segunda-feira, 1 de novembro de 2010

Sete Pés Dez

Mas continuemos, antes que "os porquês" respondam mal e nem sequer cheguemos a Santiago.

O albergue de Pontevedra surpreendeu pela moderna arquitectura. Sete Pés foi recebido por uma responsável que já o esperava por informação da francesa que chegara primeiro.

Foram apresentados todos os espaços e equipamentos desde a cavalariça às máquinas de roupa e de cozinha, à sala solene com as paredes compostas com retratos de gente digna de retrato. A volta alongou-se com a conversa porque a senhora também era portuguesa. Viera parar a Pontevedra por casamento no Brasil e, via essa história de vida, se fizera presidente da Associação dos Amigos do Caminho Português de Santiago.

Provavelmente por método de hábito, guardou a camarata para o fim, era um espaço amplo que não fazia separação de sexos. Lá estava Marie, quase ao fundo, sentada numa das camas, a coser páginas do seu diário. Empreenderam os acenos e sorrisos da ordem enquanto a portuguesa sugeria ao recém-chegado um beliche junto à entrada:
- Pode ficar aqui, está mais perto dos lavabos! Já disse à senhora, não sei se ela percebeu alguma coisa do que eu disse - não estamos muito habituados a caminheiros que não sejam portugueses no Caminho Português - como é que a casa funciona. Amanhã de manhã aparecerá aqui alguém para fechar a porta.

Quando a anfitriã se despediu de ambos, mais uma vez, os Pés sentiram o incómodo dos obstáculos que impediam aproximação a Marie. À medida que Pé de Meia esvaziava a mochila e tratava das coisas, Pé de Atleta ia olhando para o sítio da companheira de viagem mas, à distância de sete ou oito metros, era-lhe difícil avançar com mais do que um encolher de ombros ou um mostrar de dentes. Pé Ante Pé arranhou francês, quando partiu para o banho, ensaiando demanda acerca da temperatura da água.

Pé Descalço regressou seminu e, depois de se esfregar de cremes e pomadas, sacou da agulha e da linha e pôs-se às bolhas. Quais bolhas?! Os pés estavam uma lástima!
Não existia um único Pé que demonstrasse jeito em cuidar deles.
Marie ia a passar ao fundo da cama e olhou-os com manifesta compaixão. Sem comentários, foi às suas coisas buscar umas pomadas e umas pinças e pediu autorização para fazer o tratamento. Pediu também ao enfermo que se deitasse.

Convém lembrar que os sete pés que aqui se estendem não têm, pelo menos até agora, dedos que se contem além dos dez com existência física e que, nos cuidados em exercício, a dividir por sete, não chegavam dois a cada. Nesta circunstância houve que repartir – mal! – o bem pelos pododactilos.

Água Pé estremeceu, não tinha memória de alguma vez ter sido assim tocado. Durante o trabalho de enfermagem foi também tocado por um rol de pensamentos e sensações até se esquecer de todos os pés. Ou melhor, todos os pés entraram numa espécie de transe. Pé de Vento foi o primeiro a retomar a consciência, quando se deixaram de sentir as mãos macias e se ouviu a voz de Marie. Agarrava e mirava o par de botas enquanto lhes tecia defeitos em francês. Um atrás de outro foram acordando de boca ensonada e só Pé de Meia conseguiu formular um pensamento:
- Foram tão caras!....
Para comprovar os conhecimentos técnicos que discorria, Marie voltou à sua cama e regressou com as suas botas para apontar as características que as faziam próprias para grandes caminhadas. Deu também conselhos de meias e ensinou-lhe a técnica de ir colocando jornais à volta dos pés para absorver o suor.
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Todas as segundas feiras. Pode(s) ler toda a história em O Caminho do Fim da Terra

9 comentários:

Cristina Torrão disse...

Tão romântico, tão romântico... que me fartei de rir. Um dos melhores "episódios", parabéns!

E gostei muito da foto do albergue, bonito, sim senhor!

José Lopes disse...

Caminhantes conhecedores e com a ternura que advém do sofrimento e da camaradagem que se revela.
Cumps

Compadre Alentejano disse...

Força 7Pés! Quero-te ver em Santiago.
Abraço
Compadre Alentejano

antonio ganhão disse...

Em alguns aspectos, poucos, as mulheres surpreendem-nos com o seu sentido prático (um prodígio da evolução humana).

Está difícil o passo por que todos esperamos.

MARIA disse...

Belo texto, Majestade.
Gostei muito.
NB -
Eu sabia, por intuição, que os jornais tinham uma função verdadeiramente útil, mas foi uma surpresa agradável descobri-la
assim, como quem descobre a essência da era dos comos e dos porquês, se confortam mãos e pés lheios, quando apertam as bolhas.

:)

Muito especial este texto, como todos em regra os que Vossa Majestade produz.
Não pode negar-nos que todos os seus pés metem a Mão Cheia na Escrita de Excelência!

Um beijinho amigo

Maria

MARIA disse...

Aquilo ali era " pés alheios"...
peço desculpa pelo lapso. :)

samuel disse...

Uma ternura!
Quanto à verdadeira e inesperada utilidade dos jornais... estou com a Maria. :-)))

Abraço.

Zé Povinho disse...

O uso dos jornais é bem conhecido lá pelo Leste europeu, onde fazia um jeitão nos tempos de maior carência, tanto para o agasalho (forro dos casacos), como para os sapatos (mantendo os pés secos e tapando os buracos das solas).
Abraço do Zé, que só dá caminhadas curtas

opolidor disse...

alguma amizade no ambiente, mas tambem outros desejos perceptíveis...
abraço