quarta-feira, 1 de novembro de 2023

Breve voo num longo sonho

Os dois primos, desde pequeninos que eram parceiros no cultivo do gosto pela invenção e agora, que já pintavam, ambicionavam voar mais alto. Gago frequentava o Curso Geral de Mecânica convencido que, com esses estudos, se poderia livrar de especialidade que o levasse ao mato na guerra colonial ou do salto para França; Sacadura era aprendiz de carpinteiro, certo de que com esta profissão se poderia livrar de ter de emigrar ou da tropa, se por feliz acidente cortasse o dedo do gatilho na serra circular. 

O barracão agrícola tinha um sótão com uma empena aberta e apresentou-se como o local ideal para montar a geringonça e, mais do que isso, para ser o porto de partida da sua estreia.  

Gago e Sacadura enfiaram na cabeça o sonho de concretizar o ambicioso projeto dum objeto voador. 

A fuselagem resultou num complexo emaranhado de ferros aparelhados com ripados à mistura; os lugares de piloto e copiloto devidamente almofadados a partir duma velha albarda; a hélice com aerodinâmica conseguida depois de muito bater num bidão desfeito em chapas; o motor devidamente aconchegado na estrutura, com o eixo do rotor devidamente acoplado às pás da hélice. Mas onde foram  amanhar o motor os engenheiros? Pois!... Era inverno e o motor de rega da família não estava a ser utilizado...

A esta altura do desenvolvimento da história e do projeto, já alguns se devem estar a rir por dentro e outros se riram na altura. Mas, afinal de contas, quem nunca sonhou ter voado? Ainda que o voo possa ter uma forma estranha e escabrosa, traz sempre um momento breve de felicidade, mesmo depois do sono se render à madrugada. Também se riem ainda hoje, passados trezentos anos, aqueles que conhecem a experiência da passarola do padre Bartolomeu de Gusmão. Rir-se-ão ainda mais aqueles que sabem da história de João Batista Torto, enfermeiro, barbeiro e sangrador que, há quatrocentos anos, se lançou para o ar e para a morte, da torre da sé de Viseu, com dois pares de asas presas ao corpo.


A esta vontade de rir da mera gente, contrapõe-se a vontade de mudar dos pioneiros, aqueles que sempre insistiram no sonho: se quisermos podemos voar!

Eis que, portanto, Gago e Sacadura, quando puseram o motor de rega a trabalhar, quando lançaram o seu "avião-sonhado" que andou no ar três metros e meio, mais propriamente a distância do soalho do sótão do barracão ao chão, aprenderam com o insucesso e tinham  já aprendido muito mais durante a construção. Quem não aprendeu nada foram os que assistiram à barraca do lançamento da aeronave e desataram a rir. 

"Gago" e "Sacadura", foram alcunhas que ganharam  então, que ainda hoje orgulham muito os primos e que também os fazem rir. Nenhum deles foi para a guerra nem emigrou porque, poucos anos depois,  houve um sonho que voou nas asas dum abril.

Teria eu já dado a história por terminada se não me tivesse surgido, tardiamente, uma questão:

- Porque é que o sonho do Gago e do Sacadura não voou?

Revejo o texto, reparo que na descrição da construção não me refiro às asas - eis a razão. 

Assumo o grave erro, concluo que os sonhos não se dão bem com as palavras e penso nos corvos que só começam a falar quando lhe cortam as asas. Por fim, calo-me - afinal nunca andei de avião!

(Texto de Coutinho Cabral)



1 comentário:

Janita disse...

As histórias mencionadas não conheço, mas sei bem quem foram Gago Coutinho e Sacadura Cabral. ;)

Quer sejam do autor ou de outrém, sempre há por aqui histórias do arco-da-velha, deliciosas de ler.

Bom Feriado!