quarta-feira, 15 de janeiro de 2014

19- A Fábrica em viagem

Nos termos combinados, no passado sábado, fui buscar o Cossa a sua casa para a viagem. Entrou no carro com dois garrafões de cinco litros, um de azeite e outro de vinho. As minhas prendas seriam uma boina e dois lenços para a cabeça.
Saímos da A23, almoçámos em Mação e tomámos a direcção da pacata aldeia da Ribeira de Pracana. Aí chegados, a memória do Cossa, que lá havia estado em tempos idos na função de ajudante de camionista, fez o resto. Apontou-me um corte em terra batida por uma ladeira íngreme que desaguava num arrabalde de aldeia com meia dúzia de habitações espalhadas e mais umas tantas eiras, currais e telheiros em ruínas.
Um homem, de andar trôpego, atravessou-se-nos na estrada, meio aflito, tentando desviar as suas ovelhas para as bermas.
- Só pode ser ele! Pára aí! - ordenou-me o co-piloto enquanto abria o vidro para inquirir o pastor. Os seus cinquenta anos não lhe levaram o ar de criança. Uma expressão multifacetada entre o espanto, o receio, a curiosidade e a reserva dirigiu-nos a atenção enquanto, nas suas costas, as suas ovelhas geriam a autonomia dos seus movimentos e da vegetação que encontravam “à mão” para ocupar a boca.
- Olhe lá, andamos à procura de um tal senhor Laurindo que fugiu à tropa!
- Eu não fugi à tropa!... Não passei na inspecção!
- Não ligues ao Cossa, Laurindo, sabes como ele é!
Laurindo não nos topou, continuou revelando as mesmas expressões e, atrapalhado, encomendou-nos, aguardando suspenso a nossa reacção:
- A minha mãe está ali, em cima, em casa.
Estávamos a cerca de trinta metros da habitação de duas águas, com um alçado principal de porta ao meio e com uma janela de cada lado. Pus a mão no braço do Cossa transmitindo-lhe, nesse gesto, a sugestão de que seria melhor avançarmos para atenuarmos o choque que poderíamos causar no coração do nosso amigo que ainda não nos havia reconhecido. Conduzi, entre as ovelhas, em marcha lenta, quase no mesmo andamento em que seguia Laurindo em direcção à porta da sua casa.
- Oh mãe!
- Que é rapaz?! Já vou!
- Estão aqui os fiscais da Câmara!
Ao mesmo tempo que saíamos do carro, Laurinda aparecia na soleira da porta, enquanto o filho, de ar mais recomposto e olhando-nos num soslaio inofensivo, se dirigia às ovelhas com ordens e movimentos de as levar ao curral. Resistindo à vida, ali estavam as duas personagens que a minha memória parecia ter sempre acompanhado até este momento. Claro que estavam mais velhas, mas mantinham o essencial dos seus portes, das suas expressões, dos seus olhares.
Caminhou na nossa direcção revelando a vista curta e parando a uns três metros de distância. Os tiques do Cossa denunciaram logo a sua identidade.
- Eu não acredito! Que andas tu por aqui a fazer homem!? Aqui já não há pinheiros, nem resina, nem coisa que se leve!
- Mas existes tu minha cara linda, minha coisa fofa!... Dá cá um beijo dos teus ao Cossa!
E, ao dizer isto, aproximaram-se atabalhoadamente um para o outro desatando num, igualmente atabalhoado, abraço que terminou, ao fim de algumas interjeições, com o afastamento que deixou espaço à mútua contemplação.
- Tu estás na mesma!
- Estou, estou, eles é que pesam!
Compostas estas trocas esperadas e comentários à visita inesperada, lembraram-se de mim.
- É o teu mais velho!?
O Cossa inchou o bigode de indignação e largou das dele em toda a volta:
- Porra! Olha lá bem para os dois! Tu achas que esta cara de caminheta estampada alguma vez podia ser meu filho?! Não me digas que não sou eu que pareço ter idade para ser filho dele!? … É o meu empregado!
Laurinda riu da brincadeira e dirigiu-me a palavra num tom respeitoso:
- Você já o deve conhecer! Temos de lhe dar o desconto!...
- Mas tu pensas que estás a falar para algum doutor?! Não me digas que não tiras a pinta a esta prenda que aqui te trago?!...
Laurinda mediu-me, olhou-me dos pés à cabeça e fixou-me o rosto.
- Não, não vou lá! É o filho do…
- Do Toino porra! É o João!
- Ai! Ai é o Joãozito!... Ai Joãozito que eu já não te posso agarrar ao colo! Oh Laurindo! Oh Laurindo! Vem cá rapaz! O que é que tu andas para aí a fazer! Ai aquele rapaz não os reconheceu! Ai que lhe vai dar uma coisa quando souber que és o João!... Oh Lindo!...

16 comentários:

salvoconduto disse...

Ora aí está o condimento necessário para nos contares mais um episódio. O Laurindo está trengo, a mãe dele velha e pensa que ainda gasta meias solas. O Cossa diz que já lhe pesam os ditos e tu com ares de doutor. Vamos nessa!

Nocturna disse...

Majestade,
Estão reunidos os ingredientes:
Temos o local, as personagens, o começo de desfiar das histórias,(para isso vão servir os dois garrafões, um para as patuscadas, outro para desenferrujar a língua) e agora é sempre em frente.
Temos Fábrica !
Um abraço
Nocturna

Marreta disse...

Ó c'um camandro! Mas isto é alguma reedição da Dona Xepa?!
Diz-me só uma coisa: quem é que emborcou o menino de cinco anos?
Não me digas que foi a Laurinda!...

Saudações vesganças do Marreta.

Meg disse...

Pata-Negra,

Leio-te, delicio-me com a tua prosa e com o enredo dos teus personagens.
E sorrindo te deixo um abraço

lili canecas disse...

Temos mais episódios desta linda história. Não, esta não é mais uma história. Eu topo-te Zézito (Oh! Zézito é o outro) Joãozito. Esta é verídica, passa-se na 1ª pessoa.

José Lopes disse...

Vamos aguardar pelo repasto que porá a escrita em dia, pelo menos no que se refere ao tempo em que não se viram, e certamente que o garrafão vai dar uma ajuda no desenferrujar das línguas.
Cumps

Milu disse...

Impecável!
Mais uma vez me diverti ao ler e, por conseguinte, a imaginar estas cenas! Estou curiosa com o que se irá passar agora, com estas personagens juntas!

samuel disse...

Huston... Temos uma descolagem perfeita...

Abraço

antonio ganhão disse...

Só posso dizer que adorei este momento, ironia, suspense, tempo certos e muita alegria. Muito bom!

E REGISTO que tu sais da tua aldeia para visitares os amigos. Espero ter sido claro! ;)

Alberto Cardoso disse...

Olá Majestade.
Aquela de "Oh mãe! Estão aqui os fiscais da Câmara!",só por si, já merece um prémio. Todo o «episódio» é magnífico, como é hábito. Cumprimentos do fiel
Alberto Cardoso

MARIA disse...

Majestade, o texto como sempre além de irrepreensível, literariamente falando, é uma história encantadora, genuína.
Sabe, esta fábrica especificamente, remete-me para a viagem que todos nós, tantas vezes, em certos momentos da nossa vida, gostaríamos de fazer ao nosso eu mais profundo, à nossa raíz, para retomar do ponto aonde por vezes perdemos certo encanto, e refazê-lo dentro de nós, como uma espécie de milagre.
A mim muito me acontece isso, procurar traços, sensações, associadas a realidades cuja magia só verdadeiramente compreendi quando tracei diferente rumo ao coração.
Boa viagem Majestade !

Um beijinho amigo

Maria

Compadre Alentejano disse...

Sei o que são estes encontros. Sempre que vou à minha terra, encontro pessoas que não via há mais de três décadas. É fantástico!
Um abraço
Compadre Alentejano

Olinda disse...

O Laurindo-agora-pastor,jâ deve estar com uma bruta arteriosclerose...nao ter conhecido os amigos,nao ê normal,mesmo para a inteligencia especial do Laurindo.Todavia,o reencontro,foi emocionante e o conteûdo de um dos garrafoes vai servir para brindar e avivar memôrias.

Um abraco


cid simoes disse...

Um lindo flash.

Zambujal disse...

Esta "fábrica" continua a funcionar. E muito bem. É das raras!
É capital investido em boa obra e não em especulações espúrias,
Só há que continuar até à publicação final,

Abraço do
Zambujal

Zé Povinho disse...

As memórias virão com a ajuda do tal garrafão...
Abraço do Zé