- Amanhã de manhã arrumamos as malas, pagamos as contas e partimos!
- Podemos, na volta, passar por Fátima e acender duas velas, uma para
pedir, outra para agradecer.
Jacinto não era homem de gastar latim a tentar provar que Deus não existia
mas Francisca também não era mulher que precisasse de grandes provas para acreditar na Sua existência, bastava-lhe entrar no Santuário para O sentir. Até
há pouco tempo, quando se ajoelhava na Capelinha, pedia dinheiro e agradecia a
saúde, agora pedia saúde e agradecia o dinheiro. E pedia também um pequeno
suplemento: que a Aparecida a ajudasse a
manter de pé a mentira do pai reaparecido.
Jacinto nem sequer lá punha os pés porque, desde pequeno, aprendera a ser
alérgico ao cheiro da cera, ficava nas imediações a bebericar uma cerveja e a
descascar tremoços.
Registada esta prova de Fé da Francisca e a respeitável tolerância de
Jacinto com os assuntos da Fé, chegaremos a casa já lusco-fusco, sem
necessidade de inventar justificações para o Abílio ou ter de suportar o
interrogatório dum encontro casual com um vizinho qualquer, que esteja na pesca
da conversa à sua porta.
- Estão bem o Galhufo, as galinhas, as rolas e o resto. O Pisca-pisca
merece ir amanhã dar connosco uma volta de táxi, cuidou bem da quinta.
Aproveitaremos para saber da sua língua solta, o que têm dito de nós e, a coisa
pensada, podemos até convidá-lo para jantar aqui em casa, com a dose certa de tinto
e uma aguardente, poderemos até vir a saber mais das nossas vidas que nós
próprios sabemos. Se correr bem a coisa, podemos até oferecer-lhe em desbarato
toda a criação e o cão como brinde, para que possamos encetar uma longa ausência
e nos livremos da trabalheira diária que é dar de comer à mentira, de manhã à
noite, para evitar que a verdade venha ao de cima e nos afogue em desgraça.
Assim dito, assim feito, tal como o previsto, pagou-se a volta ao Pisca-pisca,
foi-se ao Agroal, comeu-se um pica-pau, beberam-se uns brancos à pressão, tiraram-se
os nabos da púcara e, no regresso, comprou-se um frango assado e umas garrafas
de sete e meio para o jantar. Falou-se do futuro próximo das suas vidas com a
segunda intenção do Pisca-pisca o espalhar na calhandrice.
Mas claro, não se podia chegar e dar meia
volta e abalar. Era preciso conversar com as pessoas, dizer meias verdades,
mentir, dar satisfações, agradar.
- O brasileiro nunca mais mandou dinheiro
mas, verdade seja dita, nós também não lhe pedimos. Não somos gente de abusar
da confiança.
- Temos estado no Parque de Campismo da
Vieira, aquilo é muito barato. Tenho feito por lá umas limpezas em hóteis, não
me faltam patrões, e o Jacinto tem feito uns biscates. Pode ser que, entretanto,
ele consiga uma pensão de invalidez, aquilo que ele tem no coração é pra toda a
vida e dizem os médicos que o que ele precisa é de ar de praia. Se
arranjássemos por lá uma renda barata, mudávamo-nos era para lá. Mas como
aquilo é zona de praia! A casita do parque de campismo é jeitosa mas não é para
todos os dias!...
E assim ia Francisca treinando, encontro após
encontro, o descalçar da bota e Jacinto aprendendo, de a ouvir, a repetir a
conversa a quem não a tivesse ouvido. Na verdade, a ideia de desaparecer, de
repente e de vez, sem dar cavaco, ainda que cautelosa, poderia levantar poeira,
já que os poria ainda mais nas bocas do povo, quiçá desse azo a uma
investigação policial ou, no extremo, chegasse aos jornais de manchetes
vermelhas.
As aldeias nunca perdoam a quem as abandona
sem explicações, ninguém fecha a porta duma morada onde viveu muita vida sem
olhar para trás, não se parte sem abraçar quem um dia teve um gesto de
consideração por nós. Merece, portanto, estes parágrafos, esta alteração de
lugar central dos acontecimentos, necessária à história, não estando ainda
pensado ou imaginado se, às páginas tantas, não teremos de voltar.
Bem, na preparação das despedidas, que se
foram fazendo, nunca se disse “até sempre”, até porque o espaço do
papa-reformas não dava para o volume da mudança e estava fora da equação fazer
o transporte dos haveres nas rodas de terceiros, todos sabemos bem porquê.
Para evitarem serem novamente expostos às
insinuosas apitadelas de outros automobilistas durante a viagem, com a pronta
colaboração do Pisca-pisca, motorista profissional, tinham aproveitado estes
dias, para dar umas lições de condução pelas ruas da aldeia à Francisca, nata
de maior destreza e atenção do que o nefelibata do marido.
Tinham aproveitado estes dias para
estabelecer contactos e encontros com o agente imobiliário, entregar documentos
e sinais, preparar a escritura.
–
Sabe, o meu pai fez-me uma transferência e quer que a casa fique em nosso
nome!
Até chegar ao ponto em que lhes foi entregue
as chaves da casa, já com tudo tratado, água, luz e jardim arranjado.
Reunidas portanto as condições para a
carripana partir, atulhada até ao tejadilho, mulher ao volante, pendura a
esfumaçar, pipi aqui, pópó ali, cá vamos nós e ala que se faz tarde!