Jacinto, sozinho em casa, mirava as chamas, incrédulo, entre gargalhadas solitárias, cigarros acesos uns nos outros, cismas e monólogos, foi à garrafa três vezes, sentiu o coração como nunca havia sentido desde o nascimento da filha, sentiu suores, medo, alegria e só não chorou porque desde mancebo assumira que isso não era coisa de homens.
- Julgo que não desconfiaram de nada, o Abílio
insinuou que eu andava a fumar sem tu saberes. Além disso, como ele sabia que
eu tinha jogado, com certeza que não viu mal nenhum em eu apontar os números.
Toma lá, vê lá se está aí o número de telefone para casos de prémios. Liga tu
que tu é que és o homem e eu nem saldo tenho no telemóvel! Eu vou confirmar
novamente a chave.
- Onde é que tens o talão?
- Já te disse que está escondido e, depois do
que fizeste há bocadinho, ainda não tenho confiança para to dar à mão!
- Ai não tens confiança na minha mão! Vê lá se
a minha mão dá com ele num sítio que eu cá sei!
- Deixa de ser ordinário!
Regressada do quarto, confirma efuziante a
sorte e depara com Jacinto de telemóvel na mão, paralisado e sem ter
feito a ligação.
- Não! Não vou ligar para um desconhecido!
Confirma-se? Mostra lá!
- Já te disse que não te dou à mão o talão! É
perigoso! Tu às vezes passas-te! Ou tens confiança em mim e resolvemos isto
juntos ou não tens e então o caso é outro e é só meu!
- Tu é que te estás a passar! Se há de ser só
dum, é meu, tu jogaste com o meu dinheiro e sem minha autorização, é meu!...
- Bom, só me faltava esta! Não é agora que nos
vamos zangar! Se não telefonas tu, telefono eu!
- Isso é que era bom! O telefone é meu! Em vez
de estares a insistir, talvez fosse melhor começarmos a pensar numa maneira de
levantarmos o prémio em segurança e sem dar nas vistas. Mas para isso tens de
ter confiança em mim e mostrar-me o bilhete que, segundo dizes, vale milhões.
- Já te disse que acertámos nos números todos,
tu tens de acreditar em mim e começar a pensar numa solução. Já que tens medo
de telefonar, que é que sugeres?
- Vamos lá pessoalmente a Lisboa, julgo que é
na Santa Casa da Misericórdia, não sei onde fica mas havemos de dar com o
sítio!
- Nem sabes onde é Lisboa quanto mais onde é a
Santa Casa! Mas pronto, isso tem solução, alugamos um táxi e ele levar-nos-á à
porta!
- Tu deves julgar que um táxi daqui para
Lisboa é barato! Imagina que chegamos lá e os tipos dizem que esse papelucho
que tens nas cuecas não vale nada ou, se tiver, que não nos entregam logo o
dinheiro? Como é que pagas ao taxista se não tens dinheiro para mandar cantar
um cego?
- Ora essa, falamos ao Pisca Pisca, ele
conhece-nos, há-de perceber que vamos poder pagar-lhe, se for preciso, a
dobrar.
- Irra que ainda não percebeste! Ninguém pode
saber que vamos ficar ricos! Então e logo o Pisca Pisca que tem uma língua de
taxista!
- Então vamos até Leiria de autocarro e
falamos com um taxista desconhecido...
- Pelos visto vou ter de repetir: não temos
dinheiro para pagar o táxi e ninguém nos vai emprestar uma quantia dessas! Além
disso, mesmo que ele não nos levasse à porta da Santa Casa e a gente inventasse
outro sítio de destino, o homem vai sempre desconfiar, um casal com o nosso
aspeto, armado em rico a viajar para Lisboa de táxi vai fazê-lo sempre concluir
– só lhes pode ter saído a sorte grande.
- Então vamos de comboio, havemos de nos
desenrascar nas agulhas e chegar a Lisboa, não?
- E vais no meio de tanto passageiro com esse
papelinho que anda a fazer de penso higiénico e que vale milhões?
- Porrinha! Mas tenho que te mostrar a passarinha para parares com essa boca?
- Não, Deus me livre de te ver a… a…. Estou
tão nervoso que até me esqueço do nome das coisas! Mostra-me mas é o papelinho
para eu acreditar que tudo isto não passa duma brincadeira para me pores a pata
em cima...
- Tens de acreditar em mim!
- E tu tens de confiar em mim!
- Queres ver que agora não vamos levantar o
prémio por problemas de transporte! Daqui a bocado ainda vais acabar a sugerir
que vamos na Sachs!...
- Estás quase a ficar tão esperta quanto eu,
parece-me boa ideia...
- Ó homem, alguma vez a motoreta chegava a
Lisboa? E a gasolina? Ias levar um bidão no suporte? Além disso, tu sabes lá o
caminho ou sabes lá entender-te naquela confusão de trânsito!
- Isso não seria o problema. Estou a
lembrar-me que Lisboa está cheia de larápios e iam roubá-la enquanto
estivéssemos a tratar do nosso assunto...
- E tu depois não tinhas dinheiro para comprar
outra...
- Não é isso mulher, depois vinhas para casa a
cavalo em quê? Em mim? E não me venhas outra vez com a ideia dos taxistas
manhosos ou das confusões dos comboios!