quarta-feira, 18 de setembro de 2013

1 - A fábrica do Cossa

O Cossa ganhou esta alcunha porque se coçava, mais por tique do que por comichão. Coçava o cabelo avantajado lavado todos os sábados, coçava a camisola de lã esburacada, coçava as canelas, a barriga, o traseiro e claro, as partes. E ficou Cossa com dois “esses” porque assim assinava lá na fábrica, nos recados de papel pardo que se postavam pelos postos, nos avisos de pincel e tinta preta que regulavam tarefas, nos baixos relevos dos riscos no cimento dos arrebates e paredes que, ano após ano, registavam o crescimento da fabriqueta.
Quando me fiz ao emprego, fui render o Cossa no trabalho do final de linha. Ele foi promovido a maquinista. Às cinco e meia da manhã ele lá estava para dar lenha à caldeira para que, às sete, quando a operação começava, houvesse vapor por todo o lado, pelos canos rotos, pelo pré-aquecimento da matéria prima, para aquecimento das cubas e, finalmente e em força, na serpentina de destilação.
Passou-me, em testamento, um carro de mão com duas rodas de pneus, adaptado ao serviço de levantar e transportar barris para a balança. Passou-me também o serviço de picar o produto ou atestar até à marca dos 250 quilos, de virar os barris com a ajuda da força, da inércia e de um cepo, de cu para o ar, de dar ar à bomba da pistola para marcar a tinta preta as iniciais da firma, o mês, o ano e o grau do pês, e para os transportar, no carro de mão de duas rodas, até ao parque de carga de onde seriam levados em camionetas, até ao cais da Matinha. Tiravam-se para aí 40, no máximo 60 barris por dia, no valor de 100 contos cada – fora a aguarrás que corria sempre em bica aberta com preço a dobrar a gasolina. Recordo-me, agarrado ao carro de mão de duas rodas, por piso incerto, com os cabrões dos barris de 250 quilos e a falar silenciosamente para eles com toda a minha força: és tu cabrão que vales 5 ordenados meus, eu vou-te entregar ao mundo!
O Cossa não me iniciou só no trabalho, o tema sexo para ele era omnipresente e, mesmo em assuntos de trabalho, não havia frase de cinco palavras sem três caralhadas pelo meio! O “já pintas”, “as mamas da patroa”, “o apalpo-te o cu”, o “a tua prima”, “as três punhetas” e “o caralho” saíam em catadupa da boca perversa do sempre erecto Cossa.
O Cossa, com vinte e tantos e ali crescendo desde a quarta classe, era o único capaz de enfrentar o patrão e mais que patrão, o dono e mais que dono, o senhor e mais que senhor, senhor António. E, no entanto, o senhor António adorava-o, até lhe pôs o nome nas listas do CDS para a Junta. Sim, porque o Cossa era muito político. Foi ele que, depois de conversas sérias e amigas que tivemos, determinou por insistência de chamada, que me começassem a chamar “o Comuna”.
O Senhor António, que tanto me considerava e me empregava acrescentando-me aos dias os descontos que eu não fazia, que me dispensava à segunda-feira por compreender os meus Domingos e saber que outro futuro me esperava, corrigia o Cossa paternalmente: Oh Cossa, o João não é comunista, é idealista!
A fábrica tinha para aí uma vintena de operários, uma centena de vidas rodando à volta dela e era, por isso, o centro da aldeia. Só emigrou quem não fazia graça ao Sr. António ou quem tinha por ambição mais do que o quase nada.
Evoluções, transformações e globalizações, trouxeram à fábrica uns compressores para a tinta, uns empilhadores para as cargas, automatismos para a caldeira, e a depressão. Já lá vão trinta anos e três donos e a fábrica funciona, agora, com um único operário: o Cossa desempenha com dedicação todas as profissões que ela precisa para operar.
Estacionei o carro, abri a porta, contemplei o tanta coisa que ainda é igual ou, pelo menos, faz lembrar, dei uns passos, e claro o vozeirão:
- Olha-me o caralho que aqui vem! …Oh comuna!... Isso é carro de comuna?!...Puta que os pariu, são todos iguais!...
E a conversa demorou por aí adiante: - Quantas dás por dia?...Tás magro! Nem cu tens!... Estou fodido! Não há meio de me ver daqui para fora! Cada vez tenho mais tesão!... Um grande abraço, és comuna mas não te esqueces da malta!
- Vai chamar comuna à tua prima! Fascista pobre!
- Comunista rico! O Senhor António já foi fazer tijolo! …Tive dois filhos!
E por aí adiante! E vamos ao café beber um copo! E bebemos dois… e bebemos três!... E já não sei se são dez horas e bebi sete se bebi dez e são sete horas! E hás-de lá passar por minha casa!...
- E, se não fosse eu, a fábrica já não trabalhava! E a China?!
- E, se não fosse a fábrica, onde é que tu trabalhavas?! E os filhos da puta do teu partido?!
E nestas trocas acesas, abraços de partir costelas e de chapadas de amizade, nos despedimos.

36 comentários:

José Lopes disse...

Haja quem não seja politicamente correcto e descreva a vida nos termos em que ela se desenvolve, com as mesmas cores e palavras que utilizamos com mais frequência do que admitimos.
Cumps

SILÊNCIO CULPADO disse...

Há experiências que nos marcam e, sem dúvida, as ligadas ao percurso profissional são das mais relevantes.Dá para perceber as grandes inversões de marcha que fizeste mas, e como muito bem disseste num dos meus blogues, uma árvore nunca perde as suas raízes. Pode mudar de lugar mas leva as raízes com ela.

Jorge P. Guedes disse...

Gostei imenso da graça e da autenticidade desta história do Cossa e do seu vernáculo.
Se um ou dois ou três copos ajudaram na narrativa, então que te embebedes mais vezes!
Que se foda o politicamente correcto!

Um abraço. Gostei mesmo!

SEMPRE disse...

às vezes é preciso dar um pontapé no cinismo e apresentarmo-nos no nosso autêntico.

NÓMADA disse...

Bom, já percebi: bebeste uns copos e partiste a loiça toda.

Maria, Flor de Lotus disse...

Não imagino sequer se esta história é ou não real.
Que está deliciosamente contada, assim com aquele ar de menino maroto que levanta as saias às meninas inocentemente no recreio da escola, para depois ter o que confessar ao pároco, lá isso está :)
De qualquer modo, eu adoraria conhecer o Cossa.
Não só porque suspeito me faria bem ao ego :) , mas porque , seguramente, ele tem muito a ensinar com suas vivências e sua sabedoria tão própria.
A sua notória riqueza interior, a sua generosidade na forma como vê o mundo e se preocupa como o seu País, com os outros, explicam-se com certeza, em parte, pela riqueza imensa que adquiriu de conhecimentos da vida que lhe permitem agora avaliá-la com o olhar tão singular e extraordinário que todos reconhecemos em si.
Permita-me contudo discordar de si num ponto (não podemos estar sempre de acordo ...)
:)
: a ser verdade a história, essas não são as raízes da sua árvore.
São circunstâncias de tempo e lugar em que a sua árvore cresceu.
As suas bases, ou raízes, estão mais fundo, nos seus valores , nas suas capacidades, nas suas características pessoais intrínsecas que o fizeram vencedor, que lhe permitiram alterar as suas circunstâncias , criar diversas circunstâncias e ainda assim , guardar dentro de si essa ternura que aqui demonstrou pelo Cossa.
Nada admira pois que SOBRE ESSAS RAÍZES CRIASSE UM REINO !
Um beijinho sempre amigo da
Maria

Anónimo disse...

É destes teus posts que eu mais gosto. O João Rato no seu melhor!
Se a fábrica dá prosas destas, imaginem o seminário ou os tempos do conjunto musical, ou os de Coimbra ou...
Este joão Rato é um Ratatui «na vida».
zerui

Rui Caetano disse...

Uma história inquietante, mas muito bem escrita e excelentemente bem contada.

carlos filipe disse...

Pata Negra, Pata Negra
que bem que sabes contar
essa história do tal Cossa
a mim quase me fez chorar.

Pata Negra, Pata Negra
que vontade de gritar
por essa história de vida
que tem muito que contar.

Pata Negra, Pata Negra,
continua a praguejar
com os palavrões que sabes
em bom português chamar.

Pata Negra, Pata Negra,
só tu me fazes pensar.

quintarantino disse...

O quão desejoso eu andava por no final de uma história a cheirar a neo-realismo por todos os poros um sonoro e real. "C'um caralho"!
Desculpe... mas aqui pelo Norte eles saem assim naturalmente.

Watchdog disse...

Epá, gostei muito! Continua a beber!
Não, agora a sério, já aqui referiram nos comentários a autencidade da história, eu alinho pelo mesmo diapasão.
És caso (positivo) raro na blogosfera.

Parabéns e um abraço!

Abrenúncio disse...

Crónicas de uma Sexta para Sábado. Mas esse tal Cossa faz-me lembrar também alguém que já conheço há mais de 20 anos. O mesmo calibre, sempre igual a si próprio, sem aderir a modas e modos.
Saudações do Marreta.

Savonarola disse...

Belos momentos esses. No entanto, o operariado parece estar em vias de extinção hoje em dia. Quem manda actualmente são as máquinas e, sobretudo, a máquina do poder político-económico.
Um abraço solidário

Anónimo disse...

Pata Negra, já vi 'a coisa' ... são NNNNNNNNNNN! Porque será que as pessoas não dão crédito a quem por direito???
Há que passar a ideia. Estou a tratar disso.

SILÊNCIO CULPADO disse...

Olá, Pata Negra!
Quando publicares um livro quero um autografado.

carlos filipe disse...

Pata Negra, Pata Negra
está na hora de mudar
porque de tanto ver "Cossa"
já começo a enjoar.

Pata Negra, Pata Negra
fazes falta p´ra lutar
por isso toca a escrever
para quando eu regressar.

Anónimo disse...

Com três copos e uma imaginação fértil escreves um livro.
Essa do "apalpo-te o cu" e "a tua prima" até rima.
Se é uma história real já comeste o pão que o diabo amassou.
Até sempre.

Tiago R Cardoso disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Tiago R Cardoso disse...

desconhecia esta historia, reparei que os comentários são antigos.

No entanto gostei da linguagem sem barreiras, sem ela a historia não seria de pessoas.

muito bem.

Anónimo disse...

esta não tinha lido, mas o Cossa é pau para toda a obra...
abraço

antonio ganhão disse...

Seminário? Bem isso sim, o Pata à solta nas suas memórias, seria o máximo!

O Cossa está bem apanhado e é um resistente, à nossa modernização, à globalização, ao stress, à nossa falta de cu!

Anónimo disse...

Cabrão do Cossa! À pala dele vou seguir mais uma história.
Agora não te ponhas tu a "cossá-los"!

Anónimo disse...

Então vai ter continuação, como "O Quarto"?!
Vou estar atento, e espero que o Virgolino não apareça na história...

Saudações do Marreta.

Anónimo disse...

... Na altura eu estava giro (menos idoso, devia andar pelos 101), e a minha cabeçorra aparecia na fotografia.

samuel disse...

Venham os desenvolvimentos, ou episódios... ou o que for, mas venham!

Abraço

SILÊNCIO CULPADO disse...

Pata Negra
Comecei a ler e a história a ser recordada. Lembro-me dos passos que dei por aqui. As tuas histórias falam-me da vida não esta que se fabrica digitalmente, mas a outra a vivida e transportada.
Espero que contes mais sobre estes meandros recheados de episódios.

Abraço

Jorge P. Guedes disse...

Gostei, pá.
Tenho uma sensação de já ter lido aqui um texto sobre o Cossa.
Narrativa dura e crua, mas de verdades feita, como a vida decerto te ensinou nesses tempos.

O Senhor António tinha razão.
Um abraço, King.

j. manuel cordeiro disse...

Boa!Vou seguir com prazer antecipado.

Camolas disse...

Apresentaste muitíssimo bem as estranhas "virtudes" do Cossa, o anjo e o diabo dentro de nós.
Bellíssimo!!!!!

Zorze disse...

Como diria o Cossa, deixa-te lá de paneleirices e anda lá com essa merda prá frente, caralho!

Abraço,
Zorze

Anónimo disse...

Viva o Cossa.
Vamos ter mais um história da vida real.

Anónimo disse...

Que robustos e resistentes os jovens de antigamente.Trabalhar e pertencer a famílias pobres não é desprezo nenhum. Gosto de pessoas que admitam e não se envergonhem de falar das suas vivências.Pois concerteza muitos dos amigos que por aqui andam viveram estes tempos difícies uns de uma maneira outros de outra. Parabéns pelo teu caracter, pela tua inteligência, pois apesar de viveres uns tempos rudes, demonstras ser um grande homem.( Melhor dizendo um grande REI). Um abraço cheio de recordações
Luis

Anónimo disse...

Gostava de escrever assim. Parabens.

Judite Castro disse...

Bem-vindo, apesar da baralhada das datas... até parece um quebra cabeças para organizarmos
:)

Sérgio Ribeiro disse...

De... antologia. De bem escrever, de bem contar a vida e as gentes que a vivem.

SAbraços para os dois... e para o Cossas

jrd disse...

Ler, reler e continuar.
Excelente!