Como
último favor, chamaram táxi para os ir buscar ao 194 da Avenida da Liberdade,
com discretas despedidas para não levantar suspeitas.
Jacinto limpou os pés no tapete de entrada do prédio antes de descer para o passeio da avenida, sinal de que ainda não tinha os pés bem assentes no chão. Francisca e os “bem vestidos” sorriram compreensivamente.
Acontece
que por si, o número da porta já dá uma pista para o taxista que conhece a
Avenida como a palma da mão e, vai daí, ainda os assustou: - Foi muito?!...
Foi
muito o sarcasmo e muito o descaramento pelo que, depois do choque inicial, o
casal acabou por reagir dissimuladamente, fingindo não perceber, não dando troco,
dando um par de sorrisos com ar torto, não dando confiança ao pobretanas que
passava o dia acravado no inferno do trânsito da cidade grande.
Ainda por cima era burro, alguma vez, se fosse o caso de terem ganho um grande prémio, iam para Santa Apolónia apanhar um comboio para Vale dosOvos?!
Sentiram
alívio quando finalmente se viram sentados na carruagem. Agora a sensação era
completamente diferente da viagem para Lisboa. Não havia tanta ansiedade nem
incerteza, mas sim um peso invisível sobre os seus ombros. Sabiam que estavam
prestes a enfrentar o maior desafio das suas vidas: esconder a fortuna de uma
aldeia inteira habituada a saber da vida de todos.
— Vamos manter tudo igual, ouviste? Nada de
gastos exagerados, nada de mudanças bruscas. Se começamos a comprar coisas
caras, toda a gente vai desconfiar.
Jacinto assentiu.
— E se alguém nos perguntar por onde andámos
estes dias?
— Dizemos que estiveste internado! Não saiste
de casa de ambulância? Quando chegarmos vamos logo diretos ao café para parecer
tudo normal e evitar falatórios.
Entraram no seu café de todos os dias como se
nada tivesse mudado, como se continuassem a ser os mesmos de sempre. Um grupo
de fregueses jogava às cartas mas mostraram as orelhas quando o Abílio disse do
lado de trás do balcão:
— Então? Ouvi dizer que estiveste no hospital!
Pela tua cara já estás pronto para voltar ao trabalho!
A mulher sorriu com naturalidade.
— Oh, foi um susto mas julgamos que já
passou. Coisas do coração! Trabalhar é que por enquanto… está quieto! Por agora
vai ficar de baixa.
Jacinto não disse nada. Sempre fora pior a
mentir do que a Francisca e agora sentia que qualquer palavra a mais podia
estragar tudo.
Tomaram o caminho de casa a pé, sentindo os
olhares curiosos de vizinhos, a mulher dando conversa a este e àquele acerca da
convalescença e da doença do marido, e este sempre calado com o ar empedernido
de quem acabou de sair dum internamento.
Agora que a incrível história deste casal que ganhou o euromilhões já vai em andamento, convém tomar conhecimento das origens destas personagens, aqui caídas somente por terem ficado ricas sem ser à custa de outros, sem corpo, sem feições e sem passado. As mãos do narrador não estão, por agora, viradas para dar formas físicas ao homem e à mulher mas exige-se que, ao fim de duas mãos de dias deste enredo, de Francisca e Jacinto se saiba alguma coisinha da sua história “antes-prémio”, já que do futuro haverá ainda muito a contar ou não estivéssemos aqui senão para outra coisa.
Saiba-se então que Francisca ficou orfã de mãe
pelo seu parto e o pai, safado, safou-se da criar e desapareceu, segundo lhe
vieram a contar já crescidita, fugiu para o Brasil ou para lá perto.
Foi criada numa instituição para meninas em Tomar,
onde, chegada à adolescência, se tornou indomável, transgredindo regulamentos,
desaparecendo à noite, estabelecendo contactos com pessoas pouco recomendáveis,
uma dor de cabeça para os responsáveis pela casa.
Foi nessas aventuras que conheceu Jacinto, já
ambos nas raias da maioridade.
Jacinto viera há poucos meses para a zona,
trazido para trabalho duro por um empreiteiro de obras viárias, fugindo a um lar
disfuncional, o pai alcóolico que desde pequeno o carregava de porrada, um
irmão deficiente mental e a mãe, desistente do direito a momentos de alegria,
acabrunhada, rendida ao destino, sem amor para dar, apenas presença.
Foi neste contexto que ambos se identificaram e se uniram, juntaram-se e ocuparam a casa velha da avó materna de Francisca, nas imediações de Vale dos Ovos, sua única herança, conjuntamente com dois palmos de terra e uns currais velhos ao redor. O pai, quem sabe ainda vivo em S.Paulo ou em Manaus, nada deixara, tudo indicando que, tal como Jacinto, caíra por ali como forasteiro, trazido para obras de melhoramento na linha férrea.
Ainda não tinham vinte anos quando lhes nasceu a filha que, com os genes dum ou de outro, por sina, acaso ou má criação, desapareceu prematuramente do convívio familiar, já o contámos. Antes que nos esqueçamos, deixemos, ainda o seu primeiro nome, Lúcia, pois, só podia ser, se atendermos ao nome dos progenitores.