. Se a
fortuna por sorte os tomou, não seria de certeza para a esbanjar a frequentar
locais daqueles e muito menos a comer coisas daquelas.
Subiram novamente, tentaram ligar a televisão
não conseguiram, tentaram ligar o ar condicionado não conseguiram, tentaram
novamente fazer amor não conseguiram, tentaram falar do dia de amanhã não
conseguiram, tentaram dormir, só lá para as quatro da manhã.
Mas tinham conseguido responder à opção de
tomar o pequeno-almoço no quarto. À hora combinada estavam à porta do hotel
para se encontrarem com a mulher baixa e bem vestida. Esta havia-se
disponiblizado para os acompanhar a uma agência bancária para abrir uma conta e
nomear um gestor de confiança. Depois disso, dirigiram-se novamente à Santa
Casa para tratar de mais umas burocracias e assinaturas e clarificar como se
processariam as coisas nas próximas semanas.
Decorridas 24 horas tinham despachado o
assunto que os tinha atormentado nos últimos dias e tinham arranjado dois
amigos, um homem alto e bem vestido e uma mulher baixa e bem vestida, que
estavam dispostos a ajudá-los no que fosse preciso, que os informariam por
telefone do montante do empréstimo - somados os valores líquidos às contas feitas
com o hotel - que se arranjaria forma de ser feita a transferência, que seria a
dobrar! - repetiu Francisca para encerrar a conversa.
Como
último favor, chamaram táxi para os ir buscar ao 194 da Avenida da Liberdade,
com discretas despedidas para não levantar suspeitas.
Troçava ela deveras irritada pela forma como o marido se descaiu em plena cidade. De vez em quando olhavam para trás para confirmar que o homem não vinha no seu encalço.
Deus deu-me tudo para ser poeta, as aves, as árvores, a humanidade e a dor, esqueceu-se das palavras, por isso, calo-me.
Sim, já o dissemos, pelo sim pelo não, queixara-se nos últimos dias aos colegas de trabalho que não andava bem, o fígado, os rins, o coração, eu sei lá o que é, até que ao terceiro dia disse-lhes a eles e ao patrão: