segunda-feira, 6 de setembro de 2010

Sete Pés Dois


Não admira, portanto, que Sete Pés nunca tivesse tido afeição pelas pessoas. A mãe andava por lá na Vida e na Volta durante grande parte do dia ou da noite. A casa era pequena e sem condições e Sete Pés passava o tempo a vadiar pelas redondezas sem um amigo que lhe desse troco, sem um adulto que o tratasse por menino. Diriam os pais aos filhos “tu foge dele!”, diriam as comadres às comadres “à minha porta não pára ele!”…

Na escola foi sempre enjeitado mas aprendia razoavelmente. Com o tempo, as pessoas deixaram de o considerar perigoso e começaram a tolerá-lo da mesma forma que se toleram os cães sem dono. Quando entrou na adolescência começou a refugiar-se na música e, com catorze anos, conhecia tudo o que era música rock desde os anos sessenta até à sua época. Ouvia noite fora as estações de rádio que passavam das suas músicas e gravava cassetes estéreo a mono para duplicar a sua capacidade de armazenamento. Estes gostos e conhecimentos ainda lhe trouxeram um ou outro laivo de amizade mas Sete Pés não fora formado para valorizar o convívio ou a amizade. Além da música passava o tempo a caminhar. Adorava andar pelos campos a pensar e a observar tudo o que havia e não havia. Quando frequentou a escola da vila, que distava quinze quilómetros, muitas vezes aconteceu dispensar o comboio e regressar a casa a pé e, se por acaso, pelo caminho, alguém lhe oferecesse boleia, recusava-a. Ia a Fátima a pé sem ser por Fé e chegava a ir ver concertos de rock à cidade maior também à pata.

Tinha consciência de que este gosto lhe viera do facto de ter encarnado a alcunha “Sete Pés”. Aliás, ainda não teria dez anos quando se auto convenceu de que tinha mesmo sete pés embora, fisicamente, a realidade só revelasse dois a quem o via. Entendia que os seus Sete Pés constituíam uma entidade extra-física, tipo mistério da Santíssima Trindade mas, em vez de três, com sete em um ou do tipo do diabo configurado nos sete demónios do inferno.

A fantasia foi-se desenvolvendo no seu espírito e, com os anos, a sua imaginação de caminhante solitário foi criando na sua mente sete personalidades distintas que conversavam e discutiam entre si, que debatiam e determinavam a vida do ser uno vísivel Sete Pés.

E assim, ganharam vida e existência sete vidas na forma de sete pés:
Pé de Meia,
Pé de Atleta,
Água Pé,
Pé Chato,
Pé Ante Pé,
Pé de Vento
Pé Descalço.
__________________________________________________
Na semana passada houve Sete Pés Um e para a semana haverá Sete Pés Três.

12 comentários:

antonio ganhão disse...

Isto adensa-se. Como sempre num bom fio discursivo debruado a um fino sentido de humor.

do Zambujal disse...

Porreiro, pá! (salvo seja... ou não tem nada a ver com o que, nesta expressão, os outros adulteraram)
O 7pés tem mais heterónimos, sendo já um heterónimo, que o Fernando Pessoa. És muito ambicioso. Mas ainda bem! Os dois primeiros capítulos são excelentes e prometem...
Força, Amigo!

Milu disse...

Olá Pata Negra

Mais uma história que bem repuxada dava um Tratado de Sociologia. Como eu a entendo bem! Em todos os lugares existe pelo menos um "Sete Pés", quando não muitos, depende das condições sócio-económicas das localidades. Em tempos, numa terra onde vivi, havia uma senhora cuja alcunha era a "Maria da Merda", sempre ouvi falar dela com desprezo, apesar de não fazer mal a ninguém, era a maria da merda e pronto. Tinha esta senhora uma filha de quem se dizia ser um tanto deficiente mental e que um dia engravidou. Nunca se soube ao certo de quem, mas desconfiava-se, ou melhor, havia quase a certeza. Mas o que mais me impressionava era ver a avidez com que a populaça se divertia, porque era mesmo isso que se passava, com a desgraça alheia, quase sempre dos seus iguais.Vi acontecer tanta marginalização sem sentido, meu Deus! Por norma não se metiam com os ricos, estes eram-lhes inacessíveis. Era aos pobres e mais desprotegidos que o "povão" gostava de fazer mal. Quando alguém dava um tropeço na vida, em vez de se lhe estender a mão, calcava-se para dentro da sarjeta, depois, ao sábado, iam todos ao confessionário penitenciar dos pecados, e no domingo, de mãos postas, lá seguiam em fila, direitos ao altar para tomar o senhor, vulgo comunhão, ataviados de um ar tão beatífico, que quem os não conhecesse, iria julgar certamente, que se tratava de gente pia e tolerante. Nos meus tempos de criança, vi como os adultos na escola, professores e "contínuos", tratavam com algum indisfarçável menosprezo os mais pobres, como se estes fossem uma casta inferior. Lembro-me até de um caso curioso: Houve um ano em que tivemos um colega que não professava a religião apostólica romana ou lá o que é essa merda (nem parece que fiz o crisma),ele era protestante, isto é, não se benzia como eu e os restantes meus colegas. Pois à hora da refeição, na cantina escolar, havia sempre lugar para o costumeiro pagode... Todos sem excepção, nos voltávamos, acusadores, para esse colega, que muito respeitosamente permanecia de pé e de cabeça baixa, enquanto rezávamos a oração de graças, mas que não se benzia como todos os restantes colegas. Influenciados pelos adultos julgávamos-lo um filho do diabo. Para todos os efeitos ele era diferente de nós! Nunca nenhum adulto se preocupou em emendar-nos este miserável acto, muito pelo contrário, também eles mantinham uma postura de censura. Que ignorância tão deprimente!
Olha Pata Negra, de histórias assim como estas, onde o que mais se evidencia é a estupidez humana e o preconceito, tenho eu um manancial, que não é fácil de esgotar!...

opolidor disse...

Pata sete pés...

de quando em vez exaltas o profundo da imaginação e do sentimento humano...
abraço

MARIA disse...

Texto belíssimo, associando uma qualidade de escrita de excelência, já bem nossa conhecida, a um estilo inconfundível que sempre me remeteu muito para o universo de escrita de Eça de Queiroz.
Eça sempre disfarçava sob variadas figuras de estilo as partes mais emotivas do seu texto.
Numa linguagem comum, fugia a ser lamechas, sem deixar de ser humano.
Aqui sucede algo assim.
Um texto muito humano suscitando a questão de consciência de saber porque haveria uma criança de ser desprezada por um facto a que além de ser alheia, ainda era para si factor de sofrimento?
Aliado a uma grande criatividade e imaginação.
Muito lindo, muito obrigado por escrever e partilhar.

Um beijinho amigo

Maria

Kássia Kiss disse...

Achei muito interessante. E é bom ter uma personagem de romance que goste de andar ao km, num tempo em que se pega no carro para ir visitar o vizinho que mora no prédio ao lado.

O Sete Pés vai longe! E o amigo Pata Negra também! Força!

José Lopes disse...

Cheguei aqui de pé descalço, e dentro de casa porque o S. Pedro teima em molhar o meu poiso preferido.
Cumps

Compadre Alentejano disse...

Gosto do 7pés. Afinal, comeu as papas que o diabo amassou!...
Abraço
Compadre Alentejano

do Zambujal disse...

Pata Negra, Majestade (majestaticamente com M),
por causa das confusões por outras leiras (e lérias) imiscuídas, venho dizer-te que, usando do dom da heteroneidade e da ubiquidade, tenho dois candidatos: um, és - in(de)fectivelmente, TU -, outro, "AQUELE".
Espero poder ter dois votos... e tu também!

Dois abraços

Leitor compulsivo disse...

Não podias encurtar?
É que custa estar à espera do 7pés3!...

Anónimo disse...

Há textos que nos prendem desde a primeira palavra. Perto do fim vamos sentindo a doce amargura de um copo que vai ficando meio vazio e ansiamos por mais. Grande Pata Negra!

GR disse...

Mais uma razão para poder dizer se não tivesse o meu candidato, votaria em ti, mas o meu candidato "Avança, com toda a Confiança".
Em quase todas as terras houve um “sete pés", filho de ninguém, um mal amado, um solitário, conhecido e desprezado por todos. Mas nenhum deles foi homenageado com um texto tão bonito.

Um abraço,

GR