quarta-feira, 16 de outubro de 2013

5- A fábrica do senhor António

A fábrica era realmente do dono e mais que dono, do patrão e mais que patrão, do senhor e mais que senhor, senhor António, um homem fino pelo traje, grosso pelas ordens, distante pelas palavras, próximo pelos acontecimentos. Ele era o eixo da fábrica, a fábrica era o eixo da aldeia, a aldeia era o eixo da vida.
O escritório ficava do outro lado da estrada e tinha janelas que lhe permitiam acompanhar de perto a vida da fábrica. Lá passava o seu tempo, com o filho, entre papéis e telefonemas e só de lá saía, duas ou três vezes por dia, para correr a fábrica de uma ponta à outra ou para inspeccionar e anotar o movimento de cargas e descargas.
Encontraria Laurinda raras vezes, talvez numa ida ao pinhal, numa vinda dela à fábrica para tratar de almoços, numa ida dele à fábrica num Domingo de descanso e, de certeza, sempre que ela fazia a limpeza do escritório.
Teria eu idade para levar sozinho o almoço ao pai quando não ia à escola. Teria oito anos, o Laurindo catorze?! O Laurindo não tivera competências nem vontades para ter frequentado a escola mas teria ainda infância para brincar comigo. Ambos teríamos já corpo para fazer um ou outro trabalho de menos responsabilidade – pintar uns tampos de bidões, arrumar uns bidões, mudar uns bidões de lugar – a troco da generosidade que o Senhor António transformava numas moedas que sempre davam para um copo de laranjada ou para um pacote de bolacha baunilha.

Como andávamos sempre por ali, víamos tudo e, um dia, vimos mesmo o que a voz cega do povo há muito via. Os balneários da fábrica, embora modestos, eram um luxo para quem não tinha água corrente em casa e mais, a água quente da omnipotente caldeira da fábrica acabava por criar hábitos de higiene aos operários que nasceram em ambiente de banhos raros.
Pela minha observação, Laurinda regressara do pinhal e entrara naquela porta para tomar um reconfortante banho que a libertasse da sujidade e do cheiro da resina. De repente imaginei-a nua e toda ensaboada.
- Já viste alguma vez a tua mãe nua?
Laurindo riu-se como um macaco e eu, como outro macaco, sugeri:
- Ali, por aqueles buracos na parede talvez dê para ver!

E pregámo-nos um a cada buraco, distantes, um do outro do outro, para aí um metro e vimos. Afinal estava vestida. De costas para a parede, os braços estendidos e recuados pareciam rendidos ou talvez não, talvez fosse apenas para as mãos de resineira não sujarem o fato asseado do senhor António. A cabeça ligeiramente inclinada para trás, a face enfeitada com uma expressão de mulher dada e satisfeita contrastavam com o rosto nervoso e excitado do homem e senhor. Vimos mais, a saia levantada a deixar ver carnes habitualmente ocultas. Virei-me para Laurindo que retirava os olhos do seu buraco, ainda amacacado, atirou-me um sorriso temperado com um piscar de olho e um encolher de ombros. Abandonámos o local e eu, na minha inocência, perguntei-lhe:
- Que raio estavam eles a fazer?!... Aquilo?!...
- Aquilo o quê?! A gente não viu nada! Estavam vestidos!...
Laurindo, por vezes, surpreendia-me com uns rasgos de sabedoria. Ele não viu nada, eu não vi nada embora esse nada nunca mais me tivesse saído da cabeça.

8 comentários:

antonio ganhão disse...

Os nadas que nos marcam, dão por vezes as melhores histórias...

SILÊNCIO CULPADO disse...

Pata Negra

Há pessoas que são donas dos destinos dos outros e até das suas vidas nos mais pequenos detalhes. Elas podem, as outras vergam os joelhos. Até os afectos são comprados.
Têm sempre muitas mulheres porque têm poder e dinheiro.
O poder e o dinheiro nunca deviam servir para estas coisas. Benditos os olhos das crianças que sabem "não ver". Mas que recordam e sentem que algo é ilegítimo nas recordações.
Belo texto.

Abraço

Anónimo disse...

Olá Majestade.
Cá está, eu tinha razão quando num comentário anterior falei na mina de ouro da Laurinda.
Agora, Majestade, se me permite, o tal senhor António era uma besta. O local e a forma que escolheu para "estar" com a Laurinda é inqualificavel e é um insulto para qualquer mulher.
Saúde para Sua Alteza Real, sua Realíssima esposa e para os Infantes.
Alberto Cardoso

MARIA disse...

Majestade,
"- Que raio estavam eles a fazer?!...
Aquilo?!..."
Que delícia. Há tanto tempo não recordava essa impressão de criança perante tal acto. Mas era precisamente assim que me interrogava quando pequena : o que será aquilo ?
Crescemos e constatamos que há quem lhe chame sexo.
Há quem lhe chame amor.
Mas na verdade e neste caso, de que se tratava : era amor o que existia entre o Senhor da Fábrica e a Laurinda ?
Suponho que só o desenvolvimento da história o revelará.
Fico à espera dos próximos episódios.
PS- A minha avó também não tirava a roupa...
:-)
Beijinhos amigos
Maria

Compadre Alentejano disse...

Estavam a trabalhar para o bem da Humanidade...
Se até os passarinhos, porque é que a Laurinda e o senhor António haviam de recusar?...
Um abraço
Compadre Alentejano

Camolas disse...

Complexa reflexão, essa atracção entre o sexo e o poder.
Nas mulheres, existe??
e nos homens??
Ainda havemos de dsicutir este assunto entre duas copas de Grous.

Zé Povinho disse...

Que raio estariam eles a fazer...
Abraço do Zé

Olinda disse...

E o nada,era muito.Sô ficou por dizer,se aquilo,era de mutuo consentimento.Acredito,que ainda hâ muito por dizer,na relacao patrao/empregada.A curisidade dos putos ê uma maravilha,bem como,a saîda airosa do filho.(e era atrasado...)

Um abraco