Éramos para aí uns trinta rapazes e era 1972. Tínhamos acabado de agradecer ao Senhor o jantar e o padre superior fez questão de deixar mais umas palavras:
- Amigos, soube hoje que dois de vós cometeram um acto indigno de quem é temente a Deus. Espero que se redimam e que se confessem, o mais rapidamente possível, a fim de ficarem em paz com o Senhor.
Estranhei o facto de alguém ter posto a boca na botija sem ter chegado ao meu conhecimento.
Já com a malta a sair do refeitório ouvi dum camarada - está a chamar-te, a ti e ao Bastos!
- Venham comigo!
Atravessámos a cozinha, descemos pelo elevador até à penumbra da cave, passámos pela zona das caldeiras, corremos o corredor até à garagem. O padre à frente e atrás eu e o Bastos trocando expressões interrogativas. A que prestimosa tarefa nos chamaria o padre? O passeio começou a perder graça quando nos mandou entrar no Mini. Eu sentei-me no banco traseiro e o Bastos no pendura. Eu ia de olho na mão das mudanças, sempre a topar se ela se arriscava na perninha do meu amigo, só um motivo desses, ou pior, poderia justificar tão enigmático convite nocturno a moços tão pacatos como nós.
- Sabem que os meninos que cometem actos feios devem ser castigados?
Mau! Mau! Afinal fizemos merda! Foi a merda do Gomes que bufou! Só pode ter sido isso! À medida que a coisa ia azedando ia ficando mais clara. O caso era o seguinte:
No caminho para a escola vimos estacionada uma camioneta carregada de grades de tangerinas, tirámos duas cada um e o Gomes disse que não queria. Nunca me passou pela cabeça que aquilo era “um acto indigno”, logo a mim que nasci a roubar fruta das quintas e quintais, protegido pela astúcia e pela lei de que “roubar para comer não é pecado”.
- É normal, em comunidade, se alguém rouba alguma coisa a alguém deve ser punido por isso!
A meio da Calçada do Bravo cortámos à direita. De tantos em tantos quilómetros o condutor largava uma deixa do género, sem nunca se ter referido a nós os dois e sem nunca questionar o nosso silêncio ou olhar para apreciar o nosso ar acagaçado. O Bastos nunca se virou para trás mas sentia-se a comunhão de pensamentos.
A que espécie de castigo nos levava o padre justiçoso? Seria aquele o caminho para a prisão das crianças? Nem nos deixou despedir da malta! E quando os meus pais soubessem da detenção?
Mais um corte à direita, Martinela, nunca ouvi falar em tal terra, é uma aldeia, tem uma capela, parámos.
- Hoje trago aqui uns rapazes lá da casa para ajudar à missa.
Tremia com as galhetas, sempre à espera que caíssem no altar, temia estar a pensar noutra coisa no momento do toque da sineta mas, ajudar à missa, era uma penitência adequada ao “acto indigno”.
No final do Santo Sacrifício algumas pessoas vieram dar umas moedas aos acólitos. Regressámos à cidade, durante o caminho não se ouviu palavra. O caso foi encerrado. Nunca mais mostrei os dentes ao padre e comecei a gostar ainda mais de tangerinas. Passados tantos anos gostava de encontrar o padre para lhe atirar à cara as crises de fígado que tenho por abusar de tangerinas.
- Amigos, soube hoje que dois de vós cometeram um acto indigno de quem é temente a Deus. Espero que se redimam e que se confessem, o mais rapidamente possível, a fim de ficarem em paz com o Senhor.
Estranhei o facto de alguém ter posto a boca na botija sem ter chegado ao meu conhecimento.
Já com a malta a sair do refeitório ouvi dum camarada - está a chamar-te, a ti e ao Bastos!
- Venham comigo!
Atravessámos a cozinha, descemos pelo elevador até à penumbra da cave, passámos pela zona das caldeiras, corremos o corredor até à garagem. O padre à frente e atrás eu e o Bastos trocando expressões interrogativas. A que prestimosa tarefa nos chamaria o padre? O passeio começou a perder graça quando nos mandou entrar no Mini. Eu sentei-me no banco traseiro e o Bastos no pendura. Eu ia de olho na mão das mudanças, sempre a topar se ela se arriscava na perninha do meu amigo, só um motivo desses, ou pior, poderia justificar tão enigmático convite nocturno a moços tão pacatos como nós.
- Sabem que os meninos que cometem actos feios devem ser castigados?
Mau! Mau! Afinal fizemos merda! Foi a merda do Gomes que bufou! Só pode ter sido isso! À medida que a coisa ia azedando ia ficando mais clara. O caso era o seguinte:
No caminho para a escola vimos estacionada uma camioneta carregada de grades de tangerinas, tirámos duas cada um e o Gomes disse que não queria. Nunca me passou pela cabeça que aquilo era “um acto indigno”, logo a mim que nasci a roubar fruta das quintas e quintais, protegido pela astúcia e pela lei de que “roubar para comer não é pecado”.
- É normal, em comunidade, se alguém rouba alguma coisa a alguém deve ser punido por isso!
A meio da Calçada do Bravo cortámos à direita. De tantos em tantos quilómetros o condutor largava uma deixa do género, sem nunca se ter referido a nós os dois e sem nunca questionar o nosso silêncio ou olhar para apreciar o nosso ar acagaçado. O Bastos nunca se virou para trás mas sentia-se a comunhão de pensamentos.
A que espécie de castigo nos levava o padre justiçoso? Seria aquele o caminho para a prisão das crianças? Nem nos deixou despedir da malta! E quando os meus pais soubessem da detenção?
Mais um corte à direita, Martinela, nunca ouvi falar em tal terra, é uma aldeia, tem uma capela, parámos.
- Hoje trago aqui uns rapazes lá da casa para ajudar à missa.
Tremia com as galhetas, sempre à espera que caíssem no altar, temia estar a pensar noutra coisa no momento do toque da sineta mas, ajudar à missa, era uma penitência adequada ao “acto indigno”.
No final do Santo Sacrifício algumas pessoas vieram dar umas moedas aos acólitos. Regressámos à cidade, durante o caminho não se ouviu palavra. O caso foi encerrado. Nunca mais mostrei os dentes ao padre e comecei a gostar ainda mais de tangerinas. Passados tantos anos gostava de encontrar o padre para lhe atirar à cara as crises de fígado que tenho por abusar de tangerinas.
28 comentários:
Uma viagem daquelas num stress daqueles dá cabo de qualquer estômago. Mais que as tangerinas...
Ai o caraças do padre! Então era assim que ele arranjava os acólitos e vocês as cólicas! Vocês roubaram tangerinas e o tipo, criancinhas, isso foi quase um santo rapto! Estou a ver que desconfias de tipos de saias, a ver se ele punha a mãozinha na fruta do amigo. Perdia logo a razão!
E na missa não viraste o cálice sagrado? Pinga da boa, que os padres tratam-se bem!
Quando era pequena, o que eu gostava de andar à chinchada, até parecia que a fruta sabia melhor!
Bom Domingo! (vais à missa? ou ficas a comer tangerinas?)
As tangerinas e as dores de barriga servem-se no prazer de recordar um castigo delicioso.
Quanta fruta roubei eu também! Infelizmente, sempre passei impune. Não tive a tua sorte, ó Pata Negra!
Pata Negra, Pata Negra
que bem que fazes lembrar
que existe muita criança
que a fruta tem que roubar
e padres de má lembrança,
sempre a falar do altar,
em cujas casas há festança
e devotas p´ra galar.
Pata Negra, Pata Negra
caridade e punição
de quem tem poder na mão
tem que deixar de ser regra.
Todos temos coração
e vontade de ser gente
e para ser penitente
já nos basta a condição
de ser pobre e inocente
no mundo onde a razão
já não é p´ra toda a gente
uns podem tudo, outros não!
Pata Negra, Pata Negra
temos que nos revoltar
tu vais perder a colite
e eu vou de tanjas gostar.
Pata Negra, Pata Negra
temos que nos revoltar.
o PADRE DEVE TER ENCONTRADO EMPREGO NA ASAE...
ABRAÇO DO ZÉ
O padreco era um sádico: o que ele gozou com o susto que pregou aos miudos! E se os miudos chegassem a padres havia fortes hipóteses de terem, também eles, uma tara qualquer.
Felizmente, para a Humanidade, que Sua Alteza arrepiou caminho e fugiu a tempo. E assim aqui temos um muito bom contador de histórias.
Alberto Cardoso
As tuas crises de fígado são castigo do Senhor...
1 Abraço!
Olha se a moda pega!
Era missa a toda a hora no Terreiro do Paço!!!!!
E o Gomes, levou o vosso correctivo ou não foi ele o bufo de serviço?
Vai uma tangerininha? Ahahahah!...
Abraço.
O belissímo texto que descreves, eu imagino-o quase como se o tivesse vivido.Conheci filmes parecidos com esse.
Vivam as tangerinas mesmo que façam mal ao fígado.
Um abraço não religioso
O meu avô tinha uma horta, mas a fruta que me sabia melhor, era a que roubava à noite pelos quintais, mesmo verde marchava...
Um abraço
Compadre Alentejano
Abaixo os padrecos!
Eu em miúda não resistia aos figos da figueira do vizinho.
Também "assaltava" tudo quanto era jardim para colher pelo menos uma florzinha. Ainda apanhei alguns sustos...
Também gosto muito de tangerinas.
A próxima vez que as coma guardarei para mandar ao Rei o gominho mais doce.
Esta história além do prazer da leitura remete-nos à reflexão sobre essa questão que muito bem colocou : "roubar para comer não é pecado" e também não deveria ser objecto de processo em Tribunal...
ou deveria ?
Tem sido muito debatida em particular no que respeita a pequenos furtos em supermercados - o moldavo que furta umas fatias de fiambre ou bacon e um pão, umas peras, ou ... umas apetitosas tangerinas...
A mim choca-me que alguém seja punido por ter fome ou até mesmo ... vontade de comer...
Um beijinho amigo com cheirinho a tangerina para todo o reino.
Maria
No meu tempo os bufos não perdiam pela demora.
Venham as tangerinas, porque dessas eu gosto.
Cumps
Sempre achei que padres e tangerinas não rimam. Mas continuo a preferir as tangerinas. Pena serem cor-de-laranja...
Saudações do Marreta.
Quando fizermos a tal revolução não vamos deixar os bufos e os padrecos juntarem-se a nós.
Quando fizermos a tal revolução não vamos deixar os bufos e os padrecos juntarem-se a nós.
Quando fizermos a tal revolução não vamos deixar os bufos e os padrecos juntarem-se a nós.
Quando fizermos a tal revolução não vamos deixar os bufos e os padrecos juntarem-se a nós.
As tangerinas são sagradas os padrecos não.
Também gosto de tangerinas e também me dão colite. Acho que ninguém tem direito a ter que roubar para comer. Antes de roubar deve-se sempre equacionar outras alternativas. Mas se não houver....
Um abraço não beato
És um bom contador de estórias e em todas elas te revelas o puto vivo e revoltado contra os opressores. Já não és puto mas carregas isso contigo.
Nada de bufos nem de padrecos nem de quem os apoia. Vivam as tangerinas e quem as surripia. Viva o texto de sua Majestade!
Eu existo para lembrar que há quem sofra, e que há injustiças. Não me esqueças.
Deixa as tangerinas que já comeste muitas. Posta lá outra gracinha.
Vim comer um gomo da tangerina, das roubadas, claro!
Venho solicitar a tua solidariedade para a situação das pessoas infectadas com HIV. Por favor vê o blogue Moendo Café http://moendocafe.blogspot.com (que é meu) e o Sidadania e se estiveres afim contacta-me para lnsoares@aeiou.pt
Abraço
Agora percebo de onde vem a colite do Rei.
Com que então roubar tangerinas e marmelos, não.
Viva o Rei
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