Pois logo agora em que ponderamos mudar de local para que a história retome
rumo, um pintor de construção civil que anda a trabalhar na moradia do lado,
estica um olho pela janela para espreitar um corpo de mulher que se bronzeia
numa espreguiçadeira.
Chamam-lhe o Jápintas e, entre pinceladas, tem por distração entreter a
vista a mirar privacidades. Embora não se consiga observar o rosto da presa no
melhor ângulo, faz-lhe lembrar muito a cara da Francisca do Jacinto.
- Coitada da desgraçada, a esta hora deve de andar a limpar retretes na
Praia da Vieira, enquanto o homem repete cervejas e cigarros numa esplanada.
Nem ela tinha corpo nem feitio para se estender assim ao sol como uma
lagartixa!
Mas, como no dia seguinte se tivesse repetido a visão da vizinha e
conterrânea, Jápintas não adiou a invenção dum pretexto para tocar à campainha.
Por exemplo, um pedido de desculpas pelo ruído que iriam causar enquanto tivessem
de ter ligado o compressor.
Foi Jacinto quem abriu a porta pelo que logo ali se esclareceram as
dúvidas sobre a identidade do corpo da mulher. Jacinto, com cara de quem não tem
onde se enfiar, sentiu o corpo a enrijecer enquanto Jápintas revelou um riso
vitorioso e sarcástico de quem descobriu uma grande careca.
- Nem quero acreditar! Que andas tu aqui a fazer rapaz?
- Isso pergunto eu! Eu ando a fazer um serviço aqui ao lado! E tu? És
chofer do dono desta casa?
As explicações de Jacinto foram um emaranhado de contradições. O casal tinha levado
longe demais a sua criatividade. Se tivessem mantido a história do pai de
Francisca como fonte de todas as riquezas, poderiam agora apresentar a
justificação simples da casa ser do brasileiro como disseram ao vendedor
imobiliário. Mas não, quiseram reduzir-se aos trabalhos e aos biscates em
hotéis, à residência num bungalow, à vida pacata e remediada e, agora, tem de se
haver com a difícil tarefa de inventar em tempo real.
Primeiro, Jacinto viera só arranjar umas persianas. Depois, confrontado com
a presença de Francisca:
- Pois é, sabes como é! Os donos não estão cá, ela veio comigo e aproveitou
para um mergulho!... Ó Francisca chega aqui, temos visitas!
Francisca, que não ouvira o diálogo entre os dois, manda entrar o pintor e
oferece um copo com o à vontade de quem está em casa sua. Como se não bastasse,
para aumentar a confusão instalada, veio com a sua ocupação de mulher-a-dias,
dando um golpe fatal na credibilidade de toda a história.
Já de cerveja na mão, Jápintas afiou a língua e atirou sem dó:
- Mas vocês estão a fazer de mim lorpa ou quê? Vocês estão é ricos e não
querem que ninguém saiba!
Francisca, mais hábil na arte da ficção, não teve outro remédio se não ir
repescar novamente o pai para a rede, como proprietário do casarão de praia e
patrão dos caseiros, filha e genro.
Sem direito, ou razão maior para os contrariar, Jápintas lá voltou para o
seu trabalho pouco convencido, com dúvidas de que seria capaz de manter o
segredo que eles lhe pediram, sendo que, nos dias que por ali andou, todas as
tardes foi cravar uma cerveja aos dois amigos.
Este incidente despoletou um grave desentendimento no casal, que há tempos
vinha acumulando tédio, apenas quebrado por pequenas discussões sobre o que
comer, o que comprar ou o que fazer e grandes desentendimentos filosóficos
sobre a vida que tinham e as razões de viver. Ter a questão económica garantida
pode assemelhar-se à perda do leme que nos conduz para o futuro, o Jacinto e a Francisca aceleravam a sua marcha para a desorientação total.
A certa altura ainda puseram a hipótese, se não seria melhor acabar com o
segredo, com as mentiras e enfrentar os perigos da vida milionária, mas
acabavam sempre por voltar às razões do princípio. Ora, esse risco pairava no
ar sempre que os problemas conjugais ameaçavam a prata do casamento, pelo que,
antes que a relação descambasse de vez, Jacinto arrumou as malas, negociou com
um taxista e partiu sozinho para Vila Facaia, nas suas palavras, para espairecer.
Francisca despediu-se com a frieza adequada à situação e entrou em casa a
desenhar projetos de vida boa que a preenchessem até ao Natal, altura em que
iria receber o telefonema da filha.
Assaltava-a recorrentemente, contudo, uma preocupação maior, a
probabilidade do pintor, chegado a Vale dos Ovos, ter feito estragos na sua
reputação, por abuso de bater com a língua nos dentes.
Deixemos pois a Francisca a inventar dias felizes e vamos nós até Vale dos
Ovos, ver se há novidades.
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