domingo, 11 de maio de 2025

16- A história real dum casal que ganhou o euromilhões.

 


Ao terceiro dia, fartos da vida monótona e estéril do hotel, ligaram ao taxista.

- Quanto é que o senhor nos leva de nos levar duma ponta à outra do Algarve?

Com multas de estacionamento, tabaco e almoço à nossa conta!

 

Não por bom-tom mas por entretenimento, regatearam o preço e lá partiram os três contentes.

- É a 125, um perigo de estrada mas não há forma de percorrer o Algarve que evite andar a entrar e a sair dela! Se os senhores concordarem, julgo que o melhor é fazermos assim: …

… e assim fizeram, de terra em terra, praias, cais, hotéis, marginais, pontes, rios,  ria, um cafézinho aqui, uma imperial ali, conta-se que aqui aconteceu, é ali, com certeza que já ouviram falar, almoçar onde se coma bem e seja bom o vinho, isto é Sotavento, do lado de lá já é Espanha, outro dia podemos ir lá, amanhã é Barlavento, e tal… Sagres!...

- Sempre! Se houver dessa não quero outra! – disse Jacinto.

- Para hoje já chega! E depois pensamos nós que não fazemos nada! Gaita! Estou cansada!

Disse Francisca enquanto se despediam do taxista à porta do hotel.

- Até amanhã.

E, na manhã seguinte, à hora marcada, lá estava à porta o homem do táxi – Barlavento, Albufeira, Portimão, Lagos, Sagres.

- Sempre! Se houver dessa não quero outra! – disse Jacinto.

E, no dia seguinte – Sotavento, Ayamonte, Portugal.

- Sempre! Nunca gostei de espanhóis! – disse Francisca.

- Quantos conheceste na tua vida? – perguntou Jacinto.

- Nenhum! – respondeu Francisca.

- Hum! – comentou Jacinto.

 

Mais um dia e vão sete, uma semana, chega de hotel e de turistas, de Algarve e de sol, de esbanjamento e mordomias, “a gente não nasceu para isto!”, “quem gosta disto que lhes faça bom proveito!”, mas na volta até estavam a começar a dar-lhe o jeito:

Francisca mandou arranjar o cabelo e as unhas, comprou algumas roupas para logo se arrepender: não poderia regressar à terra tão cuidada e bem vestida! Por outro lado pensou na sua infância e adolescência condicionada pelos regulamentos e a austeridade da Casa da Criança. Pensou também no passo mal dado duma vida a dois, prematura, que lhe traçou o futuro e a condição de pobreza .

Jacinto, “goleando” um whisky, na varanda, recordava o seu lar de infância, a pobreza, a porrada do pai, o pai que apenas brincava com ele à sardinha, e daí o seu sonho de criança: ser campeão nacional do jogo da sardinha. Pensou no passo bem dado, a saída de casa para vir trabalhar para a linha e engatar a Francisca para partilhar com ela a pobreza e a vida traçada.

 

Quem advinharia, há um ano atrás, que eles próprios iriam trair o destino, num impulso de sorte de Francisca, que decidiu jogar no euromilhões à revelia do marido?

Um pequeno gesto que lhes proporcionava agora uma nova vida, entendendo-se como nova vida, não esta que acabavam de experenciar por terras do Algarve, que para tal vida se confirmava agora não terem nascido, mas para a vida de fazerem o que lhes apetece.

 

Fazerem o que lhes apetece, pode dizer-se, porque nos últimos desenvolvimentos começa a ser notório que a “mentira”, ou melhor, a “ocultação da verdade”, melhor ainda, a “ficção”, os está a divertir e a entusiasmar. E é melhor assim porque este é um domínio em que ambos, personagens autênticos desta prosa, o autor e porque não, os leitores, têm de se haver, o de andar para aqui às voltas, a arranjar maneira de ninguém descobrir que há duas pessoas que estão podres de ricas e ninguém pode saber. E metemos também os leitores ao barulho, porque isto de fazer fantasias sobre o que faríamos se nos calhasse a sorte grande, já todos fizeram, sendo que uma boa parte deste “todos”, fez pensamento de não contar a ninguém, se não aos amados dignos de tamanha confiança. Se esta realidade influenciará ou não o interesse por esta leitura, é difícil podermos averiguar.

 

Coloquemos, portanto, de novo a Francisca e o Jacinto no seu lugar, sentemo-los a discutir detalhes e a dar retoques na sua invertida fantasia para consumo de próximos, coisa que estão a aprender a tomar-lhe gosto. Tivessem eles escola ou leitura que lhes desse traquejo para escrever, escreveriam eles próprios essa parte, folgando-me a mim, que só Deus sabe a dificuldade que tenho em inventar, não fosse tudo isto baseado numa história verdadeira, onde a verdade só não é assumida por questões de segurança dos premiados, e há muito que eu teria despejado a saga no almofariz.

 

Não vamos agora expor o combinado para se dizer a propósito desta semana que, para todos os efeitos, foi vivida em Lisboa entre encontros, refeições, projetos e afetos entre genro, filha, pai e companhia, não esquecendo que o genro também vai ter alta e começar a poder beber umas bejecas com autorização do médico do hospital. Para não nos repetirmos ou expormos contradições, o combinado para se dizer, vai ser revelado aqui à medida que for contado, em tempo real, aos destinatários, e apenas quando se entender ser de cariz relevante para a necessária coerência duma história desta natureza, sob pena de ficarem a descoberto as alegadas incompetências do autor menor, por quem tantos aguardam uma oportunidade de apontar o nu.

 

Quando regressaram à aldeia, estavam prontos para desenrolar a novela pelos ouvintes. Vestidos de forma discreta, sem extravagâncias, carregando a mesma mala com que partiram, atravessaram o largo da estação e dirigiram-se ao café do Abílio. Não tinham almoçado, vinham esganados.

- Arranja aí duas sandes de fiambre com manteiga e duas médias!

- Tem calma, já te contamos, estamos com tanta fome que nem conseguimos falar!

2 comentários:

Janita disse...

O dinheiro, esse vil 'mital', pode vir e ir, mas esta experiência inesquecível, que este casal está a viver, já ninguém lhes tira de cima.
Que fique o autor desta saga descansadinho da vida, que não serei eu a apontar-lhe o nu!!!
Todo o Rei, Monarca, ou escritor, tem o direito de se desnudar a seu bel prazer!!

Um forte e encantado abraço.

Pata Negra disse...

Isto vai Janita, isto vai, um passo em frente, dois passos atrás, mas isto vai. Obrigado pelo amparo.