sexta-feira, 27 de outubro de 2023

Memória da banda The Kwent´s

 A vida artística tinha destas coisas.

Agostinho, o "manager" da banda, tinha sido baixo e continuava baixo mas, mais tarde, só dava um “coup de main” por falha do músico ou se bebesse, o que acontecia duas ou três vezes por ano. Podia subir ao palco para cantar o seu interminável “blues” com letra em português, francês e inglês, tudo à mistura, podia fazer uns números de acrobacia que abriam a boca ao público.

Numa dessas ocasiões, o Agostinho, levou os seus dotes circenses demasiado longe. Já tinha passeado pelo palco com as mãos no chão e com os pés à volta do pescoço, já tinha feito de anão dobrando as pernas pelo joelho com os pés junto ao traseiro, já rodara o microfone pelo cabo à moda de rancheiro do velho oeste, já o “blues” levava mais de meia hora e dá-lhe para andar, a cantar, pendurado na estrutura de suporte do telhado do recinto até se acomodar, escarrapachado, dois metros acima do público que o admirava de cabeça virada para o ar:

“Eu sou um velho maltês/ Casa para mim nunca se fez/Já não tenho sola nos sapatos/Passo as noites duas e três/Embrulhado numa manta de farrapos….”

E eis senão quando, ao tentar um mortal de regresso ao solo, fica espalhado sobre a mesa misturadora. De imediato ergue-se entre aplausos e dá ordem à banda para continuar.

No final de tão brilhante atuação a organização do baile recusou-se a pagar-nos o contratado alegando que não tínhamos tocado nada de jeito e que tínhamos excedido o tempo do contrato. Quem teve de conduzir a carrinha no regresso, já que ninguém mais sabia conduzir, quanto mais carta, foi o Vitor com os seus catorze aninhos.

No dia seguinte, ao almoço, a minha mãe interrogou-me acerca dos acontecimentos já que soubera que o Agostinho, durante a manhã, fora transportado de ambulância para o hospital.

Foi uma atuação em cheio porque o “blues” era uma coisa que nos unia a todos, porque o espetáculo de improviso era uma coisa que nos dava muito gozo, porque o descambar da noite era a coisa que mais gozo nos dava, porque eram únicas as noites em que o Agostinho e nós nos estávamos nas tintas para o pagamento, para o recebimento, para o tempo e para as horas a que iríamos chegar a casa.
Passados quarenta anos, a Comissão da Capela ainda nos deve o dinheiro. Registo o nome: Casal Ribeiro. 

2 comentários:

Tintinaine disse...

Ao ler este relato, até eu me imaginei na cena!

Janita disse...

Nesta história - e ele há tantas - parece-me que o Agostinho não ficou nada bem.
Na última que li também escapou por pouco dos dentes afiados de um cão...ou Dom Pata Negra já nem se lembra de tal cousa?

Bom fim-de-semana. :)