quarta-feira, 20 de novembro de 2013

10 - A fábrica da mulher do Senhor António

A mulher do Senhor António era a única que, naquele povo, era tratada e referida como senhora. Experimentara, em tempos, ser professora regente mas acabou por ser afastada por tanta porrada que dava nos alunos. Passava agora os dias na casa grande, entre lareiras, varandas, agulhas de renda, terços e orações aos santos que havia pelas salas e corredores do seu abençoado lar. Dela repetia-se muitas vezes, em conversas, a frase que certa vez largara: “Dizem que eu tenho muito que dar, e é verdade! Mas o meu coração não me ajuda!...”
Falaria com muito pouca gente. As criadas e algumas beatas pô-la-iam ao corrente das coisas que se passavam fora dos muros do seu quintal. Soube do caso do seu filho com Canicha e soube na condição de “última a saber” do caso, mais caso, do seu marido com Laurinda. Porque alguém teve indevidamente conhecimento, a senhora acabou por saber que, naquele dia, as duas irmãs tinham ido de carro para a vila com o seu António. Seria certo que o local do desembarque seria o mesmo onde embarcaram – um sítio onde a estrada passa entre salgueiros, a uns quinhentos metros da entrada do lugar. Se o caso já não era segredo para ninguém, então que houvesse escândalo!... Saiu de casa, espalhando pelo lugar a espera a que se dirigia. Falava alto para toda a gente: “aquelas putas vão ver com quem é que se meteram”; “arranco-lhes os cabelos”; “hoje vão dormir no meio dos salgueiros”, “na minha fábrica nunca mais põem as patas”, “se fossem boas tinham ficado na terra delas” e outras e outras mais que não vale a pena estar aqui a relatar. Atrás dela seguiam duas ou três mulheres, que disfarçavam com solidariedade o desejo de testemunharem a cena que daria história para contar durante muitos anos e, como não podia deixar de ser, seguiam-na também todos os cachopos da aldeia. Todos, menos dois, eu e Laurindo! Ou melhor, nós também fomos, mas fomos por veredas que se entrelaçavam com a estrada e fomos mais além do sítio anunciado para a espera. Sem que ninguém nos topasse conseguimos fazer alta aos viajantes e avisá-los do filme que os esperava!
Surpreendidos pela nossa informação o trio de passageiros corou de caras. O Senhor António seguiu sozinho no carro e eu e Laurindo, Laurinda e Canicha, regressámos escondidos pelos matos. Laurinda encomendou-me, agradecida, para que seguisse para minha casa e eles, os três, esperariam no pinhal algumas horas e só noite avançada, caso observassem sossego, se meteriam em casa. No dia seguinte, aconteceria o que Deus quisesse.
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Todas as Quartas há Fábricas
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13 comentários:

MARIA disse...

Majestade, não compreendo.
Afinal porque é que a Laurinda e a Canicha não deviam, na perspectiva da mulher do senhor António, seguir no automóvel ?
Calculo que seja pelo rapaz, pelo filho. As mães não suportam ver outras por perto das suas crias.
É isso, não é ?
Majestade, como Rei que tudo sabe diga-me : porque é que os Antónios casam ?
E as mulheres dos Antónios, casam porquê ?

:-)

Um beijinho amigo

Maria

Anónimo disse...

Sou fiel às tradições! Volto cá amanhã. Esse é que é o dia de eu ler a "fábrica".

Pata Negra disse...

Maria, nem eu compreendo! A história, as histórias, recordadas ao sabor da pena, dão nisto!... Quarta após quarta, não avisto bodas! Acho que para a semana vou incendiar aa Fábricas e, seja o que Deus quiser!... Raio de forma que este Reino tomou!... Sinto-me Rei de coisa nenhuma, operário de fábrica falida, contador de histórias sem história...
Viva a Maria! Viva a Maria!

Salvoconduro (com duro?! não era com duto!?)
Então mas hoje não é quarta?! Pois não! É terça! Isto é o resultado de eu não ir à missa aos domingos! Ando muito confuso!
Um abraço e obrigado pela correcção!

MARIA disse...

Majestade, a sua história sobre esta Fábrica, como tudo o que em geral escreve, é muito interessante a vários níveis.
Não só porque permite aceder a uma visão de uma certa realidade muito Nossa que Vª Majestade descreve de modo deliciosamente criativo, como também porque de certa forma nos impõe relembrar quem somos, qual a nossa essência, o quanto estamos afastados dela e traçar caminhos de futuro.
A presente conjuntura política e económica, em particular. Claro, também a social, deixa-nos a todos, particularmente aqueles que acreditam e aspiram a uma realidade melhor, a um Portugal melhor, num estado de algum abatimento, de alguma desorientação.
Que caminhos tomar face à actual situação em que todos estamos a viver ? Como continuar a acreditar, a lutar ?
Resta-nos aquilo em que ainda somos e devemos ser gloriosamente Portugueses : a nossa alma de Portugueses, a nossa escrita, as emoções do nosso Povo, as nossas ...
Não se sinta pois em falta por nos Presentear com um texto como este.
Eu, por exemplo, adoro ler as suas histórias. Rendo-me sem medida ao modo como escreve, como expressa a sua sensibilidade.
Por isso, VIVA o Rei !

Um Beijinho sempre amigo

Maria

Camolas disse...

- Saíste-me cá um bombeiro!

Anónimo disse...

E dizia eu nos meus tempos da tese de doutoramento esmerdado que os Maias me davam cabo da cabeça! Isto aqui é do piorio, com caniches, matos e incestos.
Então afinal há sangue & sexo ou não?

Saudações do Marreta.

antonio ganhão disse...

Partilhar a cama com o marido ainda vá, agora mordomias de carro posto! Era só o que faltava!

As crianças lá estragaram o espectáculo...
(voltei a postar)

Compadre Alentejano disse...

Muito interessante... fizeste um bom trabalho ao evitar o desiderato do encontro previsto...
Um abraço
Compadre Alentejano

José Lopes disse...

Sem perder a majestade, vossa senhoria começou bem cedo na clandestinidade, o que lhe deu arcaboiço para contador de histórias, e bem interessantes.
Cumps

Anónimo disse...

creio que já o disse um dia, mas repito que a tua escrita tem para alem da graça desanuviada uma nostalgia cativante.

olha, parabens

Anónimo disse...

Muito engraçado e surpreendente!

Olinda disse...

O perfil burguës da "primeira dama",estâ muito bem descrito.Para uma beata,dada a rendas e bordados,surpreendeu-me tomar uma atitude que pudesse provocar escandalo.Sua Alteza,ê que a conhece!...Ainda bem que os putos,salvaram a situacao!

Atê para a semana

Manuel Veiga disse...

ui... também no amor não há almoços grátis - mais tarde apresentaste a factura à Laurinda, não?

que te pagou em géneros, naturalmente...

excelente "estória"

abraço