quarta-feira, 22 de janeiro de 2014

20 - Da fábrica com saudade

Laurindo acorreu ao chamamento da mãe e abeirou-se com servil prontidão.
- Não te lembras da fábrica?! Não te lembras destes senhores?!
- Não! Não me lembro de senhores nenhuns, só me lembro do João…, do Cossa e…
Perante a gargalhada geral, Laurindo percebeu:
- Ah! São vocês?!
E dizendo isto, estendeu-me a mão. Por este curto e tímido cumprimento não esperava eu! Puxei-o para o abraço que ele não arriscara e acrescentei-lhe umas valentes palmadas nas costas com umas frases próprias para a ocasião. Cossa puxou pelos seus modos e, agarrando-nos aos dois, intensificou e prolongou o abraço rematando a sua intervenção com uns encostos forçados das nossas duas cabeças e com frases menos próprias – à Cossa!... Quando nos separámos ainda tive tempo para observar Laurinda a limpar os olhos com as costas da mão, ao mesmo tempo que o Cossa me substituiu nos abraços ao Laurindo rodando-o e levantando-o até este não ter os pés no chão.

- Não! Acabámos de almoçar!
- Pelo menos broa com azeitonas e um copo de vinho!
Laurinda dirigiu-se a casa para preparar o petisco e ficámos os três sentados num resto de muro antigo de xisto que aparentava textura de desempenhar essa função habitualmente. Laurindo só falava quando interrogado mas comunicativamente há alguns minutos que, sentado a meu lado, conservava o seu antebraço pousado no meu ombro. O Cossa, num gesto de punho fechado e braço descaído em vai-vem, provocou-o:
- Então Laurindo e ... (movimento de braço)… nada?!
O atingido reagiu com um sorriso que deixava perceber que o Cossa se lhe arrancava da memória e, num surpreendente contra-ataque, muda de tema sem mudar de assunto:
- O bigode não te estorva?!
Porque tanto gostava de as mandar, o Cossa também as recebia. Engoliu com dificuldade e abriu novamente a boca para dizer novas asneiras:
- Se não viesse ali a tua mãe eu dizia-te!

A nossa senhora estendeu um pano sobre o muro e pousou meia broa, uma faca, uma tigela de azeitonas, dois copos e um jarro com vinho. Mesa composta, começámos então a pôr a escrita em dia. Laurinda contou-nos da morte de Canicha e nós contámos também os nossos mortos, falou-nos da sua vida e do seu filho – que continuava a seguir-me os movimentos e as palavras só intervindo quando o Cossa o picava – nós falámos de nós e da Terrinha. Não nos convidou para entrar em casa mas convidou-nos para ir ver a sua horta que ficava a uns cem metros, encosta a baixo, junto à ribeira de Pracana.

“- Prá quê?!” – içava sempre o Cossa cada vez que o nome da ribeira atravessava os diálogos.
A paisagem circundante, ferida pelos grandes incêndios, levou-nos ao incontornável tema:
- Foi aqui o inferno já por duas vezes, à primeira levou-nos os bens, à segunda levou-nos a esperança, para a próxima leva-nos a alma. Esta terra nunca mais foi a mesma e nós também nunca mais fomos os mesmos. Evitamos falar disso, isso é política!
A horta de Laurinda e de Laurindo era de se lhe beijar os cambalhões e a fertilidade. À medida que a obreira ia mostrando, ia devastando e pousando nos nossos regaços, tomates, pepinos, alfaces, couves…
- Oh Lindo vai buscar dois sacos dos de adubo ao alpendre! Isto vai estragar-se, nem dá para comer tudo, nem para vender! Este ano não tem sido muito bom mas como vêem…
- Mas cachopa, não foi a isto que viemos!...
- Deixem-me dar!...Deixem-me dar o que não vos dei estes anos todos e o que não vos vou dar nos outros que aí vêm!.... Deixem-me dar!...
No regresso emborcámos a colheita na bagageira do carro e, na oportunidade, entregámos também as nossas prendas, os garrafões do Cossa e os meus lenços de cabeça.
- Para que são dois lenços para a minha mãe se ela só tem uma cabeça!?
Laurinda percebeu que o seu destino inicial era para a falecida irmã e aguardou a minha explicação.
- A tua mãe tem só uma cabeça mas ainda tem muito Verão para aguentar! Toma lá para ti uma boina de pastor!
Tomou-a na mão enquanto mirava a que eu trazia e:
- Ofereço-te esta que me ofereces! Prefiro ficar com a tua!
Disse, devolvendo-me o embrulho e sacando-me da cabeça a minha boina de estimação que tanta estima me deu, mudar de dono.

16 comentários:

salvoconduto disse...

Broa, azeitoas e um jarro de vinho? Ainda cheguei a pensar que a Laurinda vos preparasse uma punheta de bacalhau, mas creio que esse mister deveria ser mais pró Laurindo. Sacana do gajo! Ainda por cima ficou-te com a boina!

mfm disse...

Gostei muito.
É uma escrita singular.Torna-nos participantes na cena.
mfm

Camolas disse...

"Voz do povo é a voz de Deus"

Meg disse...

Pata Negra,

E segui-te em mais este episódio da história que tão bem contas...
E vieram-me lembranças de tempos de infância, de férias passadas num Portugal rural, com petiscos como estes que aqui enunciaste.
Será que ainda existe?
Obrigada pelos bons momentos que a tua prosa me proporciona.

Um abraço

Compadre Alentejano disse...

Parece uma cena do meu Alentejo. Fantástico. Estou a gostar muito.
Um abraço
Compadre Alentejano

martelo-polidor disse...

é isso, ao ler fica criado o envolvimento e, sem querer, vemo-nos dentro da cena, ao pé deles...
abraço

José Lopes disse...

A amizade recordada, e o compartilhar das memórias, que nos trazem a saudade.
Cumps

MARIA disse...

É um texto e tanto, Majestade !
Mais uma vez também sublinho a beleza tão especial da fotografia.
Já o reli algumas vezes em silêncio porque este texto transmite-me sensações que me são muito especiais.
Só pessoas de Grande Coração como a Laurinda, como o Laurindo, pessoas a quem o fogo tudo levou, que nada ou quase nada têm, são capazes de uma doacção como a que aí descreve:" deixem-me dar..."
É a alma que nos colocam na mão, sem reserva ...
Certo dia uma moça há muito tempo fora da sua terra natal foi visitar a velha avó. Então com 102 anos, e uma gripe quase suína, estava acamada há tantos dias que vivendo só, não pudera aprovisionar a despensa . Ninguém aparecia há quase dois dias com comida e ela guardava junto ao travesseiro um pequeno pacote de bolacha "Maria" já aberto que lhe ia servindo de alimento.
O seu primeiro gesto foi "deixa-me dar-te estas bolachinhas, já que a avó não pode agora oferecer-te outra coisa"
A moça recusou, salientando-lhe que ela é que não comia há algum tempo. Faria aliás uma canjinha para ambas, como a anciã gostava.
Mas esta, insistiu : não, não , a menina deixe-me dar-lhe as bolachas, vem cansada do percurso, precisa de se alimentar...
Em silêncio a rapariga pegou no pacote das bolachas e trincou a primeira demonstrando ter obtido daquela bolacha um sabor divinal, impossível de alcançar através de outro qualquer manjar.
Depois foi partindo ao meio as bolachas e repartindo pela sua boca e pela boca da avó.
Foi com esta avó com alma das personagens da sua história que essa rapariga, hoje mulher aprendeu o quanto nos podia fazer bem... DAR ...

Obrigada por este texto.

Um beijinho

Maria

Marreta disse...

Olá, que isto correu de maneira civilizada! Sexo, nada. Ainda o mais próximo que lá se andou foi através do comentário do Salvo Conduto...
Agora trocar a boina por tomates e pepinos já não sei se foi bom negócio...

Saudações do Marreta.

samuel disse...

Muito bom!
Isto dava umas "curtas" supimpas! Ainda nenhum amigo jovem cineasta pensou nisso?

Abraço.

Milu disse...

Ler as histórias desta fábrica é sempre um momento de boa disposição!Desta vez e a meu ver, sobressai a malandrice, mas também, aqui e ali um sentimento de encantadora ternura! Muito bonito, como sempre!

Olinda disse...

Hoje,gostei sobremaneira,da estôria,Senti enternecimento ao ler a cena do encontro,a subtileza como o Cossa faz a pergunta ao Laurindo,a generosidade tao tîpica do nosso povo.Muitos parabêns,Magestade!

Um beijo


Maria disse...

Vim ler-te. Faz tempo que não ando pelos blogues...
Não sei porquê mas agora umas azeitonas, um panito e um tintinho iam...

Abraço.

MARIA disse...

Beijinhos da sua sempre amiga

Maria

jrd disse...

Excelente.
Cada potes cada conto, com um fio condutor.
Um abraço

Zambujal disse...

Muito bem contado.
Com ritmo, amizade e... ternura.

Grande abraço