sábado, 11 de março de 2017

Relatório oficial sobre os acontecimentos de Fátima

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A concorrência, no dia 13 de Outubro, foi inferior à de 13 de Maio do mesmo ano. Houve missa campal, mas não se realizou a procissão. Em 13 de Maio de 1923, a aglomeração  foi superior à de 13 de Outubro de 1917, mas isto devido à grande propaganda e  à circunstância de o referido dia ser domingo. A força enviada não chegou a intervir, apesar de na Cova de Iria se efectuarem procissões sem a permissão da autoridade.

A este tempo já estava quase concluído um enorme poço, que o bispo de Leiria mandara fazer, para recolher as águas pluviais, pois a Cova de Iria que, como disse, tem a designação de depressão de terreno, deve comportar 500 pipas de água, não que ali brote, como falsamente tem sido propagado, mas que ali armazenam, para vender ao público, o que constitui larga receita. Começaram já a murar o terreno adquirido, que deve ter, aproximadamente, 250 metros de comprimento por 150 de largura. A compra do terreno deve ter custado 80 contos.

São muitos os promotores ou interessados desta peregrinação, mas o principal é o bispo de Leiria. É quem tudo orienta e dirige. Na procissão, a que já me referi, nomeou uma comissão para averiguar da “veracidade do milagre” e organizar o processo segundo as leis canónicas. Conheço alguns dos nomeados – autênticos inimigos do regime republicano e criaturas vulgares, que antecipadamente o bispo muito bem sabe que implicitamente lhe aprovarão por unanimidade o grande milagre. Constituem a referida comissão os padres João Quaresma, vigário geral da diocese; Manuel Marques dos Santos, director da Voz de Fátima; Joaquim Coelho Pereira, prior da Batalha; Joaquim Ferreira Gonçalves Neves, prior de Santa Catarina da Serra; Agostinho Marques Ferreira, pároco de Fátima; Manuel Pereira da Silva, professor do Seminário; Manuel Nunes Formigão, professor do liceu de Santarém, e Faustino G. Jacinto Ferreira, vigário da Vara de Ourém. Pelo falecimento deste, foi nomeado o sobrinho, Faustino Ferreira, também vigário da vara. Como as obras da cerca estão a concluir-se, deve estar também a concluir-se o processo canónico. Nenhum orçamento ou estatuto até hoje passou pela Administração do Concelho, nem se sabe verdadeiramente onde o dinheiro é aplicado.

Pelo artigo 57 da Lei da Separação, só serão permitidas manifestações de culto externo, onde e quando constituírem um costume inveterado. Ora, na via pública, na estrada 121 (ramal), tal não acontece e por isso não poderão ser permitidos actos de culto externo. Na Cova de Iria foi feita da capela uma casa, espécie de chalé, onde os padres têm a santa, pregam sermões e dizem missa. Foi-lhes retirada autorização para qualquer acto de culto fora daquele local.

A multidão que vem à Cova de Iria é composta de diferentes classes. Vão os crentes ingénuos e simples, arrastados pela crendice; vão os negociantes de comes-e-bebes e vendilhões de rosários, das estampas, etc.; vão os petisqueiros com os seus farnéis; vão os curiosos, os descrentes, politiqueiros, etc., uns sozinhos, outros com a família ou os amigos, mas a grande maioria é decerto constituída por gente rude, de longes terras, onde predomina o fanático e o reaccionário. Os concelhos que fornecem maior número de pessoas são: Torres Novas, Vila de Rei, Mação, Proença-a-Nova, Oleiros, Idanha-a-Nova, Fundão, Sardoal, Ferreira do Zêzere, Sabugal, Vila Velha de Ródão, Pedrogão Grande, Figueiró dos Vinhos, Ponte de Sor, Alter do Chão, Fronteira, Pombal, Alvaiázere, Porto de Mós, Batalha, etc.

Fátima é hoje, no país, uma etapa da Reacção, que procura ponto de apoio para base da sua resistência. O facto de se não ter impedido eficazmente a peregrinação deveu-se simplesmente a terem as forças armadas chegado tarde. É certo que foram postas à minha disposição forças das unidades mais próximas porque aquelas que chegaram no dia 12, à tarde, eram insuficientíssimas, mas, requisitando mais, tinha dois caminhos que trariam para o Regime inconvenientes novos.

As forças que eu requisitasse das unidades mais próximas, só aqui chegariam no dia 13. Ora no dia 12, já estavam em Fátima, seguramente, 25000 pessoas. Com o auxílio de novas forças poderia eu ter ido a Fátima dispersar 50000 a 60000 pessoas? O sangue que fatalmente correria não seria uma arma terrível contra o governo e contra o Regime? Por outro lado, não me utilizando a força, cairia, pelo menos, no ridículo, e não querendo, por princípio algum, desobedecer a V. Ex.ª, preferi não requisitar mais a tropa e mandar a pequena força para onde fora requisitada, fora do local da Cova de Iria, tanto mais que a mesma força seria suficiente para impedir a saída da procissão  de Fátima, caso teimassem em realizá-la, o que, todavia, não era preciso, pois que eu já tinha conseguido impedir a sua realização por outros meios mais suazórios, embora não deixassem de causar receio ao pároco da freguesia e a outras pessoas.

Às 22 horas da noite de 12, veio o Dr. Andrade e Silva (a pedido da Sr.ª D. Madalena Serrão Machado, que tem feito a perigosa propaganda da cura do cancro pelas águas pluviais da Cova de Iria) pedir a realização da procissão. Neguei-lhe terminantemente permissão para esta e fiz-lhe saber que no dia 13, prenderia o pároco da freguesia. Pediu-me então aquele cidadão que tal não fizesse, tão convencido estava o Dr. Andrade e Silva de que eu tinha esse intuito.

Na comunicação enviada a V. Ex.ª, julgo que em 10 do corrente mês, frisava eu que havia duas maneiras de intervir.
1ª) O Governo mobilizaria os meios de transporte em diversos distritos; 2ª) ou, então, a Guarda Republicana impediria que se realizassem  actos de culto externo. Embora, como V. Ex.ª sabe, me prejudique materialmente continuar por muito tempo neste lugar, que V. Ex.ª se dignou confiar-me, eu não terei essa dúvida, se assim for preciso, de nele me conservar, porque nunca hesitei no cumprimento dos deveres de republicano, que me prezo de ser, desde há longos anos.

A Reacção vai triunfando, hipocritamente, e a Liberdade perde terreno, fazendo-lhe concessões. Aquela está fora da lei e é necessário metê-la na ordem. Julgo que há maneira de jugular a Reacção da Cova de Iria. Quando o Governo não possa, ou, para melhor dizer, não queira mobilizar os meios de transporte em diversos distritos, tomar-se-iam, a pouca distância da Cova de Iria, as embocaduras das estradas que conduzem a Fátima, anunciando-se devidamente o caso com certa antecedência. Fazendo isto, durante meses consecutivos estou certo que a Reacção sofreria um grande golpe, deixando a pretensão de ter um Estado dentro do Estado.

Junto vários documentos.
Saúde e fraternidade!

Vila Nova de Ourém, 31 de Outubro de 1924.

O Delegado do Governo encarregado do inquérito,

ARTUR DE OLIVEIRA SANTOS.

2 comentários:

Zambujal disse...

Um trabalho muito útil!
Obrigado por ele. Documentação existe. Mas uma máquina poderosíssima, criadora e divulgadora de "factos alternativos" (essa "invenção" de Trump!...) foi muito eficaz.
Há que sublinhar que estes relatórios antecedem o 28 de Maio de 1926 (o livro de Rodrigues Miguéis O Milagre segundo Salomé é um excelente enquadrador destes relatórios.

Forte abraço

Anónimo disse...

"É muito próprio do vulgo desconfiar de quem o estima e confiar nos que o enganam."

la boétie