Vale do Ovos continuava a rodar à volta da estação e a ver passar comboios, até ao dia em que um estranho desembarcou na linha 2 e entrou no Café da Estação. Era um homem magro, de roupas gastas e barba desarranjada. O olhar cansado denunciava uma vida dura e o cheiro a estrada percorrida infiltrava-se no ambiente. Sentou-se pesadamente numa das cadeiras e, com um fio de voz, perguntou:
— Alguém aqui conheceu o Marçal Marques?
O silêncio instalou-se por um breve momento. O
nome, recordado por alguns, poderia não ter causado grande impacto, mas a forma
como foi pronunciado fez com que os olhares se cruzassem.
O Pisca-pisca, que até então bebericava a sua
cerveja tentando manter o disfarce de sempre, sentiu o corpo enrijecer. Abílio
interrompeu a lide do lava-loiça, virou-se para trás e dedicou olho e meio ao homem maltrapilho.
— Quem pergunta? — disse em voz de dono da casa, entre a curiosidade e a desconfiança. O forasteiro ergueu o rosto e respirou fundo antes de pilgarrear:
— Não me reconheces? Eras um garoto!...
O café explodiu em murmúrios. O suposto milionário
brasileiro, cuja fortuna sustentava a nova vida do casal que por aqui se conta,
estava ali, à vista de todos, sem um tostão furado. O plano cuidadosamente
montado começava a desmoronar-se.
O Pisca-pisca, de
olhos arregalados, foi o primeiro a quebrar o silêncio:
— Então... você é o
pai da Francisca? Mas disseram que estava no Brasil, a nadar em massa!
O velho riu-se, um
riso triste, frouxo e rouco.
— Brasil? Dinheiro?
Eu ando aos caídos pelas ruas de Lisboa há anos... Finalmente, arranjei uma réstea de força e coragem para procurar a minha filha que, confirmo, conheceis sobejamente.
Estava, portanto, o
caldo entornado. Era agora claro que Francisca e Jacinto andavam a enrolar o mundo
inteiro e não as perderiam pela demora. Mas era também certo que aquele
desgraçado que ali estava de cabeça arrependida, não tendo corpo para as levar,
teria pelo menos de as ouvir, antes de ser despachado como um embrulho sem
destino, no primeiro inter-regional que ali parasse. Muito embora da sua triste
figura atual fosse difícil reconhecê-lo, muita gente daquela terra mantinha a
memória de o ter conhecido e os restantes, os mais novos, tinham pelo menos
ouvido falar do pai que abandonou a recém-nascida à sua sorte, depois de a mãe
lhe dar nome e adormecer para sempre. Um gesto cobarde como esse não tem
perdão, mesmo se já pouco lembrado e perante o arrependimento confesso do seu autor.
Este despertar da memória da má sorte da pequena Chica, atenuava até a revolta recém-nascida pela presença do velho, que se tornarara testemunha e prova da grande mentira que ela e o companheiro andavam, há uns meses, a espetar a toda a gente.
Ao longo da tarde,
os clientes do Abílio foram entrando e saindo, por acaso ou curiosidade, uns
limitando-se ao consumo ou à avaliação do ambiente e outros, contribuindo com
perguntas e sentenças para o julgamento popular, se antes não lhe podemos chamar
linchamento verbal, tais eram os termos em que se dirigiam ao homem, quebrado, que ali permanecia como se estivesse cercado de ira num beco sem saída.
As pessoas
são mais sensíveis ao sofrimento dos que tiveram um passado de boa vida, do que
à desgraça dos que sempre foram desgraçados, basta olhar para a forma distinta como se preocupam com as tragédias humanas, conforme elas ocorrem no primeiro, no segundo ou no terceiro mundo. E isto, mais do
que castigar Marçal Marques pelo ato cobarde que cometeu, há quase cinquenta
anos, quando abandonou a filha recém-nascida, explica a forma rude e cruel como era recebido e tratado.
A
humilhação foi de tal monta que, com a noite a abrir-se, o Pisca-pisca
desfez-se em emoção alcóolica e dirigiu-se para o destroçado que jazia, silencioso e só, na mesa do canto:
- Estás à
espera que não haja mais comboios? A estação não tarda muito fecha!
- Não saio
daqui enquanto não souber da minha filha!
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