domingo, 4 de maio de 2025

15- O caso incrível dum casal que ganhou o euromilhões

 

O hotel era um imponente edifício branco com vista para o mar. Sentiram-se transportados para outro mundo. O luxo era esmagador para um casal habituado à simplicidade dos espaços rurais.


Certo que já tinham pernoitado no Tivoli quando foram receber o prémio, mas nesses dias estavam anestesiados, não tinham sentidos para reparar no que viam, ouviam, cheiravam, saboreavam ou no que mexiam.


— Isto parece coisa dum filme! — exclamou Francisca de olhos arregalados.

Jacinto, menos expressivo, tentava manter a compostura. Mas, quando entraram no quarto e viram a cama enorme, o minibar recheado e a casa de banho com uma banheira cheia de torneiras, largaram uma gargalhada e atiraram-se para cima dos lençóis macios.

Os dias seguintes foram uma sucessão de deleites e trapalhadas. Era tudo muito lindo mas nada combinava com eles, nem o serviço requintado, nem a comida deslavada, nem o brilho das superfícies, nem o odor das pessoas finas. Funcionava tudo muito bem mas nada fora feito para eles, nem as torneiras automáticas, nem os talheres tortos, nem as toucas da piscina, nem os avisos em inglês.


A vida, fora dos aposentos, era um emaranhado de cruzamentos com hóspedes estrangeiros que os ignoravam, mulheres de Lisboa que de lado os olhavam, doutores de sucesso que a casta lhe exibiam, crianças ricaças de educação de colégio que não os distinguiam, reformados velhos que nem sequer os viam, funcionários fardados a quem só faltava dizer: os senhores estão no hotel errado. E claro, o senhor da portaria que, depois de tanto se perguntar “será que eles vão ter dinheiro para pagar?”, acabou por os destratar pedindo-lhe todos os dias o cartão de crédito.


Este embate cultural, social e político de Francisca e Jacinto, com as pessoas finas da classe dominante que se estão sempre a queixar que pagam muitos impostos, provocou-lhes efeitos idiossincráticos que despertaram a sua consciência de classe e alteraram o seu comportamento inicial. Tão ricos ou mais ricos do que todos aqueles pobres de espírito com quem se cruzavam pelos espaços do hotel, não tinham satisfações a dar a essa gente, pegariam no garfo como queriam, beberiam demais se lhes apetecesse, dançariam devagarinho com a música ambiente, ergueriam a voz quando fosse preciso, falariam com muito orgulho português e, se lhes saísse a palavra “merda” da boca, paciência, não gostam, ponham na borda do prato. Isto falaram eles ao fim do primeiro serão, quando passaram o dia em revista, as figuras que fizeram e a figura que passaram e redefiniram os objetivos da sua estadia.

 

Viventes, contentes, entre as matutices e deslizes que experimentavam e gozavam nestes dias duma doce lua, não se esqueceram da representação que teriam de fazer quando regressassem a Vale dos Ovos, pelo que, o argumento da história para ser contada, era tema recorrente, recorrentemente remendado com cunhas e apêndices, novos episódios e aperfeiçoamentos feitos à “grande mentira” em contínua construção. O lado perverso da opção que tomaram, ao guardar para os dois tão grande segredo, tomou tal forma, que a partir de certa altura, a criatividade que se lhes exigia para desenvolver a ficção, transformou-se num divertimento próprio de gente ociosa, num passatempo que preenchia o vazio dos dias, num  desafio que, por portas travessas, os unia.

 

— Então, o que é que lhe perguntámos ao certo? — dizia Jacinto, de caderno na mão, enquanto estavam deitados ao sol.

— Perguntámos o que é que ele fez da vida no Brasil, porque nunca deu notícias… Ah! E ele explicou que passou anos a tentar contactar-te, mas nunca conseguiu.

— Sim, sim… e agora está podre de rico porque fez fortuna com… com quê mesmo?

— Pode ser café? Ou ouro? No Brasil há disso, não há?

— Tem de ser algo credível, mas que ninguém possa confirmar. Talvez negócios imobiliários. Sim, isso! O meu pai comprou terras baratas há muitos anos e agora valem uma fortuna.


A história ia ganhando forma. Cada detalhe era ensaiado até que ambos fossem capazes de contar a versão exata sem hesitações.

1 comentário:

Janita disse...

Não é à toa que se diz que uma mentira dita muitas vezes acaba por soar a verdade.
É assim que fazem os políticos! Não tarda nada a Francisca e o Jacinto candidatam-se à Presidência da República...

Abraços. :)