sábado, 11 de janeiro de 2025

A ternura dos sessenta


A primeira vez que me sentei na sanita sem levantar o tampo, não estranhei.
Puxar do comando televisão para telefonar a um amigo foi porque me tinha esquecido dos óculos algures não sei onde.

Dos óculos afinal estarem no nariz, pensei: o olfato perde-se com a idade!

Chegar à cama e, em vez de vestir o pijama, voltar a vestir as calças de bombazina - pareceu-me estranho.

Dormir com os pés no travesseiro, pareceu-me cansaço.

Distrair-me 40 minutos no chuveiro, achei que era a descoberta de novos prazeres.

Pôr a espuma de barbear na escova de dentes - foi por dormir pouco!

Estar a pôr a chávena no frigorífico e procurar o leite no forno do fogão - foram outros pensamentos!

Dar por um par de cuecas a espreitar num sapato e reparar que um dos sapatos era diferente do outro – sou um despistado!!!

Passar três vermelhos - distrações da manhã! 

Cumprimentar o chefe por, então pá!? – não me pareceu normal!

Esquecer-me de almoçar – foi um mau pressentimento.

Não fazer a mínima ideia de onde deixei o carro – que dia de trabalho!!!

Mas, por engano, entrar no 3º esquerdo em vez do 2º; ouvir uma voz de mulher a gritar: “fui violada!”…

E da caixa das escadas uma voz tão familiar: Puta!!!... Putão!!
Já não foi entendido como sintoma da idade!… Foi traição! Fui traste!...

Ninguém acredita que estava convencido que estava a sonhar que estava a dormir encavalitado no meu único amor!

Entrei em casa, não se trocaram palavras, apenas reparei que todas as torneiras que pingavam há meses estavam reparadas.

Caraças da idade!


sexta-feira, 3 de janeiro de 2025

Este ano de 2025 gostava de

 Este ano de 2025 gostava:

- de perder um pouco de barriga para começar de novo a ver todas as partes do corpo quando estou no chuveiro;

- de aparecer na TV numa entrevista de rua, nem que fosse só atrás de alguém, desde que tivesse tempo para telefonar cá para casa e dizer à família: por uma vez liguem a dois;

- de começar a gostar de futebol para não comentar só o tempo com os colegas de trabalho;

- de deixar de receber fotos de mamas grandes no whatsapp e de arriscar finalmente os links do facebook que prometem a paz e a felicidade;

- que se tornasse público o clip de vídeo em que o Costa e o Marcelo deram um beijo na boca;

- que os impostos e os preços deixassem de subir às mijinhas e tivessem aumentos dignos de se verem, de tal forma que o pagode ganhasse força para dizer "aí paras!";

- de deixar de ver na TV o Marques Mentes, o general Isidro e a aquele dos óculos com aros azuis da última página do Público;

- de beber e comer à vontade sem ouvir dizer olha que isto faz mal;



- que terminasse a guerra.

sexta-feira, 27 de dezembro de 2024

Pontos de vista

 


  • Do ponto de vista do mocho, do morcego, do boémio e do ladrão, o crepúsculo é a hora do café da manhã.
    A chuva é uma maldição para o turista e uma boa nova para o camponês.
    Do ponto de vista dos autóctones, o que é pitoresco é o turista.
    Do ponto de vista dos índios das ilhas Caraíbas, Cristóvão Colombo, com seu chapéu com plumas e sua capa de veludo vermelho, era um papagaio de dimensões nunca vistas.
  • Do ponto de vista do Sul, o verão do Norte é o inverno.
    Do ponto de vista de uma minhoca, um prato de espaguetes é uma orgia.
    Onde os hindus vêem uma vaca sagrada, outros vêem um grande hambúrguer.
    Do ponto de vista de Hipocrátes, de Galeno, de Maimónídes e de Paracelso, existia uma doença chamada indigestão, mas nenhuma doença chamada fome.
  • Do ponto de vista do Oriente do mundo, o dia do Ocidente é a noite.
    Na Índia, os que estão de luto vestem-se de branco.
    Na Europa antiga, o negro, cor da terra fecunda, era a cor da vida, e o branco, cor dos ossos, era a cor da morte.
    Segundo os velhos sábios da região colombiana do Chocó, Adão e Eva eram negros e negros eram seus filhos Caim e Abel. Quando Caim matou o seu irmão com um golpe de bastão, a cólera de Deus trovejou. Diante da fúria do Senhor, o assassino empalideceu de culpabilidade e de medo, e empalideceu tanto que continuou branco até morrer. Nós, os brancos, somos todos filhos de Caim.
  • Se os santos que escreveram os Evangelhos tivessem sido santas, como seria explicada a primeira noite da era cristã?
    São José, contam as santas, era mal-humorado. Era o único amuado na creche em que o menino Jesus, recém-nascido, resplandescia em seu berço de palha. Todos sorriam: a Virgem Maria, os anjinhos, os pastores, as cabras, o boi, o asno, os magos que vieram do Oriente e a estrela que os conduzira até Belém. Todos sorriam, salvo um. São José, entristecido, murmurou: “Eu queria uma filha.”

Eduardo Galeano

segunda-feira, 23 de dezembro de 2024

Em modos de Natal.

 - Que tens tu?
- Nada. É Natal!
(Alexandre O'Neil)
- A árvore?
- Cortaram-na!
(Pata Negra)

sábado, 14 de dezembro de 2024

Chega para todos

É difícil alguém vir ao fim de semana a minha casa sem ter a oportunidade de observar a sequência de afazeres do Zé, serrador, criador de gado e meu vizinho.

Propus ao Gonçalves que viesse filmar um sábado do Zé, desde a primeira urinadela da manhã, que faz, note-se, de costas para o meu quintal e virado para o lado para onde pode dizer "já estou levantado ó Sol, podes nascer!", até ao lusco fusco, altura em que me dirá, mais alto ou mais baixo, consoante  a distância que nos separe, "também não tardo lá muito em cima dela!"

Fiz-lhe a proposta com frases cuidadas e recebi de imediato a reação dele, apoiada pela mãe viúva que com ele vive: sábado é bom dia porque vamos aqui ter um rancho na apanha da azeitona!

Não era bem isso que se pretendia mas não havia modo de explicar porque teria de ser de outra forma. E assim foi, no dia marcado, o Gonçalves apareceu e soltou o guião ao Manda-chuva que a mandou a potes, obrigando o operador a resguardar-se com a câmara em espaço coberto, motivo que fez com que a personagem principal, em vez do Tó Zé, passasse a ser a mãe enquanto cozinhava.

Toda a gente que já viu o filme deu por bem passados os trinta minutos.




quinta-feira, 12 de dezembro de 2024

Movimento contra a extinção das dúzias nas grandes superfícies

(Título alternativo: Divagações à volta do número 12)

Enganar fez sempre parte do negócio: o camponês que arrancou dentes ao burro velho para o vender na Feira dos 12, a balança propositadamente desafinada do merceeiro do bairro, o vinho com água do taberneiro da esquina, o homem que vendeu gato por lebre.

Mas o engano tomou descaradas proporcões com a consolidação da vitória do capitalismo das grandes superfícies comerciais sobre o comércio tradicional. Eles enganam com os grandes reclames e as letras miúdas, com as cores das luzes e os embrulhos opacos, com o lugar das prateleiras e com os descontos e ofertas e, como toda a gente sabe, com os preços terminados em 99. E o pior de tudo é que, mesmo com consciência disso, nós vamos ao engano como se este sistema fosse uma fatalidade à qual nos temos de render.

Depois de terem implementado a subtil subida de preços pela diminuição discreta de volumes e pesos, eis a sua mais recente invenção: embalagens de dez estão a substituir as de dúzias, essa referência numérica milenar.

Não sei se já se perguntaram porque é que os sistemas duodecimal (12) e sexagesimal (60), com origem suméria (onde em vez de se contar pelos 10 dedos se contava com o polegar da mão direita as 12 falanges dos outros 4 dedos e se ia multiplicando, até 60, pelos 5 dedos da mão esquerda), têm sobrevivido durante séculos ao sistema decimal?

Na verdade, o número 12, para além da sua presença em motivos históricos e religiosos, é, a par com o número 60, naturalmente utilizado nas medidas trigonométricas e de tempo. Mas como se explica que as dúzias e meias dúzias continuem a dar bastante jeito na gestão das quantidades domésticas?

Também nisso, os gestores do grande comércio mostram a sua insensibilidade ou, quem sabe, a sua ignorância, já que estamos em acelerado processo de substituição das embalagens de 12 por embalagens de 10, isto, claro, sem incomodar o consumidor com alterações de preços!

Sim, trata-se de gente que não está habituada a dividir com outros, pois que eu divido irmãmente uma dúzia de ovos por 2, 3, 4 ou 6 comensais, enquanto uma dezena apenas posso dividir por 2 ou 5, sendo difícil fazer a terça ou quarta parte.

12/12/24

sexta-feira, 6 de dezembro de 2024

Peditórios de todo o país, uni-vos!

Quando chegou a minha vez de chegar à caixa registadora respondi:
- Não não vou dar nada, não dou aos pobres pela mão dos ricos!
 Tudo ficou de me comer: a senhora que ia atrás, o senhor que saía à frente, a operadora, a caixa , a câmara de videovigilância, o maior acionista!... 
Mas ninguém me comeu, ninguém se atreve a engolir ou mastigar aquele que lhes parece um monstro.
Também ninguém se prestou sequer a pôr a hipótese de eu ser pobre.

A verdade é que estou farto de peditórios.

É na caixa registadora e à entrada e saída do supermercado, e lá dentro o produto com a esmola incluída no preço, é à entrada e à saída do emprego e é lá dentro a colega irresistível, é o filho que traz umas rifas da professora de religião, é o professor de grego que quer ir com a turma à Grécia, é o cunhado que é sócio da associação columbófila, é a sogra que é confreira de São Vicente Paulo, a vizinha bombeira, é campanha, é sorteio, é na feira, é na rua, é nos semáforos,  é a santa de Fátima, é o relógio para a igreja, é contra a fome, o cancro e a cegueira, é pelas crianças, pelas mães solteiras e pelos idosos e é, sobretudo, porque é Natal, porque o Natal é economia, é dinheiro, é consumo, é comer, é uma gaita. O Natal é uma gaita!

Mas ao menos que concentrassem a atividade, que fizessem um império do ramo.

Façam  um único e grande peditório porque já não há paciência para tanta caridade avulso.Peditórios de todo o país, de todos os motivos e de todas as ocasiões: uni-vos!

(A água do rio não se trata na foz, cuida-se desde da nascente)


quarta-feira, 27 de novembro de 2024

O "homem que me persegue" não se dá na escola mas vende-se.

O "homem que me persegue" - à venda na FNAC e na AMCRC.


Foi na sala da fotografia, agora transformada em Centro de Convívio, que aprendi a ler e a escrever. 
O senhor Carlos, que veio "lá de cima" com uma "retraite", fez-se voluntário e toma conta do bar e coisa e tal. 
O senhor Carlos é também o meu agente de vendas local e o anúncio que escreveu no quadro de giz, faz do "homem que me persegue" um sucesso entre alfabetizados de poucas leituras.
Eu gostei muito de olhar para o quadro e constatar que um livro ainda pode valer o dobro dum chapéu com o emblema da Associação.
O senhor Carlos também está a ler o livro, segundo ele o primeiro que lê desde que saiu da escola, já lá vão quase 50 anos, e diz que o livro é uma pedra.
A semana passada fui à terra, mas o senhor Carlos não estava porque tinha ido a Paris ver a barriga da filha que está grávida e diz-se que lá vai voltar quando o neto for nascido.
Quando o senhor Carlos regressar, o livro voltará a estar à venda no balcão do bar da Associação.
O senhor Carlos diz-me que, quando está a ler as minhas histórias, não precisa de fumar mas há pessoas que, identificando indícios de acontecimentos ou de personagens lá da terra, dizem que eu sou um grande mentiroso. 
Pois eu digo que numa história que se inventa, a verdade deve ser pouca e é até provável que, na presente "mensagem", para além do facto de eu ter um amigo no facebook que se chama Carlos, apenas seja real a imagem da parede interior duma escola primária do tempo do outro senhor.

O livro agora também está à venda na Bookmundo:


sexta-feira, 22 de novembro de 2024

Se não há desculpa para não comprar, é melhor arranjar razão para não ler!

(Desculpem lá aproveitar-me do espaço da pocilga para denunciar o "homem que me persegue" mas não tenho ao meu alcance muitas outras formas de divulgação).

Não me rendo à máquina monstruosa dos monopólios do capitalismo mas... 
Quem teriam sido as almas cibernéticas que puseram à venda na FNAC "o homem que me persegue" como se ele fosse um homem escravo, um aspirador ou um bacalhau?!

- Não sei mas faço ideia. 
Isto não me mete medo mas, se começaram a pingar os "royalties"... (ah!ah!ah! - boneco amarelo a rir - não sei pôr isso). 

Mas atenção: não me rendo nem me vendo!





sexta-feira, 15 de novembro de 2024

Novo livro do Pata Negra

Cá estou eu novamente armado. Comprem! Comprem! Leiam! Leiam!...


quarta-feira, 13 de novembro de 2024

Trump chegará a Portugal, como o Desejado, numa manhã de nevoeiro

Cenário: 

Uma festa familiar de classe média. Três casais, seis filhos, dois avós e uma avó. Três gerações.

Duas crianças, em idade escolar, divertem-se com um videojogo de guerra onde "vestem a farda" Delta Force num cenário nova-iorquino. 

Dois adolescentes em idade de liceu, um vê no tablet uma série policial passada em Los Angels e o outro delicia-se com um reality show da TV Las Vegas.

Dois jovens universitários entretêm-se mostrando um ao outro os telemóveis, com umas novas aplicações made in USA e que, estão convencidos, irão revolucionar a revolução digital.

Porque se trata de novas gerações, os seis filhos não se separam por sexo, o mesmo não se dirá dos adultos.

As mulheres estão na cozinha, a ver na TV um talk show americano que, segundo uma, chegará rapidamente a Portugal. Excepto a avó que anda de volta dos netos a perguntar se querem coca cola e se gostaram do almoço - se não gostaram da próxima vez leva-os ao Mac Donald´s.

Os homens estão a partilhar um whiskey Jim Beam pós refeição, na varanda. Excepto o avô que está sem poiso certo vagueando pela casa, parando junto das crianças a procurar atenção e tentando convencê-los a jogar pião, junto dos adolescentes para procurar carinho e desafiando-os para um dominó, junto dos universitários para os tentar entender e recomendando-lhes um livro de João Rato. Passa pela cozinha e mostra falsa curiosidade pelo que vêem. Vai à varanda e pergunta se não querem antes um tinto alentejano e manifesta claro desprezo pela conversa.

Um dos homens é oficial de infantaria e fala da sua aventura no Afeganistão dando razões à intervenção americana e à NATO e elogios às armas e ao treino que eles têm. Ninguém o contradiz. O outro homem, que é bancário, mudando a conversa, explica a crise financeira e a inevitabilidade de adoptarmos o modelo capitalista americano. Ninguém o contradiz. Muda-se o disco e o mais novo, que é pequeno empresário, dá vivas às leis laborais da América e assegura que ficaremos na cepa torta enquanto não se acabar com os sindicatos. Ninguém o contradiz. Fechada a conversa, dirigem-se à sala e perguntam aos filhos se não querem antes ver um filme de índios e cowboys como nos bons velhos tempos. 

Todos dão pela falta do avô, procuram-no, encontram-no. Está na casa de banho a limpar o rabo a um boné que tem a bandeira americana estampada e as iniciais USA. Pergunta-se, de quem é o boné? Pode ser de todos, dele é que não é!
A avó invoca o Nome de Deus em vão tal como os americanos fazem continuamente.

Poder-se-ia dizer, o velho enlouqueceu de vez. Provou-se que não quando ele disse para a família que se juntou atrás da avó, à porta da retrete:
- Ainda terei lucidez quando um dias destes assistir à eleição, com o vosso voto, dum Trump à portuguesa! Infelizmente ainda lúcido e felizmente mais que vós. 


sexta-feira, 1 de novembro de 2024

Este dia não é de todos os santos mas de todos nós

1- Quando eu era pequenino o dia 1 de novembro era o dia do Bolinho. Nós,  os petizes,  íamos em bandos pedir, de porta  em porta, o Bolinho que podia não ser bolo mas nozes, tremoços, castanhas peladas, cinco tostões, rebuçados franceses,  "não tenho aqui nada" ou "sumam-se daqui para fora cachopos pedinchões!". 
No fundo tratava-se duma iniciação áquilo que os portugueses tanto gostam de fazer: pedidos e peditórios, recolhas de bens e angariações de fundos. 

O facto de sermos muitos ou poucos, filhos de fulano ou sicrano, mais ranhosos ou mais engraçados, tinha bastante influência na qualidade e quantidade das iguarias recolhidas. 
Um dia, já grandito, a esperta da minha mãe aconselhou-me a ir sozinho e recomendou-me as palavras e modos como devia chamar pelas tias e pedir o Bolinho - tive de ir três vezes a casa despejar a saca e juntei uma nota de Santo António de tostões, tal foi o sucesso.

2- Quando ganhei buço, o dia 1 de novembro passou a ser o Dia de Todos os Santos. Durante os loucos anos 70 e 80, o dia era de festa, de baile ou de andar de pipo em pipo para eleger a melhor água-pé da aldeia. Lembro-me num dia em que, pelas quatro da tarde, começámos quatro, e pela meia noite éramos  quarenta,  visitando todas as adegas, deixando em todas as casas do lugar um rasto de melodias e alegrias que avivaram as lareiras adormecidas das gerações mais antigas.

3- Agora que sou grisalho, queriam que eu começasse a viver o dia como o dia de ir ao cemitério mas está quieto: a minha gratidão não é de pétalas, a minha memória não é de mármore e a minha fé não é de cera. 

Enquanto dia especial do calendário, a especialidade do dia tem origem em celebrações pagãs aproveitadas pelo culto católico. Se a ligação aos santos não fosse leviana, a  bispalhada não teria prontamente oferecido ao governo "passosportas", em 2012, a sua extinção como feriado. Não fossem, posteriormente, os comunistas a exigir aos socialistas a reposição dos feriados extintos e ainda hoje estaríamos a trabalhar um dia à borla em nome não sei de que santos. 
...
Focado nestes três tempos, vivente destas três idades, eis-me hoje em casa, sem crianças a bater-me à porta, sem amigos ou adega para virar uns copos e descascar uns tremoços, mas gozando um feriado de raízes ancestrais, dos celtas ou dos romanos, das bruxas ou dos padres, dos vivos ou dos mortos, mas de direito. Porque, se eu fosse trabalhar, trabalharia mais um dia do que no ano anterior e, assim sendo, a entidade patronal teria usufruído de mais um dia de trabalho meu do que no ano anterior, sem me pagar mais nada.

Viva o 1º de novembro! O feriado que é de todos os santos e, como santos não vemos, não é de ninguém.

sexta-feira, 25 de outubro de 2024

Por ocasião da morte dum cidadão

(sem imagem)
Nos últimos dias a comunicação social popular tem encontrado assunto de entretém nos acontecimentos que tiveram origem na morte dum cidadão por um tiro disparado por um polícia. 
Não é com elementos fornecidos por essa comunicação social que vou opinar sobre as circunstâncias em que essa morte aconteceu e, muito menos, fazer julgamento popular de quem foi  morto ou de quem matou.
Mas há coisas novas que não costumavam acontecer em casos destes, o líder dum partido com cinquenta deputados disse:
- Nós devíamos agradecer a este polícia o trabalho que fez. Nós devíamos condecorá-lo... 
O líder do grupo parlamentar desse partido disse:
- Se calhar, se os polícias disparassem mais a matar, o país estava mais na ordem.

Um assessor dum deles, de ambos ou de quem lhes lava os tomates, escreveu:
- Menos um criminoso... menos um eleitor do Bloco.

É por causa destas e por outras que, hoje mesmo, recusei participar numa almoçarada. Sabia que iria lá estar um "chega assumido" e disse para quem me convidou:
- Não vou porque não me sento à mesa com gente dessa!
- Pois, mas como deves perceber, eu não  vou deixar de convidar ninguém por questões políticas!

Claro que aceitei como legítimo o argumento e nem me dei ao exercício de explicar que não eram questões políticas mas civilizacionais. Mas fiquei a pensar em todos aqueles que são do Chega ou,  pelo menos, cúmplices das suas alarvidades e barbaridades, sem terem consciência de que o são. Podem até nem votar neles mas lá no fundo, pensam como eles ou pelo menos toleram-nos e convidam-nos para almoçar.
Um cidadão matou, ao serviço do Estado, outro cidadão. Cuidado! Isso deve ser muito bem esclarecido! O resto é palha para "ventrulhas".


domingo, 20 de outubro de 2024

Comprem! Comprem! Leiam! Leiam!

Volto a publicar. Depois d "o bácoro que me persegue", "o homem que me persegue". 


Comprar um livro é fácil: 
reidosleittoes@gmail.com; 
o endereço do destinatário; 
12 euros incluindo os portes de correio;
pagamento no fim de recebida a encomenda na forma de "logo se vê", que é como quem diz, a combinar. 
encomendas às ninhadas tem desconto do iva.  
isto é o que se chama matar um bácoro e dois coelhos com uma cajadada - sim, porque entenderei a vossa correspondência como uma prenda.

Picado por próximos decidi um dia publicar sob o título “O bácoro que me persegue!". Teve tudo a ver com o blogue Rei dos Leittões, com o “material” que aqui tenho acumulado ao longo de anos e que estava à mão para se fazer uma publicação com acrescento de pouco trabalho.

Papel é papel, livro é livro e, se memória futura se deseja, tenho medo que um dia os discos magnéticos, a nuvem ou toda a internet, sejam atacados por uma doença informática e, dum momento para outro, horas de devaneios de escrita se evaporem no caos da atmosfera da sociedade da informação.

Sabia de antemão que não seria de esperar que quem já me conhece as crónicas se interessasse por aí além, que santos da casa, gordos de curiosidade, passassem pelos buracos das fechaduras, que leitores do José Rodrigues dos Santos ou do Nicholas Sparks, gente de redes sociais, se dessem ao trabalho de adquirir um livro de bacoradas.

Sabia também que de autores menores, as editoras não procuram os ganhos com as vendas, que serão sempre escassas em linha com a discrição da divulgação, mas usurpam o necessário lucro do bolso do próprio autor.

Sabia ainda que o que escrevo, que procuro sempre num verbo que cative quem pouco lê (quem muito lê tem mais que ler), não é nada que mereça ser de banca; que o linguarejar popular e a impudência, passados a escrita, podem desagradar a culturas mais sensíveis; que o amadorismo aprisiona a ficção ao autobiográfico e que a autobiografia só se tolera depois da fama.

Por fim, teimoso no que é meu, avesso à exposição pública, temeroso à microfonia, teimei que o livro só circularia em comércio clandestino ou na candonga.

E pronto, aqui estamos em prolongamento dessas linhas com mais umas bacoradas. Sempre me senti perseguido e, no mesmo alinhamento, depois dum “bácoro”, um “homem”, sendo que, não é para esconder: eu sou esse porco infante e esse homem sombra. Mordo-me sempre, não sei sair de mim e não sinto a mosca que pousou no nariz do camarada que está, em sentido, ao meu lado na parada.

Do bácoro-livro deixo três histórias que com ele se fizeram acontecer:
1- Da primeira vez a senhora dos correios nada estranhou, lá para a terceira ou quarta, começou a habituar-se mas, como as entregas se começassem a repetir e alguns vales de correio a levassem a perceber que se tratava de negócio, um dia, ao deparar-se com mais um despacho, largou-se com um comentário:
- Está a vender bem ao que parece!
- Desculpe, não percebi!?
- O livro, só pode ser um livro que anda a vender!
- Ah! Mais ou menos! - disse eu sorrindo.
- Sabe, há pacotes que denunciam o conteúdo mas mesmo assim nos aguçam a curiosidade.
Abri a pasta e perguntei-lhe:
- Quer um? Ofereço-lho!
- Muito obrigada por me matar a curiosidade.
 
2- O meu amigo Lúcio Mouco vende velharias na feira e conhece-me por eu lhe perguntar o preço de quase tudo e não lhe comprar quase nada. Vende torneiras avariadas, lavatórios rotos, louça rachada, puxadores ferrugentos, santos partidos, vinis riscados, vende tudo, até livros velhos. Propus-lhe então, ao meu alfarrabista, a venda pública e exclusiva dum exemplar. Ele aprontou-se. É simples, rasga-se a página que tem o ano, amarrota-se um pouco, massaja-se em farinha para lhe dar pó e, como tudo, pode dar venda. E vendeu o primeiro, o segundo, julgo que ainda por lá anda entre outros no caixote da especialidade.
 
3- Não esperava que quem já me conhecesse do que escrevo me fizesse apreciações elogiosas à obra de autor de livro único ou que desconhecidos me mandassem mensagens para expressar particular agrado pelo que leram. Não tive observações especiais ao seu conteúdo mas tive ao objeto, à capa e até ao tipo de papel. Também houve um que se descaiu com descarada sinceridade: "hoje em dia qualquer um já escreve um livro!".
Arreliado com estas reações? Não! Acho normais como conhecedor maior do meu papel, do meu lugar e dimensão! ...
 
Mas o comentário mais excêntrico foi dum amigo, que ao ver-se em mãos com o objeto fez a sua primeira crítica de satisfação:
- É grosso!...

quarta-feira, 16 de outubro de 2024

As filhas do resineiro


Entre o nascer do dia e o nascer do sol era vê-los, nos caminhos das raias dos pinhais, a penetrarem neles pelas encostas e trilhos conhecidos, até chegarem ao sítio onde, no fim de tarde anterior, tinham acabado, as três filhas, o pai e o Adriano. 

Nos tempos de outras tarefas da faina bastavam os dois homens para dar conta do recado mas, nesta fase mais intensa da campanha, em que o calor ajudava à sangria da resina, exigia-se o trabalho das mulheres para fazer a colha  e levar, à cabeça, as latas ao barril.

Distanciados uns dos outros conforme impunha a lida, para darem sinais da sua presença, para temperar o labor com alegria, elas cantavam e o Adriano assobiava, cada um do sítio do púcaro que tratava, ao passo que José Liberal, de poucas falas, limitava-se a aparecer no momento certo para gerir ou para dizer que “aquele ali já não é nosso” ou “é ali a estrema”.

Bem que o caráter do empregado o contentava, trabalhador, moço educado, comprovadamente poupado no dinheiro que lhe pagava, um genro a calhar para tomar conta duma delas e lhe dar descendência, tomar conta da exploração, matando ao mesmo tempo outros “coelhos” como o da reclamação de aumentos e o da ameaça de “pró ano já não venho”. Podia pagar-lhe mais, sabia, mas vistas as coisas de outro lado, quanto mais o futuro sogro amealhasse, mais o possível herdeiro se entusiasmaria para um acasalamento. Podia ser com a mais velha, mais calada, com a do meio, mais expedita, ou com a mais nova, mais espevitada.

Era um regalo vê-las cantar e o rapaz a assobiar mas, quando o José tentava uma abordagem camuflada sobre o assunto, Adriano parecia assobiar para o lado, revelando pouco interesse por quaisquer das três.

Até que num fim de temporada: “ti Zé qualquer dia chamam-me prá tropa!”, “ti Zé a gente nesta terra não se safa!”, “aumento-te rapaz, quanto queres mais?”, “se tu casasses, livravas-te da guerra!” e eis senão quando se percebe que Adriano se havia “despedido à francesa” conforme impunham os cuidados de quem passava a fronteira a salto.

Passados três meses teria de começar nova campanha e, em cima de lhe faltar um braço direito, vem-lhe a mais nova a dizer-se pejada, passadas mais três semanas vem-lhe a mais velha com a barriga inchada.

- Agora é que ele me tramou! Foi-se embora e…  Gaita! Já agora podia ter feito o mesmo às três! E também à mãe, eu já não digo nada!..

A mulher era apagada e não mudou de tom quando soube das filhas naquele estado e apagou-se de vez passados poucos anos. Curiosamente, José Liberal conformou-se heroicamente com o que lhe caiu à porta e lhe tocou a cara: isto da juventude andar nos matos tem destas coisas; sabia lá se as três se tinham enrolado a “desencarrrascar o pinheiro” ao desgraçado; sabia-se lá se ele partira sabendo o resultado; se tivesse sido só com uma faria cíumes nas outras duas, se tivesse vingado nas três, também era demais; as três que amanhassem a vida porque, com esta história de enganos, dificilmente lhe viriam homens; o rapaz que não regressasse porque em casa de cristã,o pecado por acaso, pode acontecer mas uma prole deve nascer dum só homem e duma só mulher.

José Liberal criou os dois netos como pai até chegar a vez deles irem também - para França não que por lá ainda deve andar o indesejado!
José Liberal foi pouco depois mas foi pró outro lado.

No almoço de angariação de fundos para o Rancho Folclórico do Pinhal Velho, lá estavam as três irmãs, já pensionistas, alegres como sempre e distintas como a vida as fez, reconhecidas e acarinhadas por todos os confraternizantes já esquecidos do escândalo, os dois filhos já com filhos e de férias, sinais de vida, da vida, do povo, dos tempos ou então apenas a lição que José Liberal deixou às suas gentes de como se encaram e ultrapassam certos problemas.