quarta-feira, 25 de dezembro de 2013

16 - A fábrica do Torneiras

- Como não viste?! Ficaste de cabeça no chão, virada para cima, mesmo debaixo das saias da senhora?!
- Pois fiquei mas não as vi porque ela não as trazia!...


Todos os operários bebiam os seus copos mas bêbado e tido como tal, só o Torneiras. Apesar disso era um dos homens mais qualificados na casa sendo que a sua especialização consistia basicamente em vigiar termómetros, pressostatos, relógios e outros instrumentos de medida analógicos e, sobretudo, abrir e fechar torneiras. Como as bebidas também saem de torneiras, e porque “homem que bebe muito anda sempre de torneira na mão”, a alcunha pegou-se-lhe que nem resina.
Torneiras começava pelas 10 horas da manhã a vasculhar as lancheiras dos mais distraídos para provar, meio a brincar, meio por necessidade, as pingas de cada um. Para avaliar o seu estado alcoólico bastava observar a posição da sua boina na cabeça: “completamente são” – pala alinhada com as sobrancelhas; “a um quarto” – ponto médio da pala entre o olho e a orelha direita; “a meio gás” – pala de lado; “completamente bêbado” – pala completamente virada para trás.

Estávamos nós – lembram-se, noite dentro na Fábrica!?... – a recordar, quando o Cossa me atira com a filha do Torneiras, que hoje é dentista. A filha do Torneiras tinha em comum comigo algumas coisas: tinha “jeito” para estudar, gostava de estudar, queria estudar, vivia numa aldeia em que eram raros os jovens que estudavam, a fábrica era-lhe familiar, era filha de um operário e continuavam a nascer-lhe irmãos. De diferente teríamos o sexo e o facto de eu tecer um fraquinho por ela que ela não tecia por mim.
A filha do Torneiras, em períodos de férias escolares, ia levar o almoço ao pai. Enquanto nós almoçávamos numa mesa corrida, se não fosse grande a pressa, as mulheres aguardavam, de pé, por ali à volta, o despacho da lancheira entre conversas cruzadas. A estudante raramente abria a boca.

- Mas tu abrias! Lembro-me bem! Mal ela disse ao pai que, na segunda-feira, tinha de ir a Coimbra tratar duns papéis para ir para a universidade e que precisava que ele a fosse levar de mota à estação, tu enfiaste logo:
- Por acaso também tenho de ir a Coimbra na segunda-feira!
- Conta-me lá: deste-lhe boleia na mota e depois?!
- Depois comprámos os bilhetes e fomos no comboio!
- Foram no comboio e depois?
- Não sabia nada de música nem de livros mas queria ser doutora!
- Então e foste sentado ao lado dela ou no banco da frente?
- Lembro-me lá eu disso!
- E chegaste a Coimbra e foste fazer o quê com ela?!
- Ela foi à vida dela e eu fui à minha! Disse-lhe que ia concorrer a um emprego nos correios e fui comprar uns livros e uns trinta e três rotações!...
- Quais trinta e rotações quais carvalho! Tu nem sequer tinhas tractor! Ela não era parva nenhuma, sabia bem que não tinhas nada para fazer em Coimbra! Andaste como ela pelos choupais e depois?!
- E depois apanhei uma seca por lá todo o dia à espera do comboio de regresso!
- Então e no comboio de regresso vinhas sentado ao lado dela ou no banco da frente!
- No comboio de regresso tive de engasgar-me entre mentiras de sonhos de carteiro e render-me à minha timidez e à minha impotência para lidar com o assunto!
- Porra! E ainda sofres disso?! Hoje há o viagra homem!

E assim começou e acabou o meu caso com a filha do Torneiras.
Já passa da meia-noite. Vamos comendo e bebendo, trabalhando e falando. O Cossa não pára, a fábrica não pára e eu também vou escrevendo.
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19 comentários:

salvoconduto disse...

Eu se fosse ao Cossa não acreditava nessa. Tinta e três rotações... nunca passou a setenta e oito?

Pata Negra disse...

Salvo-conduto por acaso tive um gira discos que além dos 45 também tinha 78 mas nunca tive nehum disco disto. Mas para tua informação nunca vendi boi nem nunca tive trator!
Um abraço dos andes quer andes ou não

antonio ganhão disse...

O torneiras tinha na cabeça um manometro que indicava o seu estado etílico, realmente era o cara mais especializado da fábrica.
Safaste-te de boa! Com a filha do torneiras ficavas sem saber onde enfiar o 33 rotações...

Marreta disse...

Então, então, esqueceste-te de contar a voltinha do Choupal até à Lapa! Tá certo, mais não podias senão o Torneiras dava-te com uma torneira!
Essa do 33 rotações e do tractor está boa, he, he, he!

Saudações de torneira aberta do Marreta.

MARIA disse...

Majestade, aqui está um texto digno da assinatura de um verdadeiro Rei. Extraordinário!
Esse alcoolimetro que usava no Torneiras, aposto que seria aprovado e incluído, justamente,na lista de métodos de medição da TAS do Ministério da Justiça.
Uma delícia ... a sua imaginação... realmente ...
A foto também é uma preciosidade, como alias as que tem colocado da Fábrica.
Pensei ficar-me por aqui. Mas, para não falhar ao estilo habitual, digo ainda sobre a menina do Torneiras, relativamente à qual Vª Majestade sentia "fraquinho" suficiente forte para recordar, porém suficientemente fraco para não ultrapassar as barreiras que o afastaram dela que seguramente ela lhe corresponderia.
É que quando uma mulher não gosta de forma alguma aceita partilhar carris, mesmo que seja de ferro ...
:-)
Por isso, se nada mais restar, pode ficar-se pelo menos com esse consolo.
:-)
Memórias lindas que tem da sua adolescência.

Um beijinho amigo
NB- Ainda tem essa mota?
:-)
Maria

José Lopes disse...

Afinal a torneirinha não estava virada para brincar às monarquias, ou aos reis e rainhas. Devia ser uma republicana dos sete costados...
Cumps

SILÊNCIO CULPADO disse...

Pata Negra

Sobre cultura operária és um ás e, como se isso não bastasse,escrever é contigo.
Bem estas histórias de sensualidade, cumplicidades e amizades das boas e das antigas, são realmente excelentes para quem as aprecia como eu.
A propósito venho recomendar-te um blogue muito bom que acaba de nascer e que tem das verdades nuas e cruas, daquelas que têm que ser ditas. Porém se és do centrão [PS(D)] não to recomendo (eheeheheheheh).

ONZE DE ESPADAS -http://onzedeespadas.blogspot.com/

polidor disse...

O rei Pata gosta muito de meter saias na conversa e vendo bem até aparica a história, embora uma dels não traga cueca, entusiasma mais...

abraço

Camolas disse...

Gosto quando desces do pedestral dos "semi-deuses" que todos julgamos ser. A maravilha da tua escrita está na fragilidade humana, que só quem tem "Tomates"
apresenta como sua.

Um brinde à tua saúde !

Dentes de oiro para a filha do Torneiras!

Meg disse...

Pata Negra,
Com sal e pimenta, mais um naco de prosa que me fez sorrir como sempre.
Os teus personagens são muito bem apanhados e tu tens a arte de nos "agarrar" com as tuas histórias...

Um abraço amigo

SILÊNCIO CULPADO disse...

Para Negra


VIVA O 1º. DE MAIO

Abraço

Jorge P. Guedes disse...

Hehehehe! Histórias de adolescente inconsciente...
Mas estou preocupado, o TORNEIRAS é hoje DENTISTA?! LIVRA!...

Um abraço.

Milu disse...

Quando preciso de me rir venho aqui, ler as suas coisas! Hoje, então, que já estava a ficar com a telha, ler isto devolveu-me o sorriso! Bem haja! :))

Zé Povinho disse...

Também acho que as 33 1/3 rpm são um atraso por isso eu ia mais pelas 45rpm porque era apressado q.b. e não arriscava despistar-me com as 78rpm onde rodavam apenas as músicas mais antigas...
Abraço do Zé

Manuel Veiga disse...


saboroso texto - como a pingoleta do Torneiras...

ou como o melhor presunto (da filha)rs

forte abraço, meu caro amigo.

voto de Boas Festas

O Puma disse...

Tudo pelo melhor

nos amanhãs

Abraço

do Zambujal disse...

... e como é que estás de dentinhos? Tem-los tratado?

Um abraço por todos os amores frustrados (ih! são tantos), isto é, bem contado e bem contados.

Donatien disse...

Um abraço a sua Magestade!
Votos de uma pocilga atolada de energúmenos de cabeça para baixo!

jrd disse...

Não andará o Cossa às voltas com a esquelética? Depois de tanto tempo...