segunda-feira, 18 de agosto de 2025

No Caminho

-  Quanto é que pagaste para te publicarem o livro? Foi muito caro?

-  Ganhas, ao menos, algum dinheiro com isso?

Questões clássicas que os mais atrevidos me colocam. Como se desconstruir os sonhos em palavras e gravá-las no objeto livro, tivesse de ser avaliado na fatura duma gráfica ou no somatório da coluna "receitas" duma folha de cálculo.

O que não sabem é que publicar um livro não é como apresentar aos amigos um móvel que se fez para a casa de banho, os livros são paridos, expulsam para a luz vida que já não cabe em nós.

Não, eu não paguei para publicar.  Paguei com horas de transposição para o teclado, pensamentos que se reuniram e formaram na parada da noite, soldados que sobre o meu comando desfilam nesta coreagrafia pretensiosamente literária ou, se quiserem, com mais modéstia, apenas uma história que se inventa e conta. Ganho por acreditar no prazer que pode gerar cada exemplar impresso nas pessoas anónimas que gostam de ler e no processo de realimentação - em inglês "feedback" - que algumas vezes recebo com um "tá porreiro pá".

- Hoje em dia qualquer um pode publicar um livro! Dizem-me alguns desvalorizando-me sem intenção.

E eu observo: 

Que mal há nisso que eu só vejo bem? Ainda bem que o livro deixou de ser apenas democrático do lado do leitor e passou também a ser democrático do lado do escritor.

Pronto, finalmente o Caminho do Fim da Terra chegou à FNAC online.

Para quem preferir pode sempre contactar-me que eu próprio o envio. Terei todo o prazer nisso.


domingo, 17 de agosto de 2025

30- A incrível vida do casal ganhador do euromilhões

 


Francisca foi ao frigorífico e preparou a refeição possível. Abriu um vinho, respirou com ele e pôs-se, aliviada, a fazer o ponto da situação:

A nova mentira, “Jacinto preso por tráfico de droga” – Ah! Ah! Ah! - está montada, lançada  e terá pernas para andar, até se perder, por todas as casas, quintais, ruas, vales, cantos e recantos de Vale dos Ovos e arredores. E, se não se perder, se alguém a descobrir, já não importa! Dificilmente descobrirão por onde anda o casal de traficantes de droga! E se descobrirem também já não importa!

Assim sendo, a primeira coisa a fazer é desfazer-se da moradia da praia, da qual gente de mais sabe da sua existência. Depois? Depois? Amanhã terá de ter uma conversa telefónica com o “assim, assim” marido para lhe expor o ponto da situação que está, agora mesmo, a fazer, com uma garrafa de tinto que já vai a meio. Dir-lhe-á: “pontos nos is”, “como é que é a nossa vida?”, “vou continuar contigo?”, “divórcio?”, “dinheiro? contas à parte? espatifá-lo? viver sem espalhafato? ”, “como é?…”.

Quando se apercebeu que esta reflexão começava a ficar turva, decidiu ir para a cama e adormeceu sentindo a falta do seu companheiro de sempre. Era inevitável, acabaria por mudar de residência para Vila Facaia. 

Aqui chegados, eis a pergunta que se impõe:

- É isto a incrível história do casal a quem saiu o euromilhões?

Pergunta à qual se acrescentam outras interrogações:

O que leva uma pessoa a pôr-se a ler um livro assim? Prazer pela leitura? O título interessou-lhe? Gosta do modo de escrever e de criar do autor?

Seja qual for a razão, é quase certo que, ao fim de cerca duma centena de páginas viradas, já questiona o interesse do enredo, abre a boca enquanto avalia a espessura do conjunto de folhas sobrantes e guarda para amanhã o esforço final de chegar ao fim, curiosa de, pelo menos, ver como isto vai acabar, se tudo bem – como Francisca acaba de pensar - se em tragédia, se morre alguém ou morrem todos, solução esta que é a mais prática e garante que é mesmo o Fim e que não haverá fio para mais uma temporada.

Quem não experimentou já ver um filme com pouco entusiasmo mas com suficiente curiosidade para ver o final e, aí chegado, ter de perguntar:

- Mas tanta coisa para isto? Tanto tempo para escrever o guião, tantos atores a decorar texto, tanto investimento na produção, tanta tinta, tanto gasto, para nos porem a ver isto?

No caso presente, informe-se quem esteja a passar por semelhantes sensações que, pelas mesmas passa agora o próprio autor, a braços com o dever de dar um sentido existencial à história, parágrafo a parágrafo, aumentando o volume do objeto livro, ansioso de chegar a uma clareira que lhe dê luz para o remate final dos acontecimentos e faça jus ao título que contém o termo “incrível”.

Afinal de contas, ao fim de tantas horas investidas nesta escrita, desistir seria doloroso, pelo que há que manter o ânimo e acreditar que esta história merece ser livro. Claro que merece! Aliás, até as pessoas que nunca leram um livro, acabam um dia por se descair e contar a alguém que a sua vida dava um livro! Tudo justifica um livro, ainda que possa ser muito pequeno. Haja quem leia! Isso já é outro problema!...

E já que estamos num intervalo de divagações, falemos também assumidamente, que há dados que ainda aqui não foram dados, de forma intencional, por técnica, estratégia, capricho ou inabilidade.

Por exemplo, em que anos se passa a história? Não sabemos se é importante mas, tirando umas por outras, podemos lá chegar. Certo que estamos depois de 2004, ano em que foi lançada a lotaria do euromilhões, e antes de 2025, que é o ano em que estamos.

Mas podemos esclarecer, porque chegou a altura, que desde o dia em que o casal confirmou a sorte, já terão decorrido nove meses, pelo que, medindo novamente a quantidade de páginas ainda não lidas, poderemos concluir que já temos pouco tempo, considerando como boa regra, que um ano chega para gestacionar uma história.

Deixamos também nota para uma questão que, porventura, andará presente em mentes mais materialistas:

- Porque tem permanecido omisso, até aqui, o montante exato, arredondado ou bruto, do prémio recebido?

E omisso continuará até ao fim, primeiro porque a dimensão do valor pode tentar o leitor a imiscuir-se no teor da narração e a tecer críticas às opções do autor, segundo porque não responder a essa curiosidade primária, poderá levá-lo a continuar a leitura até ao fim.

domingo, 10 de agosto de 2025

29- A incrível vida do casal ganhador do euromilhões

 


Quando o Pisca-pisca parou o carro e se apercebeu quem era a cliente, ficou com cara de tomate mas saiu do embaraço como pôde:

- Aquele Abílio vai pagar-mas, porque não me disse ele que eras tu!?

- Fui eu que lhe pedi, sabia que ias gostar desta surpresa!

A cara de tomate diluia-se nas rosáceas associadas ao exagerado consumo de cerveja, vinho e aguardente. No resto do dia, foi-se adaptando ao incómodo de ir ouvindo, em suaves prestações, a história da prisão de Jacinto. Surpreendia-o a naturalidade, para não dizer o prazer, com que Francisca relatava toda a história da prisão e do crime do companheiro de sempre.

A certa altura começou até a ficar convencido de que ela, agora sem o Jacinto, estava a precisar de peso e o desejava. Daí o pretexto do frete excecional, que preencheria toda a tarde e ainda incluiria o percurso até à casa de praia que, não saberia ela, mas ele conhecia.

Sabia, sabia, os videoporteiros modernos com gravador têm destas coisas, coisas de ricos! Ao longo da tarde foi descascando o “tomate”, com informações falsas e pequenas provocações: “sabemos que foi alguém daqui que fez a denúncia”, “como souberam que ele vendia erva de Marrocos e folhas da Colômbia é que eu não sei”, “o Abílio disse-me que não sabe quem foi mas desconfia”, “às tantas estou para aqui com coisas e tu sabes quem foi”, “já pensei no Jápintas!”, “vizinhos para quem ele andou lá a pintar há uns tempos, disseram-me que o viram a rodear a minha casa com outros dois”, “estou-me nas tintas para quem foi, o que interessa é que ganhámos bom dinheiro com o negócio e não tarda muito ele está cá fora outra vez!”

O desgraçado do taxista foi toda a tarde um autêntico farrapo nas mãos da conversa da tagarela reinante. Valeu a Francisca este divertimento oportuno para compensar a tristeza que de outro lado lhe vinha.

A sucessão de pequenos atos e diálogos que envolvem a despedida definitiva dum local onde se viveu por muitos anos, pode provocar transitoriamente estados de profunda tristeza, de choros incontroláveis, de saudade do passado recente ou até do presente. E nem sequer importa se partimos desta para melhor – salvo seja! - passam por isso os soldados quando passam à disponiblidade, os presos quando são libertados, os doentes internados quando têm alta, os emigrantes quando voltam de vez. O arrumar das botas e das malas, o embarque, os abraços, os adeuses, doem sempre muito, mesmo quando se deixam espaços onde não se foi feliz e se sofreu.

Francisca, por história de vida ou pelo menos por aparência, era uma mulher de armas e de sensiblidade robusta e viajou para esta despedida com a predisposição de quem vai ao mercado ou à feira, pelo que, foi apanhada de surpresa pelas lágrimas que por várias vezes, ao longo do dia, sozinha ou em companhia, expostas ou discretas, lhe irrigaram o semblante.

Quando, ao fim da tarde, deu ordem de partida ao Pisca-pisca e o táxi arrancou do largo da estação, correspondeu, através dos vidros do carro, aos acenos de adeus que Abílio desenhava, firmemente posicionado no portal de entrada do seu estabelecimento. Soltou um soluço final e dirigiu o olhar vazio para a estrada que se abria à sua frente, ignorando que ao seu lado havia um condutor que, apesar de todas as contrariedades, apesar de a ter acusado injustamente, ainda sonhava que ela o mandasse entrar quando chegassem à casa rica, que lhe oferecesse uma bebida e lhe abrisse a cama.

Enganou-se bem porque ninguém engana a Francisca. A sensibilidade feminina cheira à distância os desejos dum homem e foi assim que conseguiu um preço muito em conta, ao perguntar por contas antes de chegarem.

- Pode não ser nada, tudo depende do que tiveres em casa para me dares!...

Ela respondeu com um silêncio de desprezo e vingança que bateu com crueldade os intentos do macho.

Chegados ao destino, abriu a porta para ele descarregar na entrada a tralha que trazia, pagou-lhe sem gorjeta, deu-lhe um aperto de mão e, em tom de boa disposição, deixou-o ir com uma frase laminar de despedida:

- Espero que nunca ninguém ligue para a polícia a bufar que andas a conduzir com álcool.

Os candeeiros da rua iluminaram um tomate prestes a rebentar, protegidos da luz, os outros dois tomates desfizeram-se e engelharam as peles, nem sequer teve coragem para sair logo de Pedra de Ouro, desfeita a fezada, estacionou o carro junto a um arvoredo e dorminhicou umas horas para perder umas gramas.

quarta-feira, 6 de agosto de 2025

A invenção do cervejão

Para o enchimento duma placa convocavam-se todos os braços disponíveis porque a obra tinha de ser feita num só dia, de modo a evitar descontinuidades no betão armado, provocados por diferentes tempos de secagem.

Assim, o dono da obra, quase sempre emigrante que já juntara dinheiro para a casa nova, contava, para além dos mestres e serventes que levantavam a construção desde a raiz, com parentes próximos e afastados, com vizinhos e amigos voluntários, e ainda recorria aos jovens estudantes de férias que precisassem de ganhar para umas calças Lois.

Foi nestas funções que recebi os meus primeiros salários.

Aos mais velhos cabia normalmente a função de fazer a massa. Quanto mais pás e enxadas houvesse, mais rápido se fazia a mistura da areia, da brita e do cimento para, depois do monte feito, se abrir a cratera que se enchia de água para, em seguida, novamente as pás e enchadas misturarem tudo até o betão ficar bem amassado.

Os baldes com a massa eram levados pelos mais jovens até ao andaime onde os mais fortes os elevavam até ao patamar da obra, de onde outros jovens os levariam até junto dos pedreiros mestres.

Normalmente era verão, era normal que fizesse calor, quase sempre o suor escorria, muito se bebia mas só era tolerado que se estivesse bêbado lá para o fim do dia. A bebida oficial para tanta virilidade não poderia ser água ou laranjada mas, a bem do bom trabalho, também nem podia ser vinho que embebedava, nem cerveja porque não havia frigoríficos, pelo que inventaram uma bebida com um pouco de tudo isso e mais alguma coisa: o cervejão!


domingo, 3 de agosto de 2025

28- A incrível vida do casal ganhador do euromilhões


Para despistar eventuais seguidores e baralhar os seus passos, Francisca, viajou de táxi para Pombal e daí apanhou um regional para Vale dos Ovos. No comboio, Francisca projetou com mais detalhe aquela que teria de ser a última e derradeira explicação do desafogo económico que não conseguiam mais camuflar.

Ninguém da terra, ao fim duma longa viagem, sai da estação sem entrar no café do Abílio, e muito menos Francisca desta vez, pelas razões que bem conhecemos.

Pagou-se o que era devido ao balcão e deixou-se ainda mais à confiança do balconista.

- Abílio, este é para fulana a quem devo uns favores, mais este para fulano a quem devo obrigações e mais este para alguém de quem me esteja a esquecer! Se ouvires por aqui alguém queixar-se, que eu ou o Jacinto lhe devemos alguma coisa, paga! Se este que te deixo se esgotar, liga-me que eu transfiro mais!

Fica por pagar um favor que te quero pedir: vou deixar-te as chaves da casa porque nas mãos do Pisca-pisca não estão seguras, nem ele terá arte para a arrendar. Se aparecer alguém interessado, arrenda-a tu e fica com o dinheiro como forma de pagamento para o serviço que me prestas ao tomar conta dela.

- Credo rapariga! Com as mãos assim tão largas ainda vais dar mais corda às vozes que vos invejam a sorte.

Francisca tinha por teoria caseira que, quem consegue para o seu partido o dono do café central, tem proteção dos predadores do burgo. Com esta prova de confiança que dava ao homem do balcão que com todos falava, assegurava que ele os defenderia perante as línguas afiadas e perigosas de certos fregueses.

Depois de tratados os assuntos materiais passou-se ao ponto dois: Jacinto foi preso mas não a deixou tesa.

- Ao menos deixou-me algum dinheiro, passou-se assim e assado, por isto e por aquilo, asneiras, necessidades, azar, vício, os grandes não são presos, os pobres pagam as favas, eu confiava, eu desconfiava, tenho de deixar esta terra, podem cortar-me a casaca que eu tenho dinheiro para outra mas não estou para responder a perguntas nem para reagir a olhares ou dedos indicadores com os meus dedos médios…

E olha que te digo, que foi alguém daqui que fez queixa dele à polícia!

- Daqui, duvido que tenha sido! Há por aqui muita gente que fala de mais mas não tem cantiga nem voz para tanto!

Abílio ouviu, com pena, a confissão da Chiquita e além desta, fez outras observações:

- Não há de ter grande pena, o Jacinto é bom rapaz, toda a gente desta terra sabia que ele fumava disso, ninguém imaginava que andasse metido nesse negócio, tem de pagar por isso, é bom rapaz, tu és forte, vais aguentar, um dia hei de ir visitá-lo!...

Eh lá! – pensou Francisca para consigo – visitá-lo é que não! É melhor passar ao ponto três.

Desconfiada que um dos com qualidades para participar à polícia poderia ter sido o seu próprio taxista e caseiro de ocasião, o Pisca-pisca, para evitar que com receio de a enfrentar, arranjasse desculpas de indisponiblidade para lhe fazer um serviço, pediu mais um favor:

- Oh Abílio, o meu telemóvel está com pouca carga, liga-me se faz favor ao Pisca-pisca, diz que tens aqui um cliente para um frete, mas para ser surpresa, não digas que sou eu! Estou cansada e não me sinto com forças para ir até lá cima a minha casa a pé!

De mais a mais, aquilo não deve estar em condições para eu dormir a noite. Ainda hoje tenho de ir para a Vieira. O Pisca está em dia de sorte, vai ter um dia por minha conta. Aproveito para lhe pedir as chaves para as passar para ti. Tenho lá coisas para levar, do que ficar, põe e dispõe, ainda tenho de me despedir da vizinhança, também tenho de ir às casas da Líria, da Rosa, da Rosália, que sempre foram tão minhas amigas. Depois passo aqui para me despedir e comer alguma coisa para a viagem.

sexta-feira, 1 de agosto de 2025

O outro candidato


Apenas quatro candidatos já apresentaram públicamente a sua candidatura à presidência da República, mas tal não tem impedido que a comunicação social especule empenhadamente noutras eventuais candidaturas de cidadãos bem vistos e se tenham repetido sondagens com candidatos que nunca o foram ou nem sequer o querem ser. 

Pergunta-se então porque é que há um candidato, de candidatura formalmente anunciada e que já percorre o país em numerosas iniciativas de pré-campanha, que não aparece na comunicação social e até nas sondagens é ignorado.  

Perante esta vísivel intenção de tornar invísivel um candidato e indizível o seu nome, recomendo à equipa de imagem do mesmo que recorra a iscas a que a comunicação social não resiste:

- Dizer que vê melhor do olho direito do que do esquerdo;

- Revelar que tem um parente afastado que pertenceu ao MDLP;

- Confessar que fumou charros na adolescência;

- Fazer um discurso com palavrões e impropérios;

- Aparecer em público com um coelho branco ao colo;

- Simular uma indisposição depois dum almoço bem regado;

- Proferir uma frase com o vocábulo Coreia;

- Defender a necessidade de defendermos a costa dos russos;

- Vestir um fato da marinha de guerra;

- Agachar-se um pouco para parecer mais baixo.

Se nada disto resultar, há uma que, garanto, os balsemões apoiarão e porá fim ao silenciamento:

- Anuncie que vai sair do seu partido.

(Também não digo o nome dele, todos sabem a quem me estou a referir, é o Outro!)

domingo, 27 de julho de 2025

27- Um caso incrível dum casal premiado com o euromilhões.

 

Estavam as coisas neste ponto, já era fim de tarde, Jacinto na terra a fazer obras, Francisca na praia a projetar a ida a Vale dos Ovos e, em Vale dos Ovos, a dupla Jápintas e Pisca-pisca, ressabiada do passeio à Senhora da Asneira, à Pedra de Ouro, de tarde bem regada, especulava sobre a árvore das patacas que alimentaria os fundos da carteira do nosso casal.

- Essas árvores não existem e o dinheiro não nasce, tem de vir de algum lado. Mas de onde? – perguntavam-se enquanto bebiam o sempre adiado último do dia.

- Uma vez fui com ele a tal lado, um dia vi o gajo com um tipo de óculos escuros, havia dias em que não os via senão à noite, uma noite vi um carro que não era daqui à porta deles, faziam de pobres só para disfarçar!...

- Que só fumava umas brocas!... Que só fumava umas brocas! Fumavam ele e ela! Fumavam e vendiam! O que é que eles iam fazer tantas vezes ao Entroncamento e a Fátima? Que eu saiba não negociavam em travessas velhas nem em terços em segunda mão!

A fonte do dinheiro só podia ser uma, o negócio da droga!

Aliás, esta é a explicação a que se chega sempre quando um vizinho ou conhecido começa a passear-se num automóvel novo – no caso um papa reformas – e arranjam uma nova morada. Efabularam tanto as evidências, tomaram de tal modo como certa a conclusão, que deixaram de ver qualquer saída que não fosse denunciar às autoridades competentes o que, rápida e levianamente, passou de simples desconfiança a informação fundamentada e segura.

A polícia recebeu-os e ouvi-os com ávida atenção, assim que percebeu que havia ali caso susceptível de dar gosto ao dedo de servidor do estado. Casa com piscina na primeira linha junto ao mar é indício de peixe graúdo a dar à costa. 

A investigação prosseguiu o seu caminho, baseada nos factos e nos dados fornecidos pelos dois consumidores de drogas legais, a saber, vinho, cerveja e aguardente. Voltaram ao Vale, mantendo cúmplice segredo do ato de velhaca bufaria que haviam levado a cabo. Esperariam uns dias para ver o resultado e, só depois e em função dele, se gabariam que partira deles a iniciativa contra o crime e a bem da segurança das pessoas de bem deste país.

Andou o processo de esquadra em esquadra, de agente em agente, a casa da praia sobre vigilância, de Jacinto nem sinais, Franscisca entrava e saía, o papa-reformas e os táxis eram difíceis de seguir sem se fazerem notar, mas era claro que havia ali fortes suspeitas de ilicitudes, pelo que, um dia a campainha tocou já noite avançada, Francisca foi detida com a roupa que tinha vestida e a malinha, o telemóvel confiscado, entrou, incrédula, no carro da polícia da Marinha Grande.

Foi tratada sem dó nem piedade, como é tolerável e, segundo consta, hábito, nestes locais onde se tratam assuntos com os fora-da-lei. Quando falou do euromilhões, provocou estridentes gargalhadas na sala do interrogatório. Passou a noite na cela e, no dia seguinte, perante a insistência da sua justificação para os sinais exteriores de riqueza e a fragilidade dos elementos de prova, circunscritos ao relato dos dois denunciantes, a inspeção cedeu e viu-se confrontada com a situação inédita de ter de entrar em contacto com a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa.

Francisca foi libertada entre mil pedidos de desculpas do chefe da polícia, tendo exigido como reparação dos incómodos causados, sigilo absoluto sobre a origem da sua riqueza e que a levassem a casa de imediato.

Como chegou a casa por volta do meio-dia, optou por ir almoçar no restaurante do costume e, enquanto gozava o prazer do sossego duma refeição a sós consigo, pôs-se a congeminar nos acontecimentos das suas últimas horas. Ele há cada uma! Certo, que para lá da incompetência das autoridades, haveria alguém pouco inteligente que foi picar os simplórios dos polícias para atuarem, alguém que lhes desejava mal, não interessa quem, mas esse alguém, só poderia ser de Vale dos Ovos. Acomodou o enrolar e desenrolar dos pensamentos ao decorrer da refeição e já aguardava a conta quando uma luz se acendeu na sua mente:

- Pela boca morre o peixe, essa gente vai comer do veneno que inventou, não é tarde nem é cedo!

Estava dada a partida para um novo álibi que justificaria a riqueza, aliás modesta, se considerarmos a parte que chegara ao conhecimento dos conterrâneos: uma casa na praia, muita gente tem, viver sem trabalhar não falta quem.

Com este episódio e com esta decisão havia já motivos e motivações de sobra para ligar ao mais ou menos ex-marido e assim fez. Custou a convencê-lo que era verdade que tinha sido presa e quando este acreditou, em vez de ser solidário ou lhe dar consolo ao menos com um “deixa lá”, desatou a rir que nem um desalmado.

Jacinto voltou ao sério quando teve de concordar com a necessidade duma última e derradeira mentira, que ela mesma já estava a tecer e que tornaria pública na terra onde deles se fala, na ida que, nos termos já antes entre ambos combinados, teria de fazer por razões várias e vários fins. Quanto mais não fosse, por pura diversão de rica que era. O mote era este:

- Estás preso por tráfico de droga!

Daí a origem do dinheiro, muito dele posto a salvo das manápulas dos tribunais em bom tempo, ela que o gozava agora, ele que, cumpridos três anos, voltaria para lhe fazer companhia no gozo.

- Engulam! Aceitem! Desta vez, o crime compensou!... E compensou bem!... Pronto! Foi isto que aconteceu!... Nunca tive pai!... Chega? Estão contentes?

- Já estou para tudo! Mente para lá o que quiseres! Antes dares-me como preso do que como morto! Pelo menos se alguém me vir por aí não morre de medo! Eu não faço conta de lá voltar tão depressa e tu, se a coisa voltar a dar para o torto, desenrasca-te que já provaste que tens arte para isso! Eu por aqui estou bem, graças a Deus. Sempre que quiseres cá voltar, a porta estará aberta e a casa será tua!

Ah! E deixa-me dizer só mais uma coisa: a minha mãe achou-te uma rica mulher e o meu irmão está sempre a perguntar por ti.

quinta-feira, 24 de julho de 2025

Novo livro com a patada negra

Dizem que eu tenho mau feitio mas muito jeito para marketing. Isto é muito simples: publiquei mais um livro, quem quiser comprar compra e quem não quiser não compra!



domingo, 20 de julho de 2025

26- A história incrível dum casal que recebeu o euromilhões.

 


Vamos agora a Vila Facaia, para dar uma mão nos dias de redenção que Jacinto por ali pratica com devida abnegação.

Quando chegou, espantou e revoltou a mãe, babou e avivou o irmão – portador de doença psicomotora, recordemos – e voltou a enterrar o pai quando o soube, felizmente, morto. Tinham passado muitos anos, mas o mano continuava a mesma criança, limitada nos seus passos, com o mesmo sorriso inocente e, por detrás das rugas, pressentiu na mãe a mesma alma, lenta e ferida, conformada com a má sorte e com a frieza com que ele, o filho são, a abandonara ao mau-vinho do, felizmente, falecido.

Não adiantava chorar sobre as lágrimas derramadas, Jacinto tinha, portanto, de trabalhar para conseguir o perdão materno, que sempre se consegue, tornar mais digna a vida do irmão, dar um sentido novo à sua vida, honrar as suas origens, dar um fim honrado ao seu património financeiro.

Ao fim de alguns dias eram visíveis as melhorias nas expressões da mãe e do irmão. Para os outros facaios foi fácil engolir a versão de ter um passado de emigrante na Austrália, de ter agora voltado bem abonado e da mulher andar também na terra dos seus a matar saudades. Passadas semanas tinha fechado negócio e adquirira uma casa, na vizinhança, para remodelar e proporcionar outro conforto à família, dera um contributo apreciável para a Santa Catarina e começava a ser considerado um filho pródigo merecedor de público reconhecimento.

Cuidar dos seus transformou-se num prazer, voltar a viver no seu habitat de criança tornou-se um alimento. Para quem chegou com baixas expetativas, o regresso às raízes, supreendentemente abriu-lhe a porta duma nova vida, apenas perturbada pela sina popular de dar destino ao ditado de “sorte a jogo, azar no amor, traduzida na súbita interrupção da sua relação conjugal.

Não se pense, contudo, que a frequência dos contactos que mantinha com Francisca, se reduzissem à gestão da carteira e do segredo, a sua separação era mútuamente aceite com normalidade, a sua relação era amistosa, o que, por si só, não afastava a hipótese de no próximo encontro físico, renascer o verdadeiro amor, aquele que no fundo não é mais que uma amizade com momentos de sexualidade partilhada.

Estava, portanto, Francisca, inteiramente ao corrente do quotidiano e das emoções de Jacinto e este, preocupado, acompanhava de perto todos os pormenores do desmoronamento do embuste que arquitetaram. Até que ambos chegaram à conclusão que o melhor mesmo era Francisca vir a Vila Facaia para conhecer a sogra e o cunhado, para ver o que Jacinto andava a fazer ao dinheiro e para, presencialmente, combinarem uma estratégia para se desenvencilharem do imbróglio que lhes tinha posto a careca a descoberto.

E assim foi, Francisca chegou, foi bem aceite e aceitou bem. Para não agitar a harmonia familiar e a concórdia, dormiu com o ex-marido, teve um orgasmo e acordou bem, assim como Jacinto e, com tudo entre os dois mais ou menos bem, acordaram que, pelo menos um deles, tinha de ir a Vale dos Ovos pagar contas, esclarecer quem o merecesse, para depois desaparecer sem deixar rasto, abandonando de vez o passado, a casa, o povo e o povoado.

A terra natal de Jacinto parecia a este, o local onde ninguém daria com ele e onde ninguém questionaria a sua vida desafogada.

Seria com noites destas e conversas destas, que aguentariam viva a relação, sem perturbarem o estado de separação por mútuo acordo. Assim se despediram.

Durante a viagem, Francisca, de regresso à Casa da Pedra de Ouro, decidiu que, para já, essa iria continuar a ser a sua morada. Não se lhe oferecia outro lugar ou companhia para desfrutar da boa vida. Arranjar outro homem, ir para outra terra, procurar a filha, aprender a viver só, eram considerações a que atendia, mas a memória da última noite e o olhar pacífico do Jacinto, estavam a fazê-la reconsiderar.

As inseguranças que lhe traziam tantas dúvidas, tão poucas certezas, fizeram-na sentir-se de novo, em fim de adolescência, obrigada a aceitar um modo de vida e a decidir-se por um companheiro, por já ter idade e antes que fosse tarde.

Recordava as amizades que fizera na juventude e que eram para toda a vida, as juras com Jacinto que também eram de amor para toda a vida, o amor de mãe e filha que era inquebrável e para sempre. Refletia na família-ombro-refúgio-âncora-proteção-companhia, talvez tudo. E afinal, passados estes anos, não sabe do paradeiro de uma única amiga da adolescência; a relação com o único amor da sua vida está no estado em que está; a filha Lúcia está praticamente incontactável; o calor da família está quase tão frio como o berço em que o pai a abandonou.

Depois deste parágrafo de a puxar para baixo, alternou com outro de puxar para cima:

Crescera forte porque crescera sem família, a solidão sempre fora a mais fiel das companhias, Jacinto ainda estava ali, assim, mas estava ali, a filha ainda era filha, ausente, mas era a sua filha.

Depois deste pensamento positivo, outro pensamento positivo:

- Dinheiro não é problema!

Isto é o que dá estar sozinha numa casa junto ao mar. Cisma-se, sente-se o prazer da maresia, conforta-nos o poder de estar numa casa junto ao mar, mas vem à superfície a melancolia, a vontade que temos de querer sofrer, a capacidade de juntarmos a alegria e a tristeza a dançar juntas, a consciência e a sabedoria de assim termos de viver.

- Dinheiro não é problema!? O dinheiro é sempre um problema: ou por ser pouco, ou por ser muito!

Tanto assim é que, nos próximos dias, terá que se deslocar a Vale do Ovos para resolver um assunto, relacionado com o problema do dinheiro.

domingo, 13 de julho de 2025

25 - A história dum casal de aldeões a quem calhou o euromilhões

 

Francisca identificou a origem da chamada, atendeu o telefone e teve o primeiro embate quando reconheceu a voz do Jápintas no telemóvel do Pisca-pisca. À medida que este largava as informações, sem meias palavras, num tom indecoroso, surpreendentemente autoritário, portador de direito a pedir explicações, a atirar soluções, Francisca ensabocava-se e contorcia o corpo, alternando-lhe a forma entre o ponto de exclamação e o ponto de interrogação, até que chegou ao ponto em que conseguiu libertar a fala:

- Já estás com os copos, é o que é! Não tens mais nada para fazer senão telefonares a esta hora com uma história dessas?

- Só tenho uma pergunta a fazer:

- O que é que eu faço ao homem? Estou aqui com o Pisca-pisca e ele tem a chave da tua casa. Dizendo ele que é teu pai, já que aqui não há albergue, pode lá passar a noite?

- Meu pai calma aí! Ele que durma em tua casa!

Se se tratasse duma conversa cara a cara, teria de aguentar-se ao confronto, mesmo que virasse costas, era bem provável que o interlocutor a perseguisse a mandar farpas e ganchos de chamada à razão, mas o telefone tem esta vantagem – desliga-se e pronto.

- Esta mulher tem cá um génio! – disse Jápintas de olhos nos botões do telemóvel.

Marçal interrompeu o seu silêncio de velho apático, mas com consciência de personagem principal do momento, e perguntou:

- Então? Que disse a minha filha?

Desenvolveu-se a resposta com a explicação possível. O coração social dos dois resistentes, sentindo o fim do serão, começou a falar:

- Se ao menos a estação estivesse aberta toda a noite como antigamente!...

Não iam abandonar o homem ao orvalho e ao frio, era preciso dar-lhe enxerga e agasalho em algum canto. Coube a Pisca-pisca ceder à compaixão e disponibilizar a solução mais prática: dormiria na sua garagem, no banco de trás do táxi, mas com uma porta aberta para não deixar cheiro.

Jápintas fez o programa do dia seguinte, uma viagem dos três ao palacete de praia dos dois, para um derradeiro confronto entre a verdade e a mentira. No meio de tanto dinheiro, não há de faltar dinheiro para pagar o táxi e, em último caso, para os fazer calar. Pisca-pisca não discordou porque nunca recusava um frete ou a participação num caso com potencial para ser contado. O velho Marçal Marques não disse ai nem ui, como se a sua vida estivesse entregue aos trilhos do acaso ou duma predestinação.

Enquanto esta cena decorria, ocorria uma chamada telefónica duma casa da beira atlântica, para uma casa algures no Pinhal Interior. Um casal discutia, à distância, nos mesmos maus lençóis: a mentira, que os protegia e os alimentava há algum tempo, explodira nas suas mãos. Pressentindo as ideias que à mesma hora andavam a ferver em Vale dos Ovos, os astros aconselhavam que se tomasse de urgência uma decisão. E essa decisão foi Jacinto ficar onde está e Francisca mudar-se para um hotel onde ninguém a reconhecesse ou procurasse.

Retomemos o fio da meada do dia seguinte ao regresso de Marçal Marques às suas origens e viajemos daí até à casa da praia onde, para desilusão da trempe da investida, ninguém atende no vídeo-porteiro, nem nos telemóveis de um ou de outro, apesar das repetidas tentativas do Pisca-pisca e do Jápintas, assessorados pelo silêncio ansioso do pai reaparecido. A tentativa da visita frustada causava irritação, mas só vinha confirmar que, Francisca e Jacinto ao não darem a cara, não estariam de bem com a verdade, nem com os amigos.

Poder-se-ia aceitar, pelos factos passados, que Francisca não quisesse conhecer o verdadeiro pai, mas pelo menos podia atender o telefone! O ter espetado a toda a gente a mentira que o pai era rico, não é crime e, por isso, a malta com o tempo irá perdoar aos dois. A não ser que seja crime a origem dos sinais exteriores de riqueza que vêm timidamente mostrando, sendo que, nesse caso, mais cedo que tarde, as boas polícias que temos farão o seu trabalho e nós cá estaremos para prestar informação, se tal contribuir para que se faça justiça e ajudar ao esclarecimento da verdade.

Voltaram para o Vale, de mãos a abanar, os dois comparsas, discutindo o destino que teriam de arranjar para o passageiro do banco de trás, sendo que o mais acertado seria convencê-lo, ou forçá-lo, a entrar no comboio no cais oposto de onde ontem arribou. Sendo perceptível que dinheiro não tinha, fariam uma vaquinha e pagar-lhe-iam o bilhete de volta para Santa Apolónia.

Entraram no café e informaram o Abílio dessa decisão e, seguidamente, contaram em poucas linhas os passos da sua aventura, ou melhor, da sua boa ação.

Não sabiam era ainda a surpresa que Abílio, um homem maduro, de confiança e sereno, lhes reservava.

Durante a manhã, tinha recebido uma chamada da Francisca que queria confirmar se não era brincadeira de mau gosto, essa história dum homem que aparecera a identificar-se com o nome do seu pai e, se fosse verdade, que lhe contasse o que comentavam as pessoas que reagiam ao acontecimento.

Que desse dinheiro ao suposto pai e o encomendasse para de onde veio, que não tinha qualquer interesse em vê-lo ou conhecê-lo. Pedia-lhe também que, resolvido o assunto, lhe desse conhecimento e lhe apresentasse a despesa, que a conhecia há muito como freguesa de boas contas.

Pisca-pisca e Jápintas ouviam atentamente, entre a arrelia e o espanto, as novidades do homem do balcão, quando se falou do pai, olharam para trás e viram um homem velho e maltrapilho a chorar. Ainda insistiram com o Abílio para que tentasse novo contacto, já que a eles, pelos vistos, não queria atender, mas este abanou em simultâneo a cabeça e o indicador em sinal de negação:

- Ó senhores, não perceberam o que eu disse? É assunto para encerrar e, uma vez que andam com ele, peço-vos ajuda para lhe comprarem um bilhete e o pôr a andar daqui para de onde veio!

Com papas e bolos, ao fim dumas horas, lá se conseguiu despachar no comboio o velho e desorientado Marçal e, encerrado o episódio, Abílio ligou à Francisca dando-lhe nota disso mesmo.

Com as pulsações a voltar à frequência normal, depois duma noite para esquecer, Francisca voltou à sua casa de praia.

Com o azul do mar a amparar os seus pensamentos, dava voltas à piscina abrindo o seu passado. A sua primeira memória de criança era numa instituição, nunca a trataram mal, mas nunca soube o que era um afeto ou um laço familiar. Quando teve idade para perceber que não tinha mãe porque ela morreu, aceitou. O que nunca conseguiu aceitar, quando já crescidita lhe contaram, foi que o seu pai fora um cobarde que a deixou sem ninguém no berço de nascimento. Para isso não existe perdão. Será isso que ele quer agora pedir - perdão? Quererá apenas vê-la? Quererá carinho ou afeto? Procurará ajuda ou dinheiro?

Ou terá vindo apenas, qual enviado do diabo, para destruir a história perfeita que ela e o marido tinham construído para justificar a origem do seu dinheirinho?

Pois que não restem dúvidas, que a maneira abusiva e despudorada como tratou a figura paternal nessa história, diz muito sobre a consideração que conserva por quem a enjeitou! Seja qual for a razão por que agora o suposto pai aparece, só vem confirmar que não tem vergonha na cara, sendo que, tal é tão certo como não ter dúvidas, que nem vivo nem morto, queira alguma vez ver esse homem à sua frente.

domingo, 6 de julho de 2025

24- A história dum casal que foi premiado com o euromilhões

 A humilhação foi de tal monta que, com a noite a abrir-se, o Pisca-pisca desfez-se em emoção alcóolica e dirigiu-se para o destroçado que jazia, silencioso e só, na mesa do canto:

- Estás à espera que não haja mais comboios? A estação não tarda muito fecha!

- Não saio daqui enquanto não souber da minha filha!


- Podes esperar sentado! – acrescentou o Jápintas, que chegara há uns minutos, suficientes para se ter inteirado da situação.

E dito isto, disse também para quem o quis ouvir:

- Há muito tempo que me andava a cheirar a história mal contada. Ora, se está mal contada é preciso pô-la em pratos limpos. Portanto, é assim:

Ou este homem é um impostor e não é o Marçal Marques ou a Francisca nos anda a esconder a origem da sua súbita riqueza! Primeiro era cheques que a filha lhes enviava do Luxemburgo, depois eram depósitos que o pai transferia de Brasil, e agora? Vem de onde? Chove do céu?

Abílio interrompeu:

- Não tens nada a ver com isso!  Tiveram uma ajuda que não querem revelar e agora parece que se estabeleceram lá pró litoral a fazer uns biscates aqui e acolá, afinal de contas, mais ou menos o que faziam aqui. Parece-me abuso falar em riqueza!

- Pois aí é que ela impeça! Segundo o que estes dois olhos puderam ver, não é bem num Parque de Campismo ou numa casita que estão a viver!  

Atalhou Jápintas, continuando com o relato dos encontros que recentemente vivera com o casal, lá para os lados de S. Pedro de Moel.

- E depois?! Podia andar na limpeza e apetecer-lhe mandar um mergulho! – considerou Pisca-pisca em defesa do casal que tinha como amigo.

- Nã! Nã! Essa já não pega! Eles estão a viver lá, num casarão à beira mar, e vieram-me outra vez com a fortuna do pai reaparecido! Não me vão dizer que se estavam a referir a este homem?!

Os olhos do velho Marçal brilharam com estas revelações. Afinal de contas a filha não andava longe dali.

O Abílio, farto do tema e do dia, dava os passos e movimentos que se mostram aos últimos fregueses da noite, mas não queria ser ele a preocupar-se com o desfecho pendente de encaminhamento do indefeso forasteiro.

- Vou ter de fechar a porta!

Marçal Marques ergueu-se, trémulo e lento e, enquanto tomava a direção da porta, perguntou:

- Fico a dever alguma coisa?

- Esqueça isso homem! Leve consigo este pão que sobrou e um pedaço de queijo que deve estar com fome!

Pisca-pisca e Jápintas vieram também para a rua prolongar a conversa habitual do copito a mais, hoje ainda mais justificada porque o tema era quente e, mais do que isso, pareciam dispostos a serem atores vivos deste capítulo da história.

Porque a porta do café tinha a soleira tangente à faixa de rodagem, atravessaram a rua para junto dum banco público que fica no passeio frente ao edifício da estação ferroviária. Após instantes de desencontro, Marçal aproximou-se dos dois e sentou-se a ouvir a conversa como um paciente em sofrimento que ouve os comentários da equipa médica.

Constatamos que os dois copinchas, apesar de não revelarem respeito pela figura menor do velho, abusando com o “tu”, estavam com sensibilidade suficiente para não o deixar ao relento, contrariamente ao Abílio que usando a segunda pessoa do “você”, fechou o café e a sua alma de comerciante, sem se questionar sobre o local onde o pobre diabo iria passar a noite.

- Como és o taxista deles, deves ter o número de um deles? Se não lhes ligares tu, ligo-lhes eu! A Francisca precisa de saber que o pai rico está aqui com fome e sem abrigo!

- Liga-lhe tu que eu não me atrevo a tanto! Já agora, como tenho as chaves da casa deles, pergunta-lhes se podemos lá deixar o homem a dormir.