domingo, 25 de outubro de 2020

O Espírito Santo e os Pink Floyd

Parte I

Preparou o carro, a bagagem e a família para a viagem. O carro era o grande investimento da sua vida, o cumprimento de um sonho comum. O passeio seria o primeiro da família em automóvel e o destino o cumprimento de uma promessa antiga.

Quando jovem, fora de comboio três temporadas fazer rancho para a faina do arroz. Sentira o cheiro do suor dos trabalhadores que, com ele, faziam a faina do arroz. Sentira o cheiro do dinheiro do banqueiro Espírito Santo nas lamas da faina do arroz. Ao fim de tantos anos, voltar à herdade da Comporta, era o pagamento de uma dívida que tinha com a sua memória, uma obrigação de testemunho que devia ao filho, uma aventura que lhe poderia facultar o prazer de reencontrar velhos amigos que ficaram sadinos.

Em troca das velhas histórias que fez ouvir durante a viagem, teve de gramar com as músicas do filho que explorava a novidade do gravador de cassetes. Em cada trinta quilómetros a cassete  pirata era virada ou substituída: Atom Heart Mother - Pink Floyd; Close to the Edge – Yes; Deja Vu - Crosby, Stills, Nash and Young; Rattus Norvegicus - Stranglers.

Chegados, tiveram casa porque Carminda Rego reconheceu o velho amigo e o velho amigo reconheceu Carminda Rego. “Tu a certa altura desapareceste!...”;“Fui presa!...”; “Isto ainda é do Espírito Santo?”; “ Isto agora é nosso, companheiro! Foi nacionalizado!…”

De regresso à terra contente de rever e de cumprir, orgulhoso do comportamento da família e do carro calhou dizer “ eu posso não voltar mais, mas este carro...”

Parte II

Preparou o carro, a bagagem e a família para a viagem. O carro fora o grande investimento da vida de seu pai. Estimara-o após a sua morte e por ele se fez sócio do Automóvel Clube de Portugal. Este era o tempo de voltar com ele a Comporta, de poder voltar a ouvir as velhas cassetes, de fazer transferir, via pai, memórias de avô para neto.

Entusiasmaram-se com a aventura de ir tão longe no velho carro, gramaram ouvir as velhas cassetes, encheram-se de histórias de arroz e alojaram-se no aldeamento Casas da Comporta. Não encontraram sinais de Carminda Rego mas viram o poder do Espírito Santo.


Regressaram hoje a casa, de comboio.
- Pai! Não penses mais nisso! Já estava tão velho!
- Estou velho demais para me preocupar com o carro! Já nem me lembro da marca dele! Eu estou aqui é a pensar no que é que o Mistério da Santíssima Trindade tem a ver com o regresso do Espírito Santo à Comporta!...
- Pai!...
- Filho!...
E dito isto benzeu-se em voz alta e pensou que era Abril.

Parte III

Se hoje voltassem à Comporta por certo já não veria sinais do Espírito Santo. Por ironia também não veriam sinais de que a herdade era do povo. Será de quem? De outros espíritos iluminados, de outros santos...
- De quem é a herdade da Comporta? Eis a questão.

(A Herdade da Comporta é a maior herdade privada existente em Portugal)

3 comentários:

TerraFria disse...

Um dia virá o seu a seu dono... mas não será por obras e graças dos Espiritos Santos.
E amen!

Olinda disse...

As terras-de-espírito-santo viram nascer minha mãe e minhas tias.Terra de arroz,de miséria e de mosquitos expulsavam quem lá vivia.Ainda assim,as histórias da monda do arroz e os bailes à luz das fogueiras acompanharam o meu crescimento.De quem é a herdade ,que atravessa duas freguesias?Pelo que já pagámos...

Manuel Veiga disse...

o "terra fria" parecee saber da poda
estou de acordo com o que diz...
e tuas memorias muito bem contadas~

haja saúde, Majestade!
abraço