sexta-feira, 4 de outubro de 2024

Uma família normal

Vanessa conhece-me ainda suficientemente bem para chegar ao café, aproximar-se de passagem da mesa que ocupo em solidão, espetar-me duas beijocas e fazer daquelas perguntas triviais do “então tudo bem?”, “onde é que estás?”, “que fazes?”, “casaste?” e mais duas ou três destas, intercaladas de respostas curtas e rematadas na minha simpatia anti-social com um “e tu?”
- Eu? Sou sempre a mesma! Vou sentar-me aqui ao lado com estas primas!...
Há muitos anos que não a revia. Tenho uma vaga ideia de na meninice chegarmos a brincar aos doutores e dela se ter adiantado na emancipação, por ser mulher, e lhe perder a proximidade. Saiu da terra, deve ter arrendado quarto na vila, falou-se dela, que andaria na passa, que dera em puta para sustentar o vício, uma desgraçada, enfim, comentários que a aldeia não perdoa a quem a rejeitar. Eu, sempre do contra, lembro-me de um dia lhe fazer defesa:
- Fosse eu mulher e teria o mesmo ofício, vendido ando eu a trabalhar no duro!
Vanessa, pela ausência, esqueceu e só me voltei a lembrar dela quando o António Variações saiu da tumba, na voz de outros cantores, a falar da filha de uma tal Maria Albertina. Coincidência, o único dia de agosto que dediquei à terra, Vanessa estar ali para rever as primas, na mesa ao lado, a debitar vivências com o seu conservado estilo, enquanto eu disfarçava o ouvido, com as folhas do Correio da Manhã da casa e um tinto já com pique, também da casa!
Contava ela – eram duas as atentas – as suas férias todas cinco estrelas, desde o hotel à praia, passando pelo tempo, a comida e a diversão. Vanessa contava de tal modo entusiasmada que deixava transparecer a ideia que o ponto alto do seu gozo não eram as vivências mas sim a oportunidade de as contar. E mais ali, em que as primas, a julgar pela pele, nunca deviam ter passado além da Nazaré, o efeito do seu relato era de ginjas.
Ficara muito barato, os quatro com comida e meia pensão – ela devia querer dizer dormida e não comida – com todos os spas, lençóis novos todos os dias e garçons falando português – percebi que o paraíso fora algures entre Quarteira e Vilamoura – ficara em não sei quantos euros.
O António só estava bem na rua, o Fernando a comer, o João a nadar.
O João gosta de marisco, o Fernando de estranhos, o António do mar.
O Fernando dormia à tardinha, o João à noite, o António de dia.
O João é de discoteca, o Fernando é de livros e o António é de bar.
O Fernando adorou, o António adorou, o João adorou.
- Tu adoras os três!...
Disse uma das primas. A conversa andou por aqui à volta e eu a pensar nas voltas da vida, com a Vanessa casada, dois filhos e férias de sonho…
- Prazer em ver-te João!
As três de saída e eu feliz com a Vanessa, a revivê-la na bacidez do tempo.
- Quanto é que devo Ti Etelvina?
- Está tudo pago!
- Quem?
- Foi essa cabra que acaba de sair! Vê lá o que fazes João, tu tens família!
- O quê?
- Então essa!!!... não regressou aqui ao fim de tantos anos com três homens?!…
- E então?! Fez família!…
- Quais família quais quê João! Ô da-se! Estou a dizer-te que vive com três homens ao mesmo tempo!
- Ôooo da-se! …
A Vanessa contou umas férias normais. Se for necessário continuarei a defender a Vanessa.

3 comentários:

Rogério G.V. Pereira disse...

Pelo que li
Pelo que vivi
Junto-me a ti
Na defesa
Da Vanessa

Tintinaine disse...

Eram as Vanessas que alegravam a nossa mocidade!

Janita disse...

E eu, que não pertenço ao grupo nem em grupos vou, fico aqui a cantarolar em tom estridente:

"Maria Albertina porque foste nessa
de chamar Vanessa à tua menina"?

Ora essa!!