quarta-feira, 17 de dezembro de 2008

Mais um pedaço de mim

Faleceu há poucos dias, vítima de doença prolongada, um velho amigo, de idade para ser meu pai. A sua morte pesou-me o suficiente para escrever, para o jornal da terra, umas linhas que aqui deixo, retorcidas, adaptadas ao espaço e à natureza deste blogue.
A esse amigo devo a oportunidade do convívio com um homem generoso, inteligente e empreendedor; devo a oportunidade de ter passado parte da minha juventude num ambiente de festa, de música e de excesso; devo a oportunidade da minha independência económica e do que pude fazer com ela.
O Amigo, como muitos da sua geração, encontrou na França dos anos sessenta o caminho para se fazer a uma vida que, dificilmente, realizaria em Portugal. Por lá se fez músico e criou o conjunto musical The Kwent’s que se viria a tornar conhecido entre a comunidade portuguesa de Paris.
Já não vinha a Portugal há cerca de 10 anos quando, num Verão ainda com cheiro a Abril, vem com a sua banda actuar em algumas festas da região. A “digressão” foi uma revelação. Música portuguesa, brasileira, francesa, anglo-saxónica, compunham um repertório que, facilmente, fez sucesso no meio. No ano seguinte voltaram e repetiu-se a receptividade.
Os tempos de esperança que por cá se viviam e o clima de entusiasmo que se criou à volta dos The Kwent’s levaram o Amigo a decidir regressar definitivamente à sua terra com a sua família. No final dos anos setenta é um homem com uma actividade imparável. Com músicos locais reúne uma nova formação para o seu conjunto, transforma a sua casa num salão de festas, revela a sua faceta de homem de sete ofícios, reclama melhores condições para a sua terrinha, ajuda tudo e todos, vive rodeado de amigos.
É nesta altura que sou convidado para fazer parte do “conjunto dos putos” – assim era conhecida a segunda formação que assegurava os intervalos das actuações do grupo adulto e que tinha como atracção principal as qualidades musicais do seu filho de 12 anos. Não tardou que tomássemos o lugar da banda sénior. Seguiram-se os sete anos – com quase mil actuações anotadas na agenda que ainda guardo - em que privei de perto com ele, na sua vida familiar, em longas viagens, em arraiais, casamentos, bailaricos, palcos, trabalhos e sarilhos.
A sua casa foi, durante esse tempo, um autêntico centro recreativo e cultural, frequentado por velhos e novos, por forasteiros de ocasião e malta assídua, por músicos e curiosos de toda a espécie. A casa era de todos, o bar estava aberto até haver assunto, todos podiam tocar bateria, viola ou cantar, havia sempre música ao vivo, jogos, “cinema super 8”, dançava-se, falava-se de tudo e, às vezes, também havia porrada.
Deixo aqui este testemunho porque entendo que, mais de que recordar, importa registar as oportunidades e as mãos que este Homem ofereceu aos que o rodeavam.
Polémico, envolto num percurso de vida passional conturbada, traído pelos negócios e pela saúde, chegou ao fim agora e assim. Costumava dizer que gostaria que o seu funeral fosse uma festa com músicos a tocar “blues”, não o foi mas não esqueci esse seu desejo nem o esquecerei a ele - O Amigo dos blues.

22 comentários:

Anónimo disse...

excelente texto de tributo. ficaria orgulhoso certamente.

abraço

samuel disse...

Belo texto!

Kaotica disse...

Recordar assim um amigo é mantê-lo bem vivo na memória e falar dele a toda a gente é prestar-lhe a melhor homenagem.

Um abraço

antonio ganhão disse...

Um bom testemunho... imortalizamo-nos dessa forma.

Camolas disse...

- Paz à sua Grande Alma!

joshua disse...

Pessoas assim, irregulares e poligonais na sua energia e percurso, generosas, amigas da festividade e do sumo todo da vida, são uma inspiração e contagiam-nos.

Sorte a tua. Viva o que foi a sua vida. Não há morte. Só momentâneas interrupções de uns laços dourados que por cá mantínhamos e que logo, logo, se voltarão a reatar na plenitude da Carne Nova, Ressurreição prometida.

Requiescat in pace, amen.

Abraço condolente
joshua

SILÊNCIO CULPADO disse...

Pata Negra

Neste belissímo texto cheio de emoção encontramos as pegadas de quem não foi medíocre na passagem, que soube criar afectos e deixar um rastro de luz.Eu tive um amigo assim e também eu o perdi neste Verão que passou.
Porém a mensagem vale por muitas vidas. Tantas que tornam difícil o esquecimento.
Abraço

Tiago R Cardoso disse...

Belíssima homenagem, um enorme testemunho de um amigo.

Anónimo disse...

Sou muito sensível a esta tua homenagem, que pelos vistos é feita a uma pessoa de estima e percurso de vida marcantes. Percebo perfeitamente estas tuas palavras por experiência própria. Existem pessoas cuja melhor homenagem que se lhes pode prestar é "simplesmente" lembrarmo-nos delas pelo menos 1 vez por dia, para sempre.

Saudações e um abraço solidário do Marreta.

Zorze disse...

Pata Negra,

Sei que não vais concordar comigo, mas o teu Amigo vive, só que agora noutra dimensão energética, noutra forma de manifestação da consciência. É a mais pura das verdades. E digo-te mais, ao escreveres sobre ele de forma tão sentido e com grande exteriorização de energia, a tua mensagem muito provavelmente chegou ao destino que inconscientemente pretendias, o teu Amigo.

Abraço,
Zorze

Anónimo disse...

é o que mais magoa, perder alguem de quem se gosta, mas é irremediável...
lamnento.

abraço

Zé Povinho disse...

Há pessoas que merecem ser recordadas e respeitadas, e que quando partem nos deixam mais pobres e mais frágeis.
Abraço do Zé

MARIA disse...

Viva Majestade.
Que texto belíssimo. Homenagem mais bonita não poderia prestar-lhe que esta de nos revelar que até mesmo o Rei tem um coração que sente, que sofre ...
:-)
Eu compreendo como ninguém o que possa sentir e considero que a privação de alguém a quem queremos bem, sobretudo quando irremediável, é para mim a pior de todas as dores do espírito.

Um beijinho amigo

Maria

Anónimo disse...

Em tempos cheguei a ir a bailes dos «the kwent`s» (quando ainda não conhecia o pata negra) e mais tarde (recentemente) foi engraçado perceber que o «pata» era um dos «reis» dos kwent`s. Sabia, portanto, alguns dos pormenores aqui contados mas desconhecia outros. Não connheci o seu amigo desaparecido mas, depois deste texto, percebo melhor o entusiamo com que me chegou a falar dele numa ocasião em que me mostrou algumas fotografias deles (kwent`s) e do espaço em que ensaiavam.

Esta homenagem do «pata» é, antes de mais, um reconhecido agradecimento envolvendo «homens inteiros». E é um belo «blues», o melhor que o «pata» lhe poderia ter tocado num dia assim.

Zérui

Anónimo disse...

É desses amigos que mais sentimos a falta.

Abraço.

Savonarola disse...

Uma bela homenagem. Um testemunho de verdadeira liberdade.

Um abraço anarquista

A. João Soares disse...

Uma pessoa só morre quando já não há amigos que dele se lembrem. Enquanto alguém se lembrar, o seu espírito está vivo e é recordado. Há mi~uitas pessoas nas nossas vidas que nunca morrerão pela ternura como os recordamos, como é o caso deste seu amigo.
Infelizmente, há outros que são recordados pela face negativa, como aqueles que amontoaram riqueza por meios indignos e menos honestos, explorando os inocentes que os cercavam como é o caso dos banqueiros de que agora de se fala.
Felicito-o por ter assim um amigo e pela sua gentileza de o recordar com esta homenagem pública. Os grandes homens devem ser homenageados e apontados como exemplo. E também é grande homem quem presta tal veneração a um amigo ido.
Um abraço e Boas Festas
João

Mariazinha disse...

É difil ver partir amigos assim.
Homenagem mais que mercida.

Beijokas

Anónimo disse...

Pata Negra, belo texto e homenagem mais do que merecida.

Charlotte disse...

Pata,

Cabe-nos a nós, todos os que temos a sorte de nos cruzar com essas pessoas "imensas", a tarefa de as imortalizar. São exemplos inestimáveis do que cada um de nós, no seu percurso, deve procurar ser: generoso, solidário, mobilizador, empreendedor, polémico, se for preciso, porque é preciso alguém que agite, quando a maior parte cala e consente.

Além de uma homenagem bonita, é um texto também de certo modo pedagógico.

Que o "amigo dos blues" descanse em paz e tenha quem o siga.

Um abraço

Anónimo disse...

Pessoas de bem nunca esquecem o apoio, a amizade com que sempre foram tratados. Uma homenagem merecida pelo reconhecimento do bem recebido. Pelo que li foi um homem muito generoso.Pessoas com bom coração viverão enternamente no pensamento e no coração de quem os estimou.Um abraço
Luis

Compadre Alentejano disse...

Um excelente texto para um amigo que partiu.
Os árabes dão mais importância a um amigo do que a um irmão, porque, dizem eles, o irmão é imposto e o amigo escolhido...
Também nós, por vezes, temos amigos assim.
Um abraço de sentimento
Compadre Alentejano