domingo, 8 de junho de 2025

20- A vida incrível dum casal a quem saiu o euromilhões


 

- Amanhã de manhã arrumamos as malas, pagamos as contas e partimos!

- Podemos, na volta, passar por Fátima e acender duas velas, uma para pedir, outra para agradecer.    


Jacinto não era homem de gastar latim a tentar provar que Deus não existia mas Francisca também não era mulher que precisasse de grandes provas para acreditar na Sua existência, bastava-lhe entrar no Santuário para O sentir. Até há pouco tempo, quando se ajoelhava na Capelinha, pedia dinheiro e agradecia a saúde, agora pedia saúde e agradecia o dinheiro. E pedia também um pequeno suplemento: que a  Aparecida a ajudasse a manter de pé a mentira do pai reaparecido.

Jacinto nem sequer lá punha os pés porque, desde pequeno, aprendera a ser alérgico ao cheiro da cera, ficava nas imediações a bebericar uma cerveja e a descascar tremoços.


Registada esta prova de Fé da Francisca e a respeitável tolerância de Jacinto com os assuntos da Fé, chegaremos a casa já lusco-fusco, sem necessidade de inventar justificações para o Abílio ou ter de suportar o interrogatório dum encontro casual com um vizinho qualquer, que esteja na pesca da conversa à sua porta.

 

- Estão bem o Galhufo, as galinhas, as rolas e o resto. O Pisca-pisca merece ir amanhã dar connosco uma volta de táxi, cuidou bem da quinta. Aproveitaremos para saber da sua língua solta, o que têm dito de nós e, a coisa pensada, podemos até convidá-lo para jantar aqui em casa, com a dose certa de tinto e uma aguardente, poderemos até vir a saber mais das nossas vidas que nós próprios sabemos. Se correr bem a coisa, podemos até oferecer-lhe em desbarato toda a criação e o cão como brinde, para que possamos encetar uma longa ausência e nos livremos da trabalheira diária que é dar de comer à mentira, de manhã à noite, para evitar que a verdade venha ao de cima e nos afogue em desgraça.

 

Assim dito, assim feito, tal como o previsto, pagou-se a volta ao Pisca-pisca, foi-se ao Agroal, comeu-se um pica-pau, beberam-se uns brancos à pressão, tiraram-se os nabos da púcara e, no regresso, comprou-se um frango assado e umas garrafas de sete e meio para o jantar. Falou-se do futuro próximo das suas vidas com a segunda intenção do Pisca-pisca o espalhar na calhandrice.

Mas claro, não se podia chegar e dar meia volta e abalar. Era preciso conversar com as pessoas, dizer meias verdades, mentir, dar satisfações, agradar.

- O brasileiro nunca mais mandou dinheiro mas, verdade seja dita, nós também não lhe pedimos. Não somos gente de abusar da confiança.

- Temos estado no Parque de Campismo da Vieira, aquilo é muito barato. Tenho feito por lá umas limpezas em hóteis, não me faltam patrões, e o Jacinto tem feito uns biscates. Pode ser que, entretanto, ele consiga uma pensão de invalidez, aquilo que ele tem no coração é pra toda a vida e dizem os médicos que o que ele precisa é de ar de praia. Se arranjássemos por lá uma renda barata, mudávamo-nos era para lá. Mas como aquilo é zona de praia! A casita do parque de campismo é jeitosa mas não é para todos os dias!...

E assim ia Francisca treinando, encontro após encontro, o descalçar da bota e Jacinto aprendendo, de a ouvir, a repetir a conversa a quem não a tivesse ouvido. Na verdade, a ideia de desaparecer, de repente e de vez, sem dar cavaco, ainda que cautelosa, poderia levantar poeira, já que os poria ainda mais nas bocas do povo, quiçá desse azo a uma investigação policial ou, no extremo, chegasse aos jornais de manchetes vermelhas.

As aldeias nunca perdoam a quem as abandona sem explicações, ninguém fecha a porta duma morada onde viveu muita vida sem olhar para trás, não se parte sem abraçar quem um dia teve um gesto de consideração por nós. Merece, portanto, estes parágrafos, esta alteração de lugar central dos acontecimentos, necessária à história, não estando ainda pensado ou imaginado se, às páginas tantas, não teremos de voltar.

Bem, na preparação das despedidas, que se foram fazendo, nunca se disse “até sempre”, até porque o espaço do papa-reformas não dava para o volume da mudança e estava fora da equação fazer o transporte dos haveres nas rodas de terceiros, todos sabemos bem porquê.

Para evitarem serem novamente expostos às insinuosas apitadelas de outros automobilistas durante a viagem, com a pronta colaboração do Pisca-pisca, motorista profissional, tinham aproveitado estes dias, para dar umas lições de condução pelas ruas da aldeia à Francisca, nata de maior destreza e atenção do que o nefelibata do marido.

Tinham aproveitado estes dias para estabelecer contactos e encontros com o agente imobiliário, entregar documentos e sinais, preparar a escritura.

 – Sabe, o meu pai fez-me uma transferência e quer que a casa fique em nosso nome! 

Até chegar ao ponto em que lhes foi entregue as chaves da casa, já com tudo tratado, água, luz e jardim arranjado.

Reunidas portanto as condições para a carripana partir, atulhada até ao tejadilho, mulher ao volante, pendura a esfumaçar, pipi aqui, pópó ali, cá vamos nós e ala que se faz tarde!

domingo, 1 de junho de 2025

19- A incrível vida dum casal a quem saiu o euromilhões

 - Os senhores vão ali ao Parque de Campismo que eles têm lá bungalows para arrendar.

- Bungaquê?

- São umas casinhas muito jeitosas. Tenho a certeza que os senhores vão gostar!


Mas a quem interessarão as pacatas férias, numa praia pacata, do pacato casal milionário? Então não é verdade que andamos por estas linhas de escrita pela mesma razão de que o casalinho está de férias?

Sim, andamos aqui, personagens, autor e leitores por causa do mesmo prémio do euromilhões! Mas, mais do que os pequenos episódios que marcam as alterações ao seu quotidiano, interessa-nos debruçarmo-nos sobre a experiência social e emocional, para que um dia, se semelhante sorte nos vier a acontecer, possamos estar melhor preparados para o embate.

Aliás, já estamos a advinhar que a estadia agora iniciada, numa aldeia balnear de mar bravo, rude urbanismo e mal cuidado campismo para servir o lazer, não acalmará a inquietação que habita este dois pobres corações. Pelo contrário, intensificar-se-ão e aprofundar-se-ão as perguntas que sucessivamente vêm fazendo a si próprios sobre o sentido do seu quotidiano, das suas vivências e das suas vidas.

Não vamos falar destas questões nos termos das explicações primárias, dos pensamentos toscos e no verbo fácil dos dois aldeões. Digamo-lo assim:

Na verdade, Francisca e Jacinto sentiam cada vez mais o peso da pobreza, tão pobres, tão pobres, tão pobres que só tinham dinheiro. Não só não conseguiam tomar o gosto à vida faustosa que podiam levar, como não apreciavam a vida lazeirenta dos últimos tempos. Para além disso, a sua vida social era tocada com pinças e mantida por arames, extremamente frágil, de laços inseguros e de motivações casuais. Não havia um vizinho ou uma amizade com quem partilhar uma confidência ou um jantar e, pior do que tudo, não havia família.

 

O pai de Francisca, tão provável estar morto como vivo, apenas dera sinais de si numa fantasia que sabe-se lá por quanto tempo os protegeria. A Lúcia distanciara-se do lar que a criou, quem sabe se por caprichos de menina maior, por mau génio ou sangue ou apenas porque, filha de pais de lágrimas sólidas criados sem calor, nunca sentiu o encosto dum rosto maternal ou a mão amiga dum pai.

E uma netinha! Uma menina a quem ainda nunca ouviram dizer avô, avó!

Por seu lado, Jacinto, acobardara-se na determinação de não voltar mais à terra ou voltar a ver o irmão e a mãe. Já nem falamos do pai que, se ainda não estiver morto por cirrose, que morra antes que o filho o volte a ver, não vão as recordações das sovas que este levou, levantar-lhe a ira e ser o próprio filho a tirar-lhe a vida e vai daí, não haverá milhões que o tirem dum futuro na prisão.

 

Esta partilha de pensamentos e outros questionamentos existenciais foram preenchendo os dias cinzentos da casinha do parque de campismo, apenas quebrados por passeios obrigatórios e desagradáveis pela marginal, por uns comes e bebes numa pastelaria ou num café de petiscos, ou por lautas refeições num restaurante daqueles que são só para alguns.

 

Foi também altura de fazerem um balanço. Decorridos três meses da sua ida à Santa Casa, tinham aritmética para estimarem que já tinham derretido cerca de cinquenta mil euros, mas não a suficente para subtrair milhares de milhões. Numa coisa estavam de acordo, ainda tinham muito, pelo que estava na altura de abrirem os cordões à bolsa, tirar a família - entenda-se a filha Lúcia e a mãe e o irmão de Jacinto - da pobreza extrema e porque não, procurar uma casa por ali, perto do mar e longe das invejas e mentes curiosas de Vale dos Ovos.

 

Para dar cumprimento à primeira decisão ainda falta história mas para a segunda não é tarde nem é cedo:

Apitem à vontade pobrezinhos de carrinhas de trabalho e riquitos de 4x4, o papa-reformas do casal que tem, ainda não sabemos quantos, milhões vai dar uma volta pela Estrada Atlântica. E zás, uns quilómetros feitos, S.Pedro de Moel para trás, mais à frente um pouco, uma urbanização cogumelo em pleno Pinhal do Rei e junto ao mar, Pedra de Ouro, um restaurante, um bom almoço, uma placa de vende-se moradia, um número de telefone, espera duma hora por um vendedor:


- O senhor não se assuste por não termos carro nem aspeto para tanto dinheiro! Sabe, é o meu pai que estava desaparecido há tantos anos no Brasil e que apareceu agora e, segundo parece, com dinheiro. Tanto assim é que me pediu que lhe arranjasse casa na praia, que quer cá vir passar umas férias. Por força que me quer conhecer mas não quer voltar à terra que o viu nascer, não tem saudades e não quer recordar a miséria que por cá viveu e nos deixou!

 

Jacinto ficou de tal maneira embascado com a desenvoltura do discurso da mulher que optou por quase não abrir a boca.

Uma compra, quando não falta dinheiro e se promete um pagamento pronto, faz-se depressa.

Antes, contudo, de fechar o negócio e abrir as portas da casa nova, interrompamos o assunto antes que nos esqueçamos que temos de dar um salto a Vale dos Ovos, não vá o Pisca-pisca no entusiasmo duma bebedeira, combinar uma patuscada com a malta e dar o golpe em todos os pescoços da capoeira e, se no final estiver completamente perdido, como é seu hábito quando a mesa é bem regada, ainda soltar o cão na linha para depois gracejar de mau gosto que este se suicidou debaixo do comboio.

domingo, 25 de maio de 2025

18- A história dum casal que ganhou o euromilhões

 


Francisca não se esqueceu das dificuldades da Lúcia relatadas pelo Paleco no café, há dias atrás, mas estava refém da distância e do distanciamento que as separava. Não tinha o número de telefone nem a morada da malvada, não encontrava ninguém que lhe servisse de correio, pelo que não via outro remédio se não esperar pelo habitual telefonema do Natal. Também não lhe ofereceria muito, não só para não a estragar, mas também porque ela não lhe merecia a confiança do segredo. Pelo sim pelo não, iriam tratar dum testamento, porque também não era filha de se deserdar.

 

Relativamente ao destino da outra parte do “dinheiro transferido do Brasil", na circunstância de nenhum dos conjugues se autoconsiderar com qualidades ou competências suficientes para tirar a carta de condução automóvel, e sendo ambos portadores de licença de condução  de ciclomotores, foi o próprio vendedor de quadriciclo motorizado de baixa potência que lhes deu umas lições de condução até os achar prontos para os soltar na estrada.

 

Incomodados pela crescente pressão popular que pedinchava empréstimos e oferendas, que especulava sobre deves e haveres e comentava gastos e comportamentos, o casal começou a pensar em dar de frosques. Parecia impossível como não tinham pensado nisso antes. Afinal de contas que laços fortes os prendiam àquela terra? Que família? Que amigos? Que vivências? Que satisfações deviam a quem?

Por outro lado, que sentido tem ir para uma terra onde não se conhece ninguém e onde ninguém nos conhece?

- Vamos encontrar um meio-termo: vamos desaparecer durante uns tempos, amanhã mesmo vamos dar uma passeio até à Praia, se já fomos lá de motorizada, havemos de conseguir chegar lá no Bolinhas. Não temos GPS mas temos AJP!

- O quê?

- AJP – abrimos a janela e perguntamos! Daqui para o mar é só seguir o sol!

- E o que vamos nós fazer para a praia com este tempo?

- Sabes como fazem as girafas quando se sentem ameaçadas?... Fogem! É o que temos de fazer! Num hotel, numa casa arrendada ou numa tenda, havemos de arranjar cama para passar uns tempos! Não te esqueças que dinheiro não nos falta!

- E que fazemos aos animais? O que dizemos aos vizinhos?

- Matamo-los todos e arca congeladora com eles!

- O cão também?

- O Galhufo vai connosco, não ouviste dizer que também há hóteis para cães?

- Ó rapaz, mas se agirmos assim é que a malta não se vai calar e vai desconfiar! Tu às vezes falas como se fosses um puto!

- Eu sou um puto, e tu?

- Olha! Olha que eu ponho-te um mês entregue às tuas mãos!

 Jacinto acalmou e acabou a ceder.

- Falamos com o Pisca-pisca que ele trata-nos dos animais. Vamos por quinze dias para apalpar terreno e depois logo se vê. Para já matamos alguma criação que podemos levar, oferecer ou congelar.

Há automobilistas deste país que, não tendo um palmo de terra onde plantar uma couve, acham que ter a carta de condução é um título que lhes dá um direito de propriedade sobre as estradas. Como tal, sacam da sua ladainha de palavrões, sempre que são surpreendidos pela velocidade lenta duma carroça em tração animal ou tem que dar um toque de freio perante a trajetória insegura dum papa-reformas. Esquecem-se que, quando eles nasceram, já existiam outros cavalos, burros e bois como animais de trânsito e que aqueles que não têm carta de condução também precisam de circular e ir à praia.

Vem isto a propósito do estado de nervos e humilhação com que Jacinto e Francisca, um dos casais mais ricos deste país, chegou à Praia da Vieira, tantas foram as apitadelas, tantos os insultos, por gestos e palavras, de que foram alvo, ao longo do longo itinerário que os trouxe à costa azul.

Como se não bastasse, viram-lhe ser recusada a admissão no único hotel da localidade, a pretexto de lotação esgotada, quando ficara bem visto que fora o dono que não gostara do modelo do carro que estacionaram à porta, do aspeto da bagagem e do aspeto dos hóspedes.

- Os senhores vão ali ao Parque de Campismo que eles têm lá bungalows para arrendar.

- Bungaquê?

- São umas casinhas muito jeitosas. Tenho a certeza que os senhores vão gostar!

Com a humildade que lhes era nata, lá foram, acabando conformados com a recomendação, pois sim, era verdade, eram umas casinhas jeitosas. Era até muito provável que por ali se sentissem melhor do que no hotel. Além disso, não faltavam por perto casas de pasto e afins onde comer à grande e à francesa.

domingo, 18 de maio de 2025

17- A história real dum casal a quem saiu o euromilhões

 


— Então, gostaste de conhecer o teu pai? — perguntou Abílio, ansioso por ouvir novidades.

O casal trocou um olhar cúmplice antes de Francisca responder com um suspiro bem treinado:

— Foi… uma experiência inacreditável.

Jacinto ajudou:

— O pai dela… está mesmo arrependido.

 

Iniciado o diálogo, os mais dois ou três fregueses presentes, pediram licença e aproximaram-se da mesa.

- Peçam para vocês o que quiserem que eu pago uma!

Ofereceu Jacinto com uma generosidade limitada a uma rodada, como quem diz, vejam, estamos de carteira cheia mas nada que nos permita esticar por aí além, do género, “hoje é tudo por nossa conta!”

 

O grupo presente olhava o casal, enquanto este mastigava, com expressões de augamento como se estivessem em estado de prontidão para comer as palavras que da sua boca saíssem.

Jacinto e Francisca já tinham descoberto que, para evitar riscos, não seria aconselhável produzir discurso de enfiada e tinham optado pelo método de ir cedendo corda à medida das questões que lhe fossem colocadas.

 

— E agora? O que vai acontecer?

Jacinto encostou-se à cadeira, assumindo um ar modesto, mas carregado de significado.

— O pai dela não quer que nos falte nada. Fez-nos um depósito generoso e disse que quando precisássemos de mais algum, que estivéssemos à vontade para o contactar.

- Milhões?

- Também não exageremos, digamos que um montante que nos dará para fazer uns melhoramentos na casa, que está praticamente como a minha avó ma deixou!

- E para aguentarmos mais uns meses sem trabalhar para ver se recupero de vez da doença.

 

Entre murmúrios impressionados alguém disse:

— Olha que sorte!

— Depois de tanto sofrimento, ao menos agora…

- Vocês merecem!

- O que é preciso é saúde e dinheiro para os copos!

- A vida é vossa, vocês é que sabem! Nós não temos nada a ver com isso!

 

No cozinhar da descrição do falso reencontro familiar, os sorrisos do casal eram um autêntico têmpero do embuste. O plano estava a funcionar e, se a mentira fosse servida em fogo brando, a verdade nunca viria ao de cima.

 

As despesas aumentaram mas continuaram a ser contidas: alguns luxos discretos, roupas novas, alguns móveis, umas obras na casa e no quintal, nada que desse demasiado nas vistas.

Na aldeia, o rumor da fortuna do “pai brasileiro” espalhou-se como fogo em mato seco. De repente, aquela mulher simples, órfã de mãe e abandonada pelo pai, tornara-se alguém com um destino invejável. O marido era agora visto com respeito e admiração.

 

Muitos insistiam em ouvir mais detalhes da história.

— E ele contou-te porque desapareceu tantos anos? — perguntava um dos vizinhos.

— Disse que, quando perdeu a minha mãe, ficou desesperado. Que não sabia como me criar sozinho e que, num momento de fraqueza, fugiu. Mas que nunca me esqueceu.

As cabeças balançavam, compreensivas.

— Coitado, deve carregar uma culpa danada.

Jacinto completava as falas com toques de dramatismo.

— Ele até chorou quando abraçou a filha em Santa Apolónia. Disse que tinha tido medo de morrer sem lhe pedir perdão.

As expressões dos ouvintes tornavam-se sombrias e emocionadas. A história parecia blindada e perfeita.

Aos poucos, começaram a surgir os primeiros desafios.

A nova condição financeira do casal não passou despercebida. E, como sempre acontece com os que parecem ter dinheiro, começaram a surgir os pedidos.

— Já que agora tens essa ajuda do Brasil… bem que podias emprestar-me algum para um conserto no telhado… — sugeriu um conhecido, meio a brincar.

Outro veio pedir apoio para comprar um novo trator. Uma prima afastada mencionou dificuldades e deixou escapar que um empréstimo temporário seria uma bênção.

O casal percebeu que, quanto mais falassem sobre o dinheiro, mais atenção atrairiam.

 

— Temos de dizer que o meu pai manda apenas o suficiente para nós. Nada de exageros. 

 

E assim fizeram. A partir de então, quando alguém perguntava, suspiravam:

— O meu pai ajuda, sim, mas também tem as suas despesas. Se começo a pedir muito ainda fico sem nada! Do que ele nos deu, tirando algum que quero enviar para a minha filha, já sobra pouco para um papa-reformas usado que estamos a negociar.

domingo, 11 de maio de 2025

16- A história real dum casal que ganhou o euromilhões.

 


Ao terceiro dia, fartos da vida monótona e estéril do hotel, ligaram ao taxista.

- Quanto é que o senhor nos leva de nos levar duma ponta à outra do Algarve?

Com multas de estacionamento, tabaco e almoço à nossa conta!

 

Não por bom-tom mas por entretenimento, regatearam o preço e lá partiram os três contentes.

- É a 125, um perigo de estrada mas não há forma de percorrer o Algarve que evite andar a entrar e a sair dela! Se os senhores concordarem, julgo que o melhor é fazermos assim: …

… e assim fizeram, de terra em terra, praias, cais, hotéis, marginais, pontes, rios,  ria, um cafézinho aqui, uma imperial ali, conta-se que aqui aconteceu, é ali, com certeza que já ouviram falar, almoçar onde se coma bem e seja bom o vinho, isto é Sotavento, do lado de lá já é Espanha, outro dia podemos ir lá, amanhã é Barlavento, e tal… Sagres!...

- Sempre! Se houver dessa não quero outra! – disse Jacinto.

- Para hoje já chega! E depois pensamos nós que não fazemos nada! Gaita! Estou cansada!

Disse Francisca enquanto se despediam do taxista à porta do hotel.

- Até amanhã.

E, na manhã seguinte, à hora marcada, lá estava à porta o homem do táxi – Barlavento, Albufeira, Portimão, Lagos, Sagres.

- Sempre! Se houver dessa não quero outra! – disse Jacinto.

E, no dia seguinte – Sotavento, Ayamonte, Portugal.

- Sempre! Nunca gostei de espanhóis! – disse Francisca.

- Quantos conheceste na tua vida? – perguntou Jacinto.

- Nenhum! – respondeu Francisca.

- Hum! – comentou Jacinto.

 

Mais um dia e vão sete, uma semana, chega de hotel e de turistas, de Algarve e de sol, de esbanjamento e mordomias, “a gente não nasceu para isto!”, “quem gosta disto que lhes faça bom proveito!”, mas na volta até estavam a começar a dar-lhe o jeito:

Francisca mandou arranjar o cabelo e as unhas, comprou algumas roupas para logo se arrepender: não poderia regressar à terra tão cuidada e bem vestida! Por outro lado pensou na sua infância e adolescência condicionada pelos regulamentos e a austeridade da Casa da Criança. Pensou também no passo mal dado duma vida a dois, prematura, que lhe traçou o futuro e a condição de pobreza .

Jacinto, “goleando” um whisky, na varanda, recordava o seu lar de infância, a pobreza, a porrada do pai, o pai que apenas brincava com ele à sardinha, e daí o seu sonho de criança: ser campeão nacional do jogo da sardinha. Pensou no passo bem dado, a saída de casa para vir trabalhar para a linha e engatar a Francisca para partilhar com ela a pobreza e a vida traçada.

 

Quem advinharia, há um ano atrás, que eles próprios iriam trair o destino, num impulso de sorte de Francisca, que decidiu jogar no euromilhões à revelia do marido?

Um pequeno gesto que lhes proporcionava agora uma nova vida, entendendo-se como nova vida, não esta que acabavam de experenciar por terras do Algarve, que para tal vida se confirmava agora não terem nascido, mas para a vida de fazerem o que lhes apetece.

 

Fazerem o que lhes apetece, pode dizer-se, porque nos últimos desenvolvimentos começa a ser notório que a “mentira”, ou melhor, a “ocultação da verdade”, melhor ainda, a “ficção”, os está a divertir e a entusiasmar. E é melhor assim porque este é um domínio em que ambos, personagens autênticos desta prosa, o autor e porque não, os leitores, têm de se haver, o de andar para aqui às voltas, a arranjar maneira de ninguém descobrir que há duas pessoas que estão podres de ricas e ninguém pode saber. E metemos também os leitores ao barulho, porque isto de fazer fantasias sobre o que faríamos se nos calhasse a sorte grande, já todos fizeram, sendo que uma boa parte deste “todos”, fez pensamento de não contar a ninguém, se não aos amados dignos de tamanha confiança. Se esta realidade influenciará ou não o interesse por esta leitura, é difícil podermos averiguar.

 

Coloquemos, portanto, de novo a Francisca e o Jacinto no seu lugar, sentemo-los a discutir detalhes e a dar retoques na sua invertida fantasia para consumo de próximos, coisa que estão a aprender a tomar-lhe gosto. Tivessem eles escola ou leitura que lhes desse traquejo para escrever, escreveriam eles próprios essa parte, folgando-me a mim, que só Deus sabe a dificuldade que tenho em inventar, não fosse tudo isto baseado numa história verdadeira, onde a verdade só não é assumida por questões de segurança dos premiados, e há muito que eu teria despejado a saga no almofariz.

 

Não vamos agora expor o combinado para se dizer a propósito desta semana que, para todos os efeitos, foi vivida em Lisboa entre encontros, refeições, projetos e afetos entre genro, filha, pai e companhia, não esquecendo que o genro também vai ter alta e começar a poder beber umas bejecas com autorização do médico do hospital. Para não nos repetirmos ou expormos contradições, o combinado para se dizer, vai ser revelado aqui à medida que for contado, em tempo real, aos destinatários, e apenas quando se entender ser de cariz relevante para a necessária coerência duma história desta natureza, sob pena de ficarem a descoberto as alegadas incompetências do autor menor, por quem tantos aguardam uma oportunidade de apontar o nu.

 

Quando regressaram à aldeia, estavam prontos para desenrolar a novela pelos ouvintes. Vestidos de forma discreta, sem extravagâncias, carregando a mesma mala com que partiram, atravessaram o largo da estação e dirigiram-se ao café do Abílio. Não tinham almoçado, vinham esganados.

- Arranja aí duas sandes de fiambre com manteiga e duas médias!

- Tem calma, já te contamos, estamos com tanta fome que nem conseguimos falar!

domingo, 4 de maio de 2025

15- O caso incrível dum casal que ganhou o euromilhões

 

O hotel era um imponente edifício branco com vista para o mar. Sentiram-se transportados para outro mundo. O luxo era esmagador para um casal habituado à simplicidade dos espaços rurais.


Certo que já tinham pernoitado no Tivoli quando foram receber o prémio, mas nesses dias estavam anestesiados, não tinham sentidos para reparar no que viam, ouviam, cheiravam, saboreavam ou no que mexiam.


— Isto parece coisa dum filme! — exclamou Francisca de olhos arregalados.

Jacinto, menos expressivo, tentava manter a compostura. Mas, quando entraram no quarto e viram a cama enorme, o minibar recheado e a casa de banho com uma banheira cheia de torneiras, largaram uma gargalhada e atiraram-se para cima dos lençóis macios.

Os dias seguintes foram uma sucessão de deleites e trapalhadas. Era tudo muito lindo mas nada combinava com eles, nem o serviço requintado, nem a comida deslavada, nem o brilho das superfícies, nem o odor das pessoas finas. Funcionava tudo muito bem mas nada fora feito para eles, nem as torneiras automáticas, nem os talheres tortos, nem as toucas da piscina, nem os avisos em inglês.


A vida, fora dos aposentos, era um emaranhado de cruzamentos com hóspedes estrangeiros que os ignoravam, mulheres de Lisboa que de lado os olhavam, doutores de sucesso que a casta lhe exibiam, crianças ricaças de educação de colégio que não os distinguiam, reformados velhos que nem sequer os viam, funcionários fardados a quem só faltava dizer: os senhores estão no hotel errado. E claro, o senhor da portaria que, depois de tanto se perguntar “será que eles vão ter dinheiro para pagar?”, acabou por os destratar pedindo-lhe todos os dias o cartão de crédito.


Este embate cultural, social e político de Francisca e Jacinto, com as pessoas finas da classe dominante que se estão sempre a queixar que pagam muitos impostos, provocou-lhes efeitos idiossincráticos que despertaram a sua consciência de classe e alteraram o seu comportamento inicial. Tão ricos ou mais ricos do que todos aqueles pobres de espírito com quem se cruzavam pelos espaços do hotel, não tinham satisfações a dar a essa gente, pegariam no garfo como queriam, beberiam demais se lhes apetecesse, dançariam devagarinho com a música ambiente, ergueriam a voz quando fosse preciso, falariam com muito orgulho português e, se lhes saísse a palavra “merda” da boca, paciência, não gostam, ponham na borda do prato. Isto falaram eles ao fim do primeiro serão, quando passaram o dia em revista, as figuras que fizeram e a figura que passaram e redefiniram os objetivos da sua estadia.

 

Viventes, contentes, entre as matutices e deslizes que experimentavam e gozavam nestes dias duma doce lua, não se esqueceram da representação que teriam de fazer quando regressassem a Vale dos Ovos, pelo que, o argumento da história para ser contada, era tema recorrente, recorrentemente remendado com cunhas e apêndices, novos episódios e aperfeiçoamentos feitos à “grande mentira” em contínua construção. O lado perverso da opção que tomaram, ao guardar para os dois tão grande segredo, tomou tal forma, que a partir de certa altura, a criatividade que se lhes exigia para desenvolver a ficção, transformou-se num divertimento próprio de gente ociosa, num passatempo que preenchia o vazio dos dias, num  desafio que, por portas travessas, os unia.

 

— Então, o que é que lhe perguntámos ao certo? — dizia Jacinto, de caderno na mão, enquanto estavam deitados ao sol.

— Perguntámos o que é que ele fez da vida no Brasil, porque nunca deu notícias… Ah! E ele explicou que passou anos a tentar contactar-te, mas nunca conseguiu.

— Sim, sim… e agora está podre de rico porque fez fortuna com… com quê mesmo?

— Pode ser café? Ou ouro? No Brasil há disso, não há?

— Tem de ser algo credível, mas que ninguém possa confirmar. Talvez negócios imobiliários. Sim, isso! O meu pai comprou terras baratas há muitos anos e agora valem uma fortuna.


A história ia ganhando forma. Cada detalhe era ensaiado até que ambos fossem capazes de contar a versão exata sem hesitações.

domingo, 27 de abril de 2025

14- O incrível caso dum casal a quem saiu o euromilhões


Retomemos agora a composição do capítulo do reaparecimento do pai de Francisca e passemos à ação. Se o homem entrou aqui, que não nos sirva apenas para justificar a súbita saída da filha e do genro da condição de pobres mas que se aproveite a sua vinda à cena para encobrir outras extravagâncias como, por exemplo, umas férias, as primeiras férias dignas desse nome.

Ainda chegaram a pensar contar a ausência numa viagem imaginada ao Brasil mas era conto que exigiria muito cuidado e muita arte na invenção, pelo que se limitaram a uma estadia na capital, para ver o pai cógnito, ouvir explicações, cheirar património, tatear afetos, saborear a família, reunir os sentidos das suas vidas. Nos termos da linguagem corrente assim foi explicado o encontro e encontrado o novo argumento que os tiraria de Vale do Ovos por uns dias.

 

— Ele vem cá a Lisboa mas não quer vir cá à terra porque ainda devem estar vivas umas pessoas que não quer ver. Quer ver-me, diz que tem uma coisa para me dar!

— Já deve estar velho o Marçal.  Ele tem é vergonha daquilo que te fez!

- É melhor não pôr aqui os pés, fugiu para o Brasil e ficou a dever muitos réis a muita gente, um deles foi o meu falecido pai!

- Pede-lhe dinheiro filha, tu não te acanhes! Ainda por cima, agora sem o Jacinto a trabalhar!

- Ná! Vindo de quem vem, isso traz água no bico! Conheci ainda bem o Marçal Marques! Vê lá é se ele não te vem pedir dinheiro a ti!

- Seja o que Deus quiser, que ele nos arranje estadia e comida por estes dias já não é mau. Na volta vamos aproveitar para o Jacinto ir a uma consulta. Haja saúde para trabalhar que dinheiro não nos há de faltar!

 

Estes diálogos acabavam por lhes trazer alguma tranquilidade e, chegado o dia, informaram os “interessados” da partida, prepararam a mala com entusiasmo, não sendo, como sabemos, o destino a capital. Compraram o bilhete para Lisboa, não fosse o chefe da estação dar com a língua nos dentes, mas saíram no Setil e daí seguiram para o Algarve. Para que terra, para que praia, para que hotel, logo se veria, já tinham ambos apanhado o jeito de usar cartões bancários e já se tinham habituado a reações de quem estranhava despesas consideráveis num casal com tão pobre figura.

Enquanto por lá andassem pensariam no que iriam contar sobre o encontro entre pai e filha, agora era o Alentejo que passava na janela do comboio como se ela fosse uma televisão e o Algarve só seria real quando lá pusessem os pés no chão. Tudo rimava sobre carris.

 

- O senhor revisor importa-se de nos avisar quando chegarmos à estação do Algarve?

Apercebendo-se que não estavam a brincar, o funcionário explicou-lhes com rara complacência e simpatia o equívoco da pergunta e, para primeira vez, recomendou-lhes Quarteira se quiserem gastar pouco, Albufeira se tiverem muito para gastar.

- Muito obrigado! Avise-nos então, se faz favor, quando chegarmos a Albufeira!

- O meu colega do Setil, como lhe devem ter dito que queriam viajar para o Algarve, passou-lhes um bilhete para Tunes. Nesse caso tenho do vos vender um suplemento para irem até Albufeira!

- Fique com o troco!

O revisor ficou com o troco e ficou de boca aberta, nunca na vida tinha recebido tão generosa gorgeta.

 

O mesmo viria a acontecer com o taxista, que se viu na inédita situação de escolher o hotel para os clientes.

- Pode ser caro! Queremos é descanso e boa vida!

De mãos cheias com a generosa gorgeta, cheio de amabilidades com malas e acessos, nunca deu com tanto prazer um cartão com o seu contacto:

- É só ligarem! Estarei aqui à porta em poucos minutos!

domingo, 20 de abril de 2025

13- A história incrível do casal que recebeu o euromilhões.

Depois, Francisca começou a exteriorizar satisfação com o novo teatro que teriam de representar.

 

- É perfeito. Ninguém vai desconfiar.

-
E, já agora, tenho de ficar curado para poder beber umas cervejas no café. Por isso, a começar com uma nova história, com riqueza suficiente para não termos de trabalhar, que ela fique completa com a alta médica e eu não tenha de continuar a fingir que estou doente.

-
Se for do coração podes começar a beber, mas com moderação. É melhor manter a história da doença, precisamos de ter um plano B que passe por uma reforma por invalidez, não dá para grandes
gastos mas
dará pelo menos para justificar o facto de não trabalhares.

Era frequente a perspicácia de Francisca deixar o companheiro desarmado. Durante os dias seguintes, foram montando a nova trama com minúcia. Não só pelo prometido, mas também por conveniente, o primeiro a ser enrolado teria de ser o Abílio, que dali espalharia, pela freguesia, as explicações.
Afinal não era filha, mas o avô dela, a fonte do farto rendimento que agora os alimentava. Foram tão
surpreendidos
pelo reaparecimento do desaparecido, que acautelando a hipótese de virem a ser vítimas do conto ou da hipnose de algum vigário, receando passar pela vergonha de enganados, puseram o nome da filha, como rica, no barulho, a desgraçada que, segundo
Paleco
, não tem um palmo de
Luxemburgo
onde cair morta.

Primeiro, receberam um telefonema dum suposto detetive
privado mas
nem queriam acreditar. Depois receberam um telefonema do pai de
Francisca mas
nem queriam acreditar. Depois foi-lhe pedido o número duma conta bancária, pelo sim, pelo não, abriram conta, mas continuava-lhes a custar a acreditar. Quando foram confrontados com o primeiro depósito, ficaram tão assustados que não contaram a ninguém. Ao fim de tantos anos, o pai de Francisca dava notícias e eram boas, como confirmava o extrato.

-
E quer conhecer-me pessoalmente!

A princípio, a história foi recebida com cautelas e surpresa, mas rapidamente passou a ser assunto entre amigos, vizinhos, conhecidos e até entre outros, que atraídos pelo gosto pelo insólito, não conhecendo o casal, o passaram a conhecer por referências travessas, dedos indicadores pouco discretos ou até mesmo, forçando diálogo com os próprios para recolher mais dados.

— Coitada, tantos anos sem saber nada do pai, e agora descobre que ele sempre se lembrou dela — comentava a vizinha, abanando a cabeça com um misto de pena e curiosidade. Antes de nos enfiarmos com o casal na nova mentira em construção, paremos um pouco o guião para um aparte devido e que já tarda. Nos tempos em que a representação da imagem era exclusivo dos pintores, os escritores desenvolviam a arte das palavras, davam voltas ao texto, estendiam linhas, para descrever um rosto, um corpo, uma rua, uma paisagem e ainda deixavam um espaço vazio de liberdade para os leitores preencherem com a sua própria criatividade. Hoje, em plena era da imagem, uma foto, um filme, uma reportagem, resolvem tudo num instante, sem ser preciso o escritor cansar-se em prosa ou o leitor gastar pestanas.
Assim sendo, seria fácil inserir aqui duas ilustrações para representar cada um dos membros do casal a quem saiu o euromilhões e pronto. Era mais fácil para o dono das personagens e para quem tem o direito de as conhecer, mas querendo-se a história tomada como verdadeira, levantaria questões de segurança.

Além disso, por alguma razão, mesmo os romancistas da era tecnológica, por hábito, não se desviam para o facilitismo dessa solução, pelo que, como pretenso escritor, terei de
me fazer
ao prometido há páginas atrás, pegando em mãos a trabalhosa tarefa de desenhar por palavras alguns traços dos físicos de Jacinto e Francisca e deixando à imaginação dos leitores o que ficar em falta. Para já, vamo-nos cingir ao tempo de antes-prémio, porque agora, com dinheirinho a rodos, mais tempo e mais passeio, estavam em fase de experimentação e acomodação a novos visuais.

Jacinto pesava sessenta e cinco quilos bem pesados, um metro e sessenta e cinco, olhos frágeis e acastanhados, cabelo castanho, despenteado e avantajado, sobrancelhas despenteadas, testa bem encaixilhada, barba feita mesmo agora, de três dias, duma semana ou até dum mês, se os há, nariz perfeito, boca de sorriso ao léu, bochechas graciosas, orelhas quanto baste, pescoço equilibrado, nuca arredondada, ombros levantados, barriga discreta, pernas de bom andar, seria um tipo normal e bem-parecido se não andasse quase sempre desgrenhado pelo uso do capacete e não vestisse o que viesse à rede na tenda do cigano. No trabalho usava um boné do Zé do Talho e aos domingos de manhã tomava banho e compunha-se melhor.
Francisca pesava quase setenta, andava pelo metro e setenta, olhos verdes, cabelo ruivo pelo ombro e frequentemente
desmelenado
, não era feia, tinha um rosto de traço atlético, robusto e meio feliz, lábios curtos, riso contido, a testa lisa, a nuca aplainada, pescoço de se beijar, ombros diligentes, curvas com a sensualidade traída pelo traço atlético replicado da cara, usava sempre calças pelo que das pernas apenas se pode dizer
que andavam
e
deviam de
ser carnosas. Vestia da feira, pensava a cor mais do que o corte, as calças eram mais de ganga do que outra coisa, vestido não se lhe conhecia há muito, que isso de convites para casamento e batizados já dera uvas.

domingo, 13 de abril de 2025

12- A incrível história dum casal que recebeu o euromilhões.


Iam assim os dias do casal milionário, ainda sem plena consciência do valor dos milhões que tinham em depósitos, saboreando o desafogo financeiro, mas ainda engaiolados no medo e no segredo.

— Quanto tempo vamos conseguir viver assim? A fazer de conta que não temos nada?

— O que queres dizer?

— Quero dizer… não faz sentido termos tanto dinheiro e continuarmos a viver como se fôssemos pobres.

Ela suspirou.

— Eu sei. Mas se começamos a gastar de repente, toda a gente vai desconfiar. Não te lembras do que aconteceu ao teu primo Toino?

O António era um exemplo conhecido em Vale dos Ovos. Há uns anos, tinha saído para França em busca de uma vida melhor e, quando regressou, apareceu com um carro novo, roupas caras e pôs-se a fazer uma casa estilo “maison”, com janelas “ à la fenêtre” e telhados para a neve, só lhe faltou pôr suportes para colocar os esquis no hall de entrada.. Mas a inveja e os rumores foram tantos que, em pouco tempo, começou a ter problemas. Diziam que se metera em negócios escuros, que devia dinheiro a agiotas. O falatório foi tanto que António acabou por vender tudo e ir-se embora de vez.

— Sim, lembro-me — respondeu o Jacinto. — Mas também não podemos viver como miseráveis. Há coisas que podemos melhorar sem dar nas vistas.

- Então mas não estamos a gastar muito mais do que gastávamos?

- Sim, mas não estamos, nem de perto, a gastar de acordo com o que temos!

- Vamos com calma! Para já vamos aguentar a versão que a Lúcia nos está a ajudar! Depois inventamos outra!

 

Pois, tinham mesmo de inventar outra, havia mais gente de Vale dos Ovos no Luxemburgo. Um deles, o Paleco, veio cá uns dias, esteve no café da estação. Contou que estava perto do Alberto, que via a Albertina todos os domingos à saída da igreja, que o Joaquim trabalha com ele, que a Joaquina tem os filhos na mesma escola, que o Costa está muito bem, tem um café, a coisa não está muito bem é para a Lúcia, a filha da Francisca, passa lá por muitas dificuldades, o gajo embebeda-se e ela vê-se negra para pagar a escola da filha!...

Abílio, primeira testemunha da surpreendente contradição entre o discurso do casal sobre a origem do seu repentino desafogo e as informações fresquinhas do Paleco, recorreu à sapiência de tantos anos a encher copos e engoliu para digerir mais tarde. Como só ele ouvira, aguardaria para testar se o Paleco contaria a mais alguém e, em função disso, moldaria a sua posição pública sobre o assunto.

Uns dias mais tarde, constatando que ninguém trouxera o nome da Lúcia à conversa no café, e tendo já Paleco passado além dos Pirinéus, Abílio mostrou-se amigo de Jacinto e confrontou-o em tom paternal, em privado, com o que não batia certo e queria explicações.

 

Jacinto engasgou-se com o carioca de limão e aproveitou o tempo do engasgo para um raciocínio rápido que o teria de livrar de pôr os pés pelas mãos e dar-lhe as palavras certas para acalmar o inquiridor.

- Ora Abílio, isso é uma longa história! Graças a Deus que, no meio de tanta desgraça, eu e a Francisca temos tido uma ajuda, que não é pequena, mas que ainda não podemos dizer de onde vem. Não contes por favor a ninguém a conversa do Paleco que eu prometo-te que serás o primeiro a saber a verdade.

 

Quando Jacinto, regressado a casa, contou à Francisca o percalço, esta estremeceu em pensamentos por ter recebido notícias menos felizes da vida da filha emigrada – teria de arranjar maneira de a ajudar – mas não questionou a insensibilidade de Jacinto, que parecia apenas preocupado com o facto da mentira ter perdido a validade. Era necessário inventar uma nova mentira com crédito assegurado e, já agora, que desse para poder mostrar a carteira ainda mais cheia.

 

A ideia surgiu na noite abafada e já longa, enquanto partilhavam um copo de vinho ao calor da lareira. O silêncio da aldeia envolvia a casa como um manto pesado e, o peso da manta dos milhões, embora os fizesse sentir agazalhados e protegidos, pesava-lhes cada vez mais.

— A aldeia sabe da história do teu pai — disse o homem, rodando o copo entre os dedos.

A mulher ergueu os olhos.

— Sim, todos sabem. Que ele fugiu para o Brasil depois da morte da minha mãe pelo meu parto.

Jacinto abanou a cabeça positivamente preparando o espaço para a próxima deixa:

— E se… e se ele tivesse entrado em contacto contigo? Se, depois de tantos anos, te tivesse procurado, cheio de arrependimento?

Francisca franziu a testa, tentando acompanhar o raciocínio do companheiro.

— Estás a dizer que…

— Que o teu pai fez fortuna. É, sem exageros, dono de meio Brasil e agora quer compensar-te por te ter abandonado. Pôs uns detetives à tua procura, encontrou-te, vai telefonar-te e começar a enviar carcalhol a rolos. Quem sabe, vai até querer que a gente vá ao Brasil!...

Houve um momento de silêncio, enquanto a ideia se instalava entre os dois. Depois, Francisca começou a exteriorizar satisfação com o novo teatro que teriam de representar.