segunda-feira, 22 de novembro de 2010

Sete Pés Treze

Marie regressou e voltou a dizer, agora apenas com um movimento de inclinação de cabeça: - Allons y?!
Puseram as mochilas às costas e deram-se ao passo sem falar. Sete Pés continuou a pensar de coisas banais. A natureza da relação com a sua companheira de Caminho era enriquecida pelo facto da barreira linguística não permitir a banalização da palavra.
Uma Igreja. Marie tira uma fotografia ao pórtico. Sete Pés, fazendo a ponte com os pensamentos das imagens, pensa nas palavras que tornaram banais, inconsequentes e sedativas as homílias dos padres seculares.
À saída da cidade, numa rotunda, sinais de trânsito, painéis publicitários. A poluição visual! Palavras gráficas?! Oh! Imagens gráficas!! É demais! No Caminho devemos libertar-nos dessas coisas!

Atravessada a Ponte del Burgo sobre o rio Lerez, Pé Chato começou a repetir aos seus íntimos que não teriam pés para acompanhar a experiente caminheira, levando sempre ricochete do Pé de Atleta que reafirmava a sua determinação para acertar o passo na dura prova que os esperava até Caldas de Reis. Numa coisa todos os pés estariam de acordo: “como seria bom cumprirem aquela etapa com aquela companhia!”.

O discurso continuou escasso, talvez por conveniência, diferença de língua ou simplesmente porque nenhum de ambos era de feitio de se dar à banalização das palavras. Almoçaram juntos a omnipresente sandes de xamón mas, durante a tarde, os ritmos de andamento, o aparente, conveniente ou natural desprendimento entre ambos, a independência ou os diferentes modos de construir o Caminho separaram-nos. Ou então aceite-se que, por vezes, os chatos têm razão!

Sete Pés atravessou a ponte sobre o rio Umia que marca a entrada em Caldas de Reis – a antiga Aquae Celenae, um balneário romano de águas termais afamadas - com os sete pés zaragateando nas habituais discussões, desoxigenados, fora de si, obcecados pelo fim da etapa, por um assento de paragem.

Questionando a realidade ou a alucinação, avistaram na margem do outro lado, no rés-do-chão dos prédios de quarto andar, uma enorme esplanada com gente a chupar sorvetes, a sorver bivalves e a bebericar cervejas. Nas margens do quadro, uma mulher só, numa mesa de duas cadeiras e com a mochila ao lado. Era esse o destino. A cada passo exausto, a realidade vencia a alucinação.

- Olá!
- Oito cervejas!
Pediu a francesa como se já tivesse pressentido a multiplicidade do esperado Sete Pés. Ajeitaram explicações para o caminho do dia, para o desencontro e para o encontro e bebeu-se até o prazer de beber por sede dar lugar ao prazer de beber por prazer.

Marie já tinha investigado que naquela terra não havia albergue e que teriam de procurar um hostal. O “teriam”, dito na forma “teremos”, primeira pessoa do plural, embebedou Água Pé de autoestima e satisfação. A foto dos dois em Pontevedra não seria a última, “habemos” par!
Tanto assim foi que na recepção do hostal Cruceiro, o funcionário os entendeu como um casal e assim fez preço e, entre os dois companheiros, não houve hesitações ou indagar de expressões à circunstância de uma única chave lhes ter sido entregue.
Recepção Hostal Cruceiro
__________________________________________________
Todas as segundas feiras.
Pode(s) ler toda a história em O Caminho do Fim da Terra

7 comentários:

Cristina Torrão disse...

Já estava a ver que o receio "de se darem à banalização das palavras" ia estragar tudo. Mas, bendito hostal, agora, ou vai, ou racha...
(é que há momentos em que não são precisas palavras... Espero que eles saibam isso).

Zé Povinho disse...

A Marie gostará mesmo de Água Pé? A deste ano estava ainda um pouco turva no dia 11, mas agora já está limpinha, que o frio deu uma ajudinha.
Abraço do Zé a dar no pé

antonio ganhão disse...

Convenço-me de que fizeste esta peregrinação... e agora deixaste-me curioso, que histórias nos guarda o hostal? Já sabemos que não serão de palavras banais.

MARIA disse...

Majestade, simpatizando eu tanto com o nº 13, não poderia deixar passar o momento sem deixar-lhe aqui uma impressão sobre este texto.
Efectivamente, revela conhecer muitíssimo bem o percurso dessa peregrinação.
E para além disso a sua escrita é sempre irrepreensível e encantadora.
Desculpará Vª Majestade, mas há umas pequenas coisas que não compreendo : aonde permanece o marido dessa Marie enquanto ela se refastela de pés ?...
Não me diga que depois vai invadir o Hostal Cruceiro e tirar ao Sete pés qualquer coisa que lhe faça mais falta independentemente do caminho ?...
Pronto.
Não tento adivinhar.
É escusado. Já sei que nos surpreenderá mais uma vez.

Um beijinho sempre amigo da

Maria

do Zambujal disse...

ça ira!
Que tudo corra bem... até a viagem de regresso que pode ter de ser feita um pouco apressadamente com tantos pés às costas.

Olha, continuo a gostar do contar.

Abraço

samuel disse...

Sinceramente... votos de "boa viagem"!

Abraço.

opolidor disse...

e o mais interessante é tambem o poder descritivo dos lugares...

abraço