domingo, 21 de abril de 2013

Milagre do diabo

Amarida Cruz tinha licença da câmara da vila para o negócio. Carregava os ceirões à burra com uma mesa de duas gavetas - uma para os trocos e para o que desse, outra para os panos e para o que viesse – duas garrafas de aguardente, dois garrafões de vinho, meio alqueire de tremoços, um pacote de café de cevada e outro de açúcar, uma caixa de fósforos, uma cafeteira, um jarro, seis copos, meia dúzia de chávenas, uma colher para cada par, um alguidar e uma bilha para a água. Se vendesse tudo seria dia grande.

Fazia o mercado de segunda, os dois, os doze e os vinte e quatro, arraiais de santos e enfeites de merendeiras, saídas de missa e o são joão.

Tomara este negócio para somar aos “dias fora” porque perdera a força do marido que, ainda por cima, a deixara de meses. Ao malvado tinham-se-lhe enfiado umas ideias na cabeça, não ia à missa nem à confissão, dizia mal do Salazar e lia livros que não eram da igreja. Por estar possesso de ideias que não lembravam ao diabo acabou preso e deportado para África ou para a Índia, sabia-o ela mas não o povo que o tinha como morto num descarrilamento. Soube a mulher aproveitar a coincidência da data do desastre com a do embarque onde, por excepcional concessão da polícia, teria ido despedir-se do demónio, regressando à terra em falso luto e de lágrimas teatrais - “ficou todo desfeito! nem foi possível fazer-se funeral!”.

Com tamanha mentira seria mais fácil voltar a ter homem do que se soubessem vivo o desgraçado que ela tinha de esquecer. Não teve a sorte de outro mas fez do filho um braço de trabalho! Não estava para o perder ao serviço do exército ou do Carmona. Chegada a idade da inspecção ensinou-o a ter um dedo torto e advertiu-o vezes sem conta para que se eles lhe perguntassem como ele o tinha antes não se descaísse e o mostrasse direito.

Regressou o grupo de mancebos do quartel, em dia de domingo, depois de uma noite de folia sem pregar olho como era tradição, ao largo da igreja, ainda havia gente de finais de missa. Uns contentes porque apurados e dois a pagarem rodadas por ficarem livres. Eufórica com a esperteza que transmitiu ao filho, pagou ela própria não recebendo dinheiro para a gaveta e ela própria apanhou uma piela de caixão à cova. Foi bem torcida que, sensibilizada pela sede dos rapazes e tendo a venda toda já esgotada, se virou para o filho do sacristão, o outro safo por não conseguir dobrar a língua, e lhe disse também de língua enrolada:

- E tu não pagas nada?! … Sabes bem onde há vinho na igreja!... Vai lá que a esta hora já está tudo a almoçar! Ninguém vai ver!

Estava a garrafa roubada a passar de boca em boca quando um homem, vindo do lado da estação se aproximou! Amarida da Cruz não teve dúvidas! Era o diabo do homem que voltava!

Deu três passos cambaleantes para trás, deu de traseira no tanque do chafariz do largo e, antes de bater com o traseiro na água, gritou alto:
- Milagre!!!
- Pôla! Robê pinga já consagada!

(Bem sei que as histórias se repetem e esta é uma delas! Na falta de melhor, há que pôr histórias contadas a render!... Enquanto houver electricidade para o carregador do portátil, este blogue vai continuar, nem que se repita! Todos os sábios se repetem! Não serei sábio mas vivo essa utopia!

10 comentários:

Anónimo disse...

Era esta a Maria da Cruz, daquele fado lindo da Amália? Se o nome era Maria e o sítio era Cruz, alí para os lados da cruz da rua, da Mouraria, devia ser, sem duvida, a Maria da Cruz!

Anónimo disse...

Mais uma estória ( com imprevisto ) bem escrita.

Anónimo disse...

A mentira tem pernas curtas.

Muito bom.Gostei.

M A R I A disse...

Uma estória rara, de uma época rara, com protagonistas raros, abordando várias problemáticas sérias aparentemente a brincar e um final feliz ou talvez simplesmente de protocolo : que unia esse casal ? Os ideais? Os valores? ...

Que bem pensado e que bem escrito! Obrigado por partihar.

Um beijinho amigo

Maria

Zé Povinho disse...

A pinga consagrada fez o seu efeito e pobre lá tombou de traseiro na água que a deve ter feito muito bem...
Abraço do Zé

jrd disse...

Uma "estória" deliciosa e que bem contada.

maceta disse...

no "meu tempo" eu fui à inspecção, de resto, tambem não tinha carro...

abraço

cid simoes disse...

Está uma delícia. Mais um copo à nossa saúde e outro ao 25 de Abril.

JFrade disse...

Recordo-me desta história, que teve honras de ser "História Devida", mas foi com enorme prazer que a reli.
O Rei dos Leittões, para manter o blogue vivo, vai ao baú buscar coisas bonitas que já antes nos mostrou. Se bem o entendo, não é porque lhe tenha abalado o engenho ou escasseiem eventos merecedores de uma opinião à sua maneira. O mal é mais profundo. É este descontentamento que nos aflige, a tristeza que nos invade, a incerteza do nosso futuro e dos nossos que nos inquieta e, porque não dizê-lo, o estado de depressão de que todos padecemos. E a coisa não é para menos. Entrámos num raio dum túnel tão comprido que, se nada se alterar, vai demorar muito tempo até vermos a luz lá ao fundo.E este estado de coisas justifica quão mal nos sentimos.
JFrade

Anónimo disse...

José era louro e um bocado lerdo, mas arranjou uma namorada num dia de inspiração.
Um dia, saíram de carro para um passeio pela Costa da Caparica.
Depois de andarem alguns kms, o José ganhou coragem e pôs a mão na perna dela.
E ela disse: Se quiseres, podes ir mais longe...
Animado, José foi até ao Seixal...