quinta-feira, 3 de janeiro de 2008

Os meus ténis Sanjo

- Olha, tenho ali no carro as fotografias!
- Desculpa, não me lembro de ti! Quais fotografias!?
- Tu não és o organista que tocas descalço?!
O interlocutor era, pelo todo, filho de emigrantes que viera ao novo Agosto e que se abeirara da minha mesa de café pela hospitalidade que ela sempre emanava. Circunspectos ficaram também os meus companheiros de rodada, pela humildade do desconhecido que mandara vir mais uma, pela história do “eu descalçadinho” e, ainda mais, pela prova fotográfica que, depois de volta e meia à rua e ao carro, o fã ali trouxe. Passaram de mão e mão as fotos, provocando gargalhadas, o “olha aqui!”, o “lembras-te desta?”, o “que é feito desta?”, olha a Gibson! Porque diabo trocaram vocês a Gibson pela Fender e porque diabo estavas tu a tocar descalço?!
Tinha acontecido só naquele dia. Eu calçava os meus ténis brancos “sanjo” de verão, sujos e rotos, não sei se por desleixo, penúria, estilo, marca, mania ou ideologia – talvez fosse por estas coisas todas juntas! Eu tocava sentado e entretido e, na boca do palco, vieram sentar-se umas miúdas que trocavam os olhares entre o baile, entre si e para mim. Os meus pés, que eu não via porque estavam sob os teclados, estavam a escassos centímetros dos rabos das moças. Eram, de certeza, de Lisboa e andavam por ali a passar as férias grandes, bem vestidas, asseadas, divertidas, dentes brancos de sorrisos de fazer estremecer qualquer artista de província que arranhasse rhythm and blues e rock'n'roll. Eu não tinha vergonha, muito pelo contrário, sentia até orgulho dos meus ténis mas, naquele momento, senti-me traído por eles, eles não estavam à altura do que a coisa prometia. O fim-de-série era sempre ao fim de três ou quatro músicas, para a banda descansar, o bar trabalhar e a malta trocar as necessárias palavras. Fui atrás das colunas e descalcei-me. Actuei e andei o resto da noite descalço, fiquei nas fotos da noite descalço, as miúdas não conheceram os meus ténis sanjo mas também não me recordo de terem sido seduzidas pelos meus pés descalços. Mas também não são as meninas de Lisboa que vem aqui à história, a história pretende apenas revelar o momento em que eu estive mais próximo do sucesso: um desconhecido, fotografias, a marca descalço…eu tinha de abandonar definitivamente o palco!
Talvez as meninas sejam mesmo a razão da história:
- Ei! Computadores aí! Internet aí! Alguma das meninas citadas está a ler esta crónica e se recorda de um organista que tocava descalço?! É que eu não sou maluco! Eu sou como as outras pessoas e calço 43!
- Ah! Já tem 43 e quase netos! Pronto, fica para a próxima!

16 comentários:

José Lopes disse...

Caramba. Mais um que também tocou órgão, só que descalço, o que não me dava jeito nenhum com a pedaleira do meu Farfisa. E as garotas? Seráque nem levaram uma cantada? Como mudaram os tempos É que eu já tenho netos e já com 9 e 10 anos...eheheh.
Cumps

SILÊNCIO CULPADO disse...

Pois, Pata Negra, eu não sou nenhuma das garotas de então.E ainda bem que não. Porque com músicos não me dou.
Sempre fui uma negação musical.
Quanto a netos...já tenho um com 20 meses.
Um abraço não musical.

Pata Negra disse...

Guardião,
Confesso que não gostava do som Farfisa e que as garotas não iam muito nna cantiga dos meus excessos, talvez por isso ainda tenha os filhos com a idade dos teus netos...eheheh!
Um abraço dos pequenos palcos

Pata Negra disse...

Silêncio,
não acredito!
Não aprecio a forma "gosto de toda a música" só comparável à de "não gosto de músicos"!
Não acredito!... Silêncio mas não tanto!
Um abraço dó ré mi

carlos filipe disse...

Pata Negra, Pata Negra
cá estou eu a versejar
gosto mais de ti descalço que no tapete a for..car.

Pata Negra, Pata Negra
já que a borrasca passou
o melhor que tens a fazer
é visitar quem visitou.

E esta hein?

SILÊNCIO CULPADO disse...

Pata Negra
Esclareça-se o mal entendido. A música comove-me, transporta-me e sei lá o quê mais. Quem não gosta de música não tem alma. A música é a referência dos sítios por onde passamos.Das coisas que amamos.O que eu me referia era aos músicos que tocam instrumentos.
Sabes, quando eu era miúda os meus pais puseram-me no piano. A professora disse que nunca tinha passado ninguém por lá com menos jeito. Bom tinha muitas histórias sobre músicos a acabar em alguém com quem estive casada.
E o meu gosto musical também é duvidoso. Gosto da ópera "O trovador" e também de alguma música pimba que me comova.
Um abraço não musical

Anónimo disse...

Doré. Mi. Fá Sol lá? Si!
É a história de dois irmãos. o Doré e o Mi. Tinham posto o milho a secar na eira e o Doré, ocupado noutras lides, perguntava ao Mi se o Sol ainda batia na eira. São histórias de antigamente, de quando ainda havia eiras, descamisadas, varas para varejar a azeitona, alambiques para cada agricultor fabricar a sua aguardente, etc...e NÃO HAVIA uma coisa chamada Asae, que começou por parecer útil e depois indesejável, pelo seu comportamento fundamentalista.
Mas vamos lá falar dos pezitos descalços aqui do nosso herói. Pela descrição dos ténis, com aquele aspecto repelente que Sua Alteza assume terem, será que os pezitos não estavam,também eles, a pedir uma boa ensaboadela? Será que o odor que eles «emanavam» era, digamos, agradável? Não será por isso que ele levou uma "tampa" das meninas de Lisboa?
Deixo estas dúvidas à consideração de Sua Majestade e também à dos muitos, muito lúcidos cidadãos, que aqui vêm habitualmente dizer de sua justiça.
Cumprimentos

Jorge P. Guedes disse...

Garanto não ser eu nenhuma das garotas!

Mas que estiveste à beira do sucesso, acredito! Ai, e os pés tão perto daqueles rabos de moças limpinhas... e de Lisboa...

Muito divertida esta forma de contar histórias de um Pata Negra, sim senhor!

Um abraço.

quintarantino disse...

Ó amigo e então ali com os rabiosques tão perto, era só encostar o pézinho... vai-me a ver o seu insucesso com as garotas foi por não ter seguido a música... "ponha aqui o seu pézinho, devagar, devagarinho..."... gostei de o ver um "sanjista"...

Compadre Alentejano disse...

Na minha turma do 1º ano (hoje 5º ano) fui a negação musical. Não destrinçava as notas e só as complicava ainda mais. Vejo que foste um grande músico, parabéns.
Visita o Marreta, e vê se podes ir ao encontro.
Um abraço
Compadre Alentejano

SEMPRE disse...

Pata Negra
A revolta é necessária para construir e não para destruir. A revolta é necessária para que ninguém mais necessite de tirar os sapatos. A revolta não é necessária para alimentar amarguras.
Dá-me a tua mão e vamos dançar. Talvez ainda saibas tocar aquela música.

SEMPRE disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
NÓMADA disse...

Pata Negra
Há ténis que valem por toda uma vida. Tanto que nunca os esquecemos por mais ténis que se tenham e até de marcas melhores que a Sanjo.
Mas acho que te desforraste bem. Tens ar de malandreco. Malandreco e mau-feitio. Mas bom tipo. E genuíno. O que me terá dado para me armar em psicóloga? Olha que se há duas coisas para as quais não tenho geito, uma é a música e a outra a psicologia.
Um abraço musicado

MARIA disse...

Majestade,
Não seriam certamente uns tenis que afastariam de si as tais meninas de Lisboa ou de qualquer outra zona boa...
Nunca se esqueça porém que sobre esses seus pés que daqui vejo, ergueu Vª Majestade um Reino...
Isto para dizer que quando a matéria tem qualidade, dispensa qualquer revestimento.
Continue a tocar descalço.
Um beijinho amigo
Maria

Pata Negra disse...

A mente humana é terrível, moças para aqui, música para acolá, palco para cima, rei para baixo - e ninguém se lembrou de me oferecer ao menos um par de sapatos agora que recebi do Menino um par de meias sem berlicoques!...
Abraços à companhia dos pés descalços

Abrenúncio disse...

Compreendo-te, compreendo-te, também tive dois Sanjo, uns pretos bota e uns brancos rasteirinhos.
Quando tocava bateria optava pelos chinelos.
Saudações do Marreta.