Tinha de regressar a Portugal, não suportava mais as saudades da mulher e dos dois pequeninos.
- Vou amanhã! Podes pagar o que me deves?
- Este rádio serve?
Além do fogão passámos também a ter rádio. A minha mãe era uma devota do aparelho. O rádio tem um aspecto bem francês e, na altura, o seu design dava um ar de modernidade à casa. A minha imaginação de pequenino, por vezes, punha-se a divagar sobre o que se passaria no seu interior oculto, fartava-me de espreitar pela grelha de ventilação, parecia-me ver uns bonequitos em miniatura, insisti bastante mas nunca consegui autorização para abrir a caixa e desvendar os seus mistérios humanóides.
Era difícil a Guarda (Grande Ninhada de Ratos) surpreender, ainda vinham a léguas a jusante, multando aqui e ali pelas duas razões de sempre - por tudo e por nada – e já um qualquer voluntário mensageiro trouxera à aldeia o “toque de esconder”. Nas tabernas, nos pátios, nas casas e em outros sítios haveria sempre alguma coisa para disfarçar ou para esconder.
- João, leva o rádio daqui, vai ao talho de baixo e esconde-o no milheiral.
Não me recordo de haver tempo ou expressões para porquês, devo ter tido uma revelação súbita de consciência política. Quando o par de fardas armado passou à minha porta, a minha mãe fez de conta que mexia uns feijões que secavam ao sol em cima de uma manta, eu fiquei, firme e vertical, na berma do caminho, como quem assiste a um desfile militar, e era! Eles nem sequer dispensaram o olhar à minha criança.
Um rádio destes tinha de continuar, sempre vivo, no espólio da família. Há mais de quarenta anos que não se cala, os Parodiantes de Lisboa, o Badaró, o Simplesmente Maria (Olá Maria – esta é para ti!), as canções de Abril, os noticiários do PREC e os tempos de Antena da AOC (Aliança Operária e Camponesa), o Rock em Stock, o Oceano Pacífico, o Café Concerto, um rádio que acompanha a história sem RAM, sem ROM, sem disco rígido, sem memória – é na ausência de memória e na sua dimensão temporal que reside a sua grandeza.
Só esta grandeza tem permitido que eu, de vez em quando, durma dentro do meu rádio afrancesado que me calhou em sortes (Olá senhor Doutor Alberto Cardoso – obviamente que quem consegue dormir dentro do seu rádio não precisa de tratamento com nenhuns comprimidos!). Costumo deitar-me no primeiro andar de amplificação, com a cabecinha radiouvinte recostada num condensador electrolítico de 15 microfarads e com os pés sobre uma resistência da ordem dos mega. Antes de me deitar desligo os terminais do altifalante e adormeço a ouvir o som directamente do transístor bipolar BC548.
Viva o meu rádio que muda de pilhas de seis em seis meses que diz o que outros dizem que toca todas as músicas que é meu por herança que não tem memória e que faz com que as pessoas pensem que eu estou maluco por não ligar às vírgulas. Maluco eu? Maluco só se for pelo meu rádio!
- Vou amanhã! Podes pagar o que me deves?
- Este rádio serve?
Além do fogão passámos também a ter rádio. A minha mãe era uma devota do aparelho. O rádio tem um aspecto bem francês e, na altura, o seu design dava um ar de modernidade à casa. A minha imaginação de pequenino, por vezes, punha-se a divagar sobre o que se passaria no seu interior oculto, fartava-me de espreitar pela grelha de ventilação, parecia-me ver uns bonequitos em miniatura, insisti bastante mas nunca consegui autorização para abrir a caixa e desvendar os seus mistérios humanóides.
Era difícil a Guarda (Grande Ninhada de Ratos) surpreender, ainda vinham a léguas a jusante, multando aqui e ali pelas duas razões de sempre - por tudo e por nada – e já um qualquer voluntário mensageiro trouxera à aldeia o “toque de esconder”. Nas tabernas, nos pátios, nas casas e em outros sítios haveria sempre alguma coisa para disfarçar ou para esconder.
- João, leva o rádio daqui, vai ao talho de baixo e esconde-o no milheiral.
Não me recordo de haver tempo ou expressões para porquês, devo ter tido uma revelação súbita de consciência política. Quando o par de fardas armado passou à minha porta, a minha mãe fez de conta que mexia uns feijões que secavam ao sol em cima de uma manta, eu fiquei, firme e vertical, na berma do caminho, como quem assiste a um desfile militar, e era! Eles nem sequer dispensaram o olhar à minha criança.
Um rádio destes tinha de continuar, sempre vivo, no espólio da família. Há mais de quarenta anos que não se cala, os Parodiantes de Lisboa, o Badaró, o Simplesmente Maria (Olá Maria – esta é para ti!), as canções de Abril, os noticiários do PREC e os tempos de Antena da AOC (Aliança Operária e Camponesa), o Rock em Stock, o Oceano Pacífico, o Café Concerto, um rádio que acompanha a história sem RAM, sem ROM, sem disco rígido, sem memória – é na ausência de memória e na sua dimensão temporal que reside a sua grandeza.
Só esta grandeza tem permitido que eu, de vez em quando, durma dentro do meu rádio afrancesado que me calhou em sortes (Olá senhor Doutor Alberto Cardoso – obviamente que quem consegue dormir dentro do seu rádio não precisa de tratamento com nenhuns comprimidos!). Costumo deitar-me no primeiro andar de amplificação, com a cabecinha radiouvinte recostada num condensador electrolítico de 15 microfarads e com os pés sobre uma resistência da ordem dos mega. Antes de me deitar desligo os terminais do altifalante e adormeço a ouvir o som directamente do transístor bipolar BC548.
Viva o meu rádio que muda de pilhas de seis em seis meses que diz o que outros dizem que toca todas as músicas que é meu por herança que não tem memória e que faz com que as pessoas pensem que eu estou maluco por não ligar às vírgulas. Maluco eu? Maluco só se for pelo meu rádio!
14 comentários:
Majestade, que texto lindo.
Sabe, a primeira televisão que tive foi-me oferecida pelo meu pai, ainda a preto e branco.
À noite, quando fiquei a sós com ela no quarto, abri-a procurando os bonecos animados, nem sei bem se procuraria alguém. Talvez o "dono" da música e das "flores".
Depois fiquei muito triste com o interior cheio de fios e o que me pareceu algodão. Mais ainda porque no dia seguinte deixou de me dar música e bonecos. Mas ainda a guardo também.
Como vê partilho consigo dessa espécie deliciosa de loucura que nos relembra o quão caros são os verdadeiros afectos que marcaram as nossas vidas.
Majestade, não será muito confortável dormir no seu rádio, mas posso lá ir dançar consigo a valsa dos sonhos ?
:-)
Um beijinho amigo
da
Maria ( também para N. Alberto :-)
Não guardei o rádio velhinho lá de casa, não cabia na mala com que retornei, com os 20 Kg de bagagem, mas recordo-me bem que tinha uma série de teclas brancas, e o que mais me impressionava era uma janelinha iluminada, com umas cortinas verdes que abriam, quando as vávulas já estavam quentes e o rádio se encontrava bem sintonizado. Era eléctrico, mas também funcionava com uma bateria bem grandinha, daquelas que já não há, porque a electricidade falhava muito nessa época.
Boas memórias...
Abraço do Zé
Majestade.
Vossa Alteza Real tem mil razões para me mandar fuzilar! É que eu encontrei uns falsos amigos que me obrigaram (vá lá, convenceram, isto é, convidaram)a beber umas cervejolas com uns tremoços e uns amendoins. Mas abusei. Foi tal a bebedeira que me esqueci de tomar os comprimidos e quando isso acontece perco o controlo, faço e digo coisas disparatadas, chego a ofender as pessoas, até as que admiro. Uma lástima!
Agora, passada a crise, estou em condições de apreciar os textos, o anterior e este, que Sua Alteza quis partilhar connosco. São excelentes. Estou a repetir-me quando digo que Sua Majestade tem um jeito único para contar histórias. Coisas comezinhas narradas por Sua Alteza passam a acontecimentos importantes. Atrevo-me a fazer-lhe uma sugestão que também é um pedido: guarde todas as pequenas/grandes histórias que vai escrevendo. Um dia, quem sabe, poderá ter o prazer de as ver estampadas num livro que muitos apreciarão.
O seu servo,
Alberto Cardoso
P.S. Peço autorização a Sua Alteza Real para usar este espaço para, carinhosamente, retribuir à Maria, cúmplice da nossa cumplicidade, o beijinho amigo que acima me ofereceu. E que bem que me soube...
A.C.
Brilhante, muito bem.
Foi a mais bela homenagem ao "rádio" e à RÁDIO que eu me lembro de ter alguma vez lido ou ouvido.
Clap, clap, clap de um também maníaco radiofónico.
Saudações eterizadas do Marreta.
É quando os objectos carregam neles memórias, afectos, cheiros e vozes antigas, que passam para lá do estatuto de coisas. Neste caso, não se pode estranhar, nem condenar, que alguém "ame" um rádio como tu amas o teu. :-)
Eu tenho lá por casa roupa velhinha, esfiapada até, que não deito fora por nada deste mundo. É que ainda me lembro dos bons tempos que passei com ela vestida.
Abraço
Nice =D
Nesse ainda não havia a minha voz =P
Bela homenagem =D
Boa tarde.
O sue blogue está nomeado para o prémio Cegueira Lusa referente ao mês de Junho de 2008.
Cumprimentos,
JOsé Carreira
(www.cegueiralusa.com)
Bons tempso esses em que se amava umn rádio. Agora já nada tem valor.
Bjs
Pata Negra
Sei do que falas. Desse encantamento grandioso dum rádio e depois da TV e de todas essas coisas que tinham força afectiva e que desafiavam os tempos de ditadura.
Agora temos a amargura de não haver um rádio que nos dê tanta força e tanto traço de união. As pessoas espalharam-se pelos partidos e deixaram de saber onde está o inimigo (nem todas, claro).
Falta-nos o rádio, Pata Negra, mas eu venho ouvi-lo aqui.
Abraço
Caros amigos, nem vos respondo, tenho de limpar o pó aqui dentro, acabo de apanhar um choque no colector de um transistor, amanhã não vou dormir aqui dentro.
Um abraço na onda média
Majestade.
Eu li, fiquei preocupado mas n�o quis alarmar Vossa Alteza Real. � que dormir na proximidade de um trans�stor bipolar pode ser perigoso. Por certo sabe Vossa Majestade que os sofrem dessa doen�a s�o imprevis�veis. Ora est�o �na maior� ora est�o deprimidos. Os bipolares tamb�m precisam de tomar comprimidos diariamente e n�o beber �lcool para terem comportamentos aceit�veis. Ser� que o tal BC548 toma a medica�o e n�o se mete nos copos? Se fosse eu o Rei mandava os mais reputados Servi�os Secretos do mundo averiguar. Quem sabe se esse choque do colector n�o � uma manifesta�o da dem�ncia do dito trans�stor? Nos tempos que correm todos os cuidados s�o poucos.
O seu fiel servo,
Alberto Cardoso
Tenho uma grande sensibilidade pelos rádios antigos. Tanto assim que, quando passo pelo lixo e vejo lá um aparelho de rádio antigo, logo o carrego até a casa,E, até posso informar, que tenho algumas dezenas, não muitas...
Em pequeno, fabricava galenas. Não sei se sabem, mas é o rádio mais simples que há.
Se estiverem interessados, vão ao Google e escrevam galena. Há lá muita coisa interessante.
O texto está formidável.
Um abraço
Compadre Alentejano
de piada em piada ou muito mais do que isso sem faltar a imaginação do relato...
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