terça-feira, 19 de janeiro de 2010

6- Não estou preocupado com o título

Esta é uma história de músicos. A música faz parte da história. Mais vale ler sem óculos do que sem a música ligada. Esta história já vem de há semanas e para a semana continuará a ficção se o autor for real.


Estou preocupado porque receio não poder descrever a história sem descrever primeiro as personagens o que, na minha humilde pena, não é pêra doce de se dar e pode-me até sair cara se afugentar os fregueses da fruta que aqui se vende. Porém, Cipriano merece mais do que ser conhecido de vista. Cipriano tinha uma biblioteca só com um livro e a esse livro recorrentemente recorria para fazer prova do seu saber:

- Não acreditas que é verdade?! Eu vou já buscar-te o livro!

Para tudo o livro de São Cipriano tinha uma receita, o que explica, portanto, que “Cipriano” fosse alcunha. Cipriano tinha sido baixo nos Quentes seniores mas connosco só dava um “coup de main” por falha do músico ou se bebesse, o que acontecia duas ou três vezes por ano, podia subir ao palco para cantar o seu interminável blues com letra em português, francês e inglês, tudo à mistura, e fazer uns números de acrobacia que abriam a boca ao público.

Numa dessas ocasiões, Cipriano levara os seus dotes circenses demasiado longe, já tinha passeado pelo palco com as mãos no chão e com os pés à volta do pescoço, já tinha feito de anão dobrando as pernas pelo joelho com os pés junto ao traseiro, já rodara o microfone pelo cabo à moda de rancheiro do velho oeste, já o blues levava mais de meia hora e dá-lhe para andar pendurado na estrutura de suporte do telhado do recinto até se acomodar, escarrapachado, dois metros acima do público que o admirava de cabeça virada para o ar:

“Eu sou um velho maltês/ Casa para mim nunca se fez/Já não tenho sola nos sapatos/Passo as noites duas e três/Embrulhado numa manta de farrapos….”

E eis senão quando, ao tentar um mortal de regresso ao solo, fica espalhado sobre a mesa misturadora. De imediato ergue-se entre aplausos e dá ordem à banda para continuar.

No final de tão brilhante actuação a organização do baile recusou-se a pagar-nos o contrato alegando que não tínhamos tocado nada de jeito e quem teve de conduzir a J7 no regresso foi o menor Nini.

No dia seguinte a minha mãe interrogou-me acerca dos acontecimentos já que soubera que Cipriano, durante a manhã, fora transportado de ambulância para o hospital.

Vem esta história a propósito da arte de Cipriano e do seu gosto pelo circo e pelo espectáculo.

10 comentários:

salvoconduto disse...

Nem me fales em São Ciprião, em miúdo andei com um na mão, nem te digo nem te conto, parecia que tinha morto alguém ou que encarnava o diabo. Custou-me uns lápis de uma colecção que andava a fazer e acabou na fogueira. O gajo que ficou com os lápis apareceu-me com os dedos de uma mão marcada na cara. Tu cuida-te pelo menos dos olhinhos.
À cautela eu vou rezar uma oração para enxotar o demónio, eu sei lá...

do zambujal disse...

Estas estórias dos Quentes e do Cipriano e da J7 são muito melhores que as do G8 e do Obama em Copenhaga!
Homenagens a Sua Mejestade

MARIA disse...

Que delícia de texto Majestade.
Há um carinho implícito no modo gracioso como descreve o Cipriano.
Um figurão, está mesmo a ver-se.
Não pagaram o espectáculo ?!....
Malandros, estas entidades empregadoras só pagam os acidentes de trabalho à "boca de um Tribunal de Trabalho" :)

Quanta terna saudade da época de todos os seus marcantes amores reflecte este belo texto...
Linda alma, escrita de verdadeiro Rei...

Um beijinho amigo

Maria

Camolas disse...

- Grandes catarses, do imenso Cipriano.O Homem descobriu muito cedo os segredos desta vida fdp.
Confessa que viveu.
Um tinto à memória de Cipriano, um branco aos saudosos Quentes.

André D'Abô disse...

também não me importo com o título. importa que a estória vai bem. hoje, cipriano lembou-me de meu pai que - fora o gosto circense - também tinha sua biblioteca de meia dúzia de títulos sobre alquimia e outros sortilégios, donde extraía alguma sabedoria de bolso para guiar-lhe no cotidiano...

antonio ganhão disse...

Um artista português que faz do improviso a sua arte!

Compadre Alentejano disse...

A estória está óptima! Vou continuar a acompanhar.
Um abraço
Compadre Alentejano

Meg disse...

Pata Negra,

Mais um belo naco de prosa, daquela que tanto me encanta... porque, já nem falando das habilidades do Cipriano, me prendem pela cadência tão especial tua escrita.
E continua a escrever porque os fregueses gostam da fruta que aqui nos vendes.

Um grande abraço

Marreta disse...

O estudo aturado que esse Cipriano dedicou às inúmeras obras da sua biblioteca, condensadas em apenas um livro de méritos reconhecidos, não poderia antever uma outra actuação. Será que a restante banda também foi "beber" à biblioteca do Cipriano?

Saudações do Marreta.

SILÊNCIO CULPADO disse...

Majestade

Tanto saber num só livro.


Hoje não falo do Pata Negra mas dum grande rei de capital humano e de bela escrita.

Adorei o Cipriano.


Abraço