terça-feira, 2 de março de 2010

12- Isto não tem jeito sem título

Esta era eu que cantava para dar descanso ao vocalista principal
Se ela estivesse por baixo, teria visto, através das frestas do soalho do palco, o rasto dos meus ténis Sanjo, teria feito amor ao ritmo do compasso que o meu pé batia, não me teria traído completamente porque teria gozado sob a minha superior presença. Subi as escadas do palco, a banda gozava um fim de série, só o “informador” Tarolas parecia estar a par do meu problema de testa. Levantou-se da bateria na minha direcção com a mini Sagres que era para mim na mão, passou-ma com uma expressão neutra, esperando que eu, tão senhor do meu nariz, tão dono de Teresa, comentasse a situação. Afinal de contas, ele tinha sido o primeiro a saber e, graças a ele, eu não seria o último mas o segundo, facto que, traindo a tradição, era uma atenuante.

- Oh Tarolas, tu alguma vez conheceste mulher?! Tu conheces-me, conheces a Teresa e o Cipriano, que mal tem? Antes com ele do que contigo! Eu não sou dono dela e se vontades lhe deram, a mim não pôde recorrer por eu estar a tocar, antes com um amigo comum do que com um estranho! O desejo de experimentar a sapiência dos mais velhos não concorre com a juventude dos mais novos! Também nós temos construído fantasias na nudez da Dona Preciosa!

Tarolas, engelhou a testa e o nariz e replicou:

- Tu estás a passar-te, essa merda dos fumos, do sucesso da banda a subir-te à cabeça e de leres revistas dos grandes, estão a transformar-te em quê?! Porra, vê a tua testa ao espelho! A Dona Preciosa nunca passará da letra da canção que andamos a ensaiar!

Pensando bem, Tarolas teria alguma razão! Mas, por outro lado, não havia  assim nada de tão trágico, foder, de duplo desejo, nunca pode ser crime. Encerrei com ele a conversa deixando em entrelinhas que, embora normal, o episódio não deveria chegar aos microfones da banda.

Aparentemente, o resto da noite, a desmontagem da aparelhagem, o carregamento da J7 decorrei como sempre. Na viagem de regresso a casa Teresa veio sentada a meu lado sobre as duas colunas Hiwatt e, chegados a casa de Cipriano, na hora habitual das seis da manhã, recebi o cachet e o beijo da namorada.

No dia seguinte regressei ao trabalho, tínhamos outra actuação, e procurei as devidas explicações do patrão. Não teria equilíbrio emocional para colocar a questão a Teresa mas o traidorzito não se fez de engasgos:

- Já várias vezes te tenho dado a perceber que ela não é mulher para ti e já sabes o que penso sobre o mal que as namoradas podem fazer a um conjunto musical! Foi esta a solução que encontrei para cortar o mal pela raiz! Repara que não fiz nada às escondidas, dancei com ela à tua frente e fiz-me nela a um metro de ti!

- Mas um metro na vertical é diferente de um metro na horizontal!?

- Este assunto tem de ser resolvido entre ti e ela! Não é preciso armares um chilifrim, dizes-lhe, "acabou!" Eu trato do resto! Os familiares dela estão abancados na Figueira e eu próprio a irei levar!
- E eu não posso ir também?!
- Mas estás armado em quê?! Está descansado que eu não lhe toco mais! Cumpri o meu papel, tu agora cumpre o teu!
Cipriano era amigo. A banda continuou por muitos anos e eu nunca perdi completamente essa Teresa nem a vontade de me vingar da lição do patrão.

9 comentários:

do zambujal disse...

Pois... há os (e as!) que não se importam. Só exportam.
E, como dizia o vosso colegas das cantorias, um tal Jacques Brel, je n'oublie rien, je m'habitue!, ou seja, para os anglófonos, I don't forget nothing, nicles... I get use, ou ainda, não esqueço nada (nadinha de nada), olhem... cá me vou habituando!

Um abraço (pela prosa... que não de solidariedade!)

José Lopes disse...

Episódios da juventude servem para ganhar experiência ainda que por vezes à custa da perda de algumas amizades.
Cumps

antonio ganhão disse...

Grandes amigos e grandes conselhos, escutar e segui-los é pior que ser traído!

Alberto Cardoso disse...

Olá Majestade.
Como sempre, apesar de ser a história de uma traição, apreciei o epidódio de hoje. E aprendi qualquer coisa: aprendi que a "mini" Sagres é muito mais antiga do que eu imaginava.
Alberto Cardoso

salvoconduto disse...

Ah e tal, a Teresa e o Cipriano, que mal tem? Antes com ele do que contigo...

Mas tu vias-te ao espelho ou ele estava rachado?!

Não, enquanto não "consertares" essa merda escusas de pôr aqui música de roço. Não sejas farsola! Põe o Cipriano no seu lugar! Se ainda é vivo, pelo menos mija-lhe no sapato! E ele que vá chamar amigo ao Carolas e não me venhas dizer que é Tarolas que também te mando a ti pro Taralho.

MARIA disse...

Então Majestade, tudo isso aconteceu ali mesmo, praticamente em público?!...
Desculpe, mas a sua história exemplarmente narrada com tanta graça e beleza, não faz contudo sentido .
Veja bem, se o Cipriano estava consciente que seria visto, ela também tinha que estar.
E mesmo assim, porque o faria diante de si?
Ainda não a ouviu. E há uma coisa que a vida me ensinou e acho que também se estuda em algumas cátedras: todo o cidadão se presume inocente e tem direito à sua defesa, antes de condenado.
Imagine que Cipriano simulou tudo, (que boa rez ele não era claramente) e Vossa Majestade põe a andar a rapariga sem culpa?
Já pensou nessa possibilidade?
Às vezes as "iludêcias aparudem" mesmooo :)
Sabe, a sua palavra é muitíssimo valiosa para mim, mas creio que está equivocado.
Coloco-me no lugar de Teresa: impossível trocar um Rei por um ciprestre de azedo cheiro :)
Uma coisa pode tomar por absolutamente certa, esta sua amiga Maria sempre estará neste Reino e nunca o trocará por nenhum outro reino, desta ou de outra vida.
Depois da sua narração, tão deliciosamente humana e Grande, merece pelo menos esta declaração.
E claro, para a República, também continuo com D. Pata Negra.
:)
Um beijinho amigo

da

Maria

Zé Povinho disse...

O Cipriano mostrou-se muito amigo ... da onça, e a Teresa também não era de nada de fiar. Meu caro, lá nos bailaricos não haviam garotas que gostassem de "música"? Isso mesmo...
Abraço do Zé

Camolas disse...

Nunca vires as costas ao amigo Cipriano.
Que o "hombre", tinha jeito para marcar-te a agenda política lá isso tinha.

André D'Abô disse...

muito bem, o caso por debaixo do soalho teve um desfecho interessante. gosto, sobretudo, da vontade de vingança do patrão que resta ao final. aguardaria satisfeito por uma oportunidade.
abraços.