quinta-feira, 14 de junho de 2007

Com classe


Num T1, num quarto andar, numa varanda virada de costas para o mar. Terraços de um bairro social – anos oitenta!? – de pretensa arquitectura tradicional algarvia.

São oito e trinta da tarde, duma porta sai um jovem de traje despreocupado e andar toxicomaníaco, um homem de rugas seguras encosta à parede uma bicicleta artilhada de artefactos da pesca de bivalves.

Já vai tempo que gozávamos um mês de praia, era tanto tempo que optámos apenas pela quinzena, depois achámos que uma semana chegava bem e, este ano, optámos pelo fim-de-semana prolongado. A vida está cara e a gente já não tem pachorra para andar ali no vai e vem de estender e dobrar toalha sobre a areia. Esta classe média está a perder tudo, até a vontade de lazeirar.

Filho de mãe, mãe, pai operário, há uns anos atrás dei por mim pequeno-burguês. Velhos amigos das ruas da infância e do futebol de rua continuaram no estatuto de seus pais. A culpa foi deles, tivessem estudado e lutado como eu! A culpa foi deles que, jovens, só pensavam em haxixe e em espelhos para as motas! A culpa foi deles que, homens feitos, mudavam de emprego em emprego nunca satisfeitos com o patrão! A culpa é deles que derretem todo o dinheiro que ganham em telemóveis, arraiais e futebóis e, como se não bastasse, alguns até têm três e quatro filhos.
Eu não! Eu vivo dedicado aos meus dois filhos, não telefono a ninguém, divirto-me à noite frente à televisão e não vou em futebóis!

O egoísmo da classe média sufocou-a!

Quando os poderosos começaram a questionar o meu bem-estar, julguei-me com poder e intocável;
Quando me propuseram novas e mais tarefas acreditei que ia ser promovido;
Quando me congelaram o vencimento, conformei-me com a necessidade do momento;
Quando disseram que eu não fazia nada, pensei cá com os meus botões, estes tipos não percebem nada do meu serviço;
Quando me começaram a tirar direitos e os sindicatos decretaram greve, eu não a fiz porque sempre achei que essas acções eram coisas de operários que querem ganhar tanto como eu;
Quando me convenci que a coisa estava mesmo a dar para o torto, atirei as culpas para os sindicatos dominados pelos comunistas;

Agora não sei se não será mesmo a última vez que venho ao Algarve! O meu pai nunca passou o Alentejo! A classe média tem morte anunciada! Creio que, haja emprego, eles nunca me vão pôr ao balcão descalço, desdentado e esfomeado!
Vou manter-me caladinho e obediente para conservar o meu estatuto de funcionário; eu não quero virar um operário como o meu pai que morreu a dois meses da reforma sem nunca ter gozado férias ou sequer ter tomado um banho de água salgada.

O rapaz de traje despreocupado está-se nas tintas para a vida e para a política. O homem da bicicleta vai ter de tirar um curso de apanhador de conquilhas, os artefactos vão ter de ser licenciados, a bicicleta vai ter que se submeter a inspecções periódicas, e as conquilhas têm de ser depositadas numa câmara frigorífica com chave-selo. Acho muito bem! E o homem deve trabalhar para uma empresa devidamente credenciada!
Num terraço que tem uma espreguiçadeira deitou-se uma mulher a fazer topless.

O egoísmo da classe média está a pôr-nos loucos! Atirar-me-ia deste quarto andar se soubesse que caía direitinho sobre a espreguiçadeira do terraço que a tem!

Pensava destas o homem de cabelo grisalho, vizinho de varanda, enquanto fumava um poderoso e assassino cigarro quando eu o interrompi com um conselho:
Oh vizinho, não quer uma bejeca, não pense mais no assunto, deve ser uma operária desempregada! Ah! Ah! Ah!

3 comentários:

Savonarola disse...

O que me parece que temos cada vez mais em Portugal é aquilo que as Repúblicas das Bananas costumam ter: duas classes sociais. Os muito, muito ricos e os muito, muito pobres.

Anónimo disse...

Depois de tantas lutas quem me dera a espreguiçadeira

Pata Negra disse...

savonarola:
para não estarmos nem
dum lado nem no outro devemos estar ao lado dos mais fracos e numerosos!
abraço

pata negra
mais importante que a panela é o seu conteúdo
abraço