domingo, 18 de março de 2012

Meu pai era peixe

Não me recordo de ter visto mais de duas linhas escritas pelo meu pai. Um recado na mesa da cozinha, umas contas de bicas de pinheiros e nada mais. Via-o escrever, de mãos trémulas como as que tenho, quando parávamos ali para os lados da Venda das Raparigas e ele preenchia um folha de um livro de impressos, qualquer prática obrigatória que mais tarde viria a evoluir para os actuais discos tacográficos dos camionistas.
Quando eu tirava Bom a Matemática dizia-se lá em casa, ou o próprio ou a mãe:
- Sais ao teu pai! Também era bom nos problemas!
Pelo que vi e pelo que me fizeram acreditar, vivi sempre convencido que quem escrevia as coisas bem era a mãe e que quem fazia bem as contas era o pai.
Quando o tempo de chuva e a idade de brincar me reduziam à pequena casa que era a nossa, eu vasculhava os armários e as gavetas, com esperança que a curiosidade me oferecesse alguma coisa para me entreter. Afinal de contas a casa também era minha, eu tinha o direito de saber tudo o que ela guardava.
Confesso-te agora pai que, quando a mãe propôs a compra de um fogão com forno para substituir o de dois bicos e tu disseste que não tínhamos dinheiro, eu tinha contado nesse dia as notas que estavam na caixa de sapatos e fiz as contas: aquilo dava para um fogão e para mais de meia dúzia de garrafas de gás e ainda sobrava para uma garrafa de aguardente para as constipações!
Só não entendo porque é que tu e a mãe guardaram, ainda melhor do que o dinheiro, o maço de cartas do vosso namoro que só agora, pelas sortes, encontrámos. Não chorámos, não rimos, dissemos satisfeitos um a um, talvez em coro:
- Olha que o pai escrevia mesmo bem!


- Olha pai, sabes? Eu, se não houver ondas, não me afogo!
(estou à vontade para dizer estas coisas ao meu pai porque além de peixe, ele era fish|)

10 comentários:

jrd disse...

Que bom ter vivido num "aquário" como o teu.

Abraço

salvoconduto disse...

Ai tu também eras bom nos problemas? Eu também! Arranjei cada um ao longo da vida que nem te conto, o pior foi em terra de Macuas, agora arranjei outro em Janeiro quando me aliviaram de um mês de salário, não há peixe nem caixa de sapatos que me valha e tu não te fies, com ou sem ondas há sempre alguém que puxa para o fundo, o melhor mesmo é teres uma moca atada ao pulso como fazem no surf.

Maria disse...

O mar tem estado calmo. Mas vem por aí tempestade. Um dia destes.
Aprende a nadar, companheiro!!!

Abraço.

do Zambujal disse...

Munta fish!

Lindo texto.

Quando for pai (estou quase... já sou avô!) gostaria de ler coisas dessas a mim endereçadas.

Grande abraço

Anónimo disse...

Linda escrita dedicada ao pai! Meu pai também era peixe, nasceu a 9 de Março.Deixo um beijinho

Zé Povinho disse...

Bom texto para este dia.
Abraço do Zé

maceta disse...

Pata
tu, quando queres, tocas o cume...

abraço

Mar Arável disse...

Abraços tantos

M A R I A disse...

Bela homenagem, belo texto, rico pai !

Um beijinho amigo

Maria

samuel disse...

Bonito!
Pelos vistos, algumas heranças valem mais do que outras...

Abraço.