segunda-feira, 18 de abril de 2011

34 - O Caminho do Fim da Terra



O local costumeiro era o banco corrido da varanda corrida virada para o mar.
Pé Ante Pé dizia:
- Vou para a varanda trabalhar!... Vou sentar-me a pensar! Sou pensador de profissão!
Marie ria e contrapunha:
- Então espera lá que eu já lá vou ter! Sou amante profissional!
E então acontecia muitas vezes que, enquanto Pé Ante Pé pensava, um ou outro pé coçava o amor.

- Aprecio num homem o humor, humildade e desinteligência!
Água Pé riu-se e limpou baba do queixo e Pé Descalço esfregou satisfeito os dedos das mãos entre os dedos dos pés e cheirou as mãos. Passaram olhares interrogativos de pé em pé como se pela primeira vez fossem levados a concluir que nenhum deles era inteligente! Marie topou as movimentações de identidade e a pretensão de encaixarem no seu trímodo de homem ideal e apontou na direcção dele:
- Mas tu és inteligente!
- Não sou nada!
- Ora, a pessoa que não se considera a si própria inteligente é porque é burra!
- Logo, não sou inteligente! Mas se isso te põe contente, também não me parece muito inteligente uma mulher que ama um burro!
- Vês és inteligente! Aliás, se não o fosses, eu já teria percebido com que pé estou a falar. Mas não, estou às escuras!
- Então acende a vela!
- Não tens piada!
- Mau! E vão duas – nem pêlo de burro, nem sentido de humor!...Também não sou humilde?!...
- Se fosses humilde, reconhecerias que és inteligente!
- Não quero mudar o mundo, quero apenas que o mundo não me mude a mim!
Os homens inteligentes criam empresas e negócios ou estudam e fazem carreira, eu não passo dum humilde órfão que está aqui a tentar fazer rir uma reformada!
- Nem todos, muitos deixam-se encantar por outras coisas da vida mas acabam por se perder no amor, no vício ou na revolta. No teu caso, receio que estejas perdido pelo amor!
- Se estou! E acabo de ser formalmente informado, que não sou correspondido!

Com o tempo a passar e estas reflexões adolescentes, não apareceu o tédio mas a paixão, o caso, começaram naturalmente a sofrer transformações.
Marie não dispensava o seu tempo diário para o seu Diário. Todas as noites, antes de ir para a cama ou já na cama, pegava na caneta e discorria. Do que escrevia nada contava e nunca deu a Sete Pés confiança para pedir relatos ou para dar espreitadelas. Aquele caderno fazia parte de uma intimidade intocável.

- Estás convencida que um dia serás famosa por isso? Para que raio escreverá uma pessoa se não for para outros lerem? Para ler só ela?! Só se tiver um problema grave de memória ou se gostar de se masturbar literariamente!...
- Masturbação literária! Vou registar essa! As pessoas que não escrevem diários vêem sempre a escrita não documental associada aos romancistas que fazem dinheiro com o que escrevem. Não compreendem que, tal como as pessoas que correm no parque não têm motivações competitivas, o fazem apenas por gosto e para manter a forma, também nós, os que cultivamos a escrita de gaveta, o fazemos apenas por prazer e exercício!
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Todas as segundas feiras.
Pode(s) ler toda a história em O Caminho do Fim da Terra.

8 comentários:

antonio ganhão disse...

Excelente diálogo, inteligente e muito para além de duas vozes, como diz Marie ficamos sem saber com que pé estamos a falar.

Será apenas o prazer da escrita que nos move, ou estaremos condenados a ela?

samuel disse...

Bela conversa!
... e inteligente! :-))) :-)))

Abraço.

José Lopes disse...

Ainda bem que há quem se exercite com a escrita e nos vá fazendo esquecer, ainda que por algum tempo, as agruras da realidade que desgraçadamente nos rodeia.
Cumps

opolidor disse...

ora aqui está o cerne do episódio, o prazer da escrita, o ser capaz de com as palvras traçar os cenários e os contornos do espírito...

abraço

opolidor disse...

acabei de comer um "a".

Pata Negra disse...

polidor:
engoliste-o?! Queres um copo de água?
Um abraço com fome

Mar Arável disse...

Excelente diálogo onde o leitor também participa

encantado

Abraço

MARIA disse...

Escrita exemplar, texto encantador.
PARA SI

http://youtu.be/QGPToy3gfDI

Bom domingo de páscoa, majestade.

Um beijinho amigo

Maria