domingo, 6 de abril de 2025

11- A história incrível dum casal vencedor do euromilhões.

 

A casa, herdada da avó, tinha sido já dos bisavôs mas resistira ao tempo. Duas águas, uma porta ao meio, uma janela de cada lado, cozinha, sala, dois quartos e uma casa de banho desalinhada da arquitetura porque construída mais recentemente, na época em que o banho se popularizou e a água canalizada trespassou paredes. Num alçado lateral, um alpendre em chapa zincada protegia a entrada de serviço, a da cozinha, e ainda dava para abrigar a motorizada. A traseira da casa apoiava um telheiro para a lenha, ferramentas e o que calhasse. Ao fundo da cerca do quintal, à guarda do cão acorrentado, existiam uns currais para galinhas, coelhos, rolas e outra miudagem animal, sobrando ainda espaço para uma horta de subsistência, uma figueira, dois pessegueiros, uma macieira e uma latada de uvas de comer.

- Amanhã vou fazer uma lista: reparar o curral das galinhas, arranjar um alpendre para a mota, fazer uma estufa, isso mesmo, vou fazer uma estufa!

- Não te esqueças de falar ao Tuquepintas para pintar o quarto e a sala e ao Bucha para nos vir instalar um esquentador!

À noite, quando se deitavam, ficavam em silêncio por longos minutos, cada um perdido nos seus próprios pensamentos.

 

Agora compreendia que a vida dos ricos que não trabalhavam não era tão fácil assim. A tristeza que não é uma pessoa não ter nada para fazer, andar para aqui e para acolá à procura dum serviço que lhe ocupe a tarde.

- Ora Jacinto, os ricos sabem pôr o corpo ao sol, jogar xadrez e andar de avião… gostam de ler livros, ver filmes e bailados, fotografar monumentos e dormir em hóteis com vista!...

- E também jogam no casino e fazem festas de arrebentar!... Um dia destes vou é voltar a trabalhar! No café é sempre a mesma coisa: uns jogam cartas ou dominó, isso para mim são jogos de garotos! Outros olham para a televisão a ver futebol, eu não gosto de futebol! Ler o Correio da Manhã? Aquilo é só mentiras! O Abílio é sempre a mesma conversa, “ó Jacinto é branco ou tinto?” brinca ele um dia, para no dia a seguir me repreender como se eu fosse uma criança, “não voltas a entrar aqui a fumar!”

A única coisa que sei fazer é trabalhar! Pensas que isto é fácil? Tu já estavas habituada a não fazer nada! … Agora eu!...

- O caralho que te foda!...


Sabemos que cai aqui mal esta linguagem mas perante tal impropério de Jacinto, Francisca tinha de reagir de imediato. Sem tempo para pensar outra reação, saltou-lhe a tampa, soltou-se-lhe a língua, ferveu de indignação e saiu-lhe a resposta curta e concisa no mais imprópio par de palavrões do vernáculo nacional. Até o autor foi surpreendido, sem tempo para dar a volta ou texto ou cordões para trair a realidade de modo que, pede desculpa e promete dar continuidade à narrativa em modos próprios.

 

Doméstica era apenas uma palavra quando tinha de responder ou escrever a profissão. Mas não bastava “doméstica” ser já o cabo dos trabalhos, Jacinta trabalhava ao dia fora muitos dias, contribuindo para a casa, às vezes quase tanto como o homem. Plantar batatas para esta, ir prá vindima daquele, apanhar azeitona para os demais, servir numa boda de casamento, fazer de criada ao regimento daquela que pariu, caiar os muros dum vizinho, dar uma limpeza geral à casa dos que vêm de férias, tratar do gado dos que foram dar uma volta, trabalhadora para todos os serviços menos para um.

- Olha, eu sinto-me bem folgada e não me importo de viver assim o resto dos meus dias! Se não me queres fazer companhia, vai trabalhar que eu ainda tenho cara e cintura para arranjar um rapaz mais novo que tu! E então agora com dinheiro! Se o trabalho nas obras fosse assim tão duro, não estarias com essa conversa de voltar ao trabalho! Hoje em dia vocês têm máquinas para fazer tudo: gruas, guinchos, porta-paletes, betoneiras, martelos elétricos, berbequins, escavadoras, vibradores. Esfregar! Esfregar é que é trabalho duro!

Jacinto pegou nestas palavras, “esfregar”, “duro”, “trabalho” e jogou com elas confundindo provocação com sedução. Francisca riu-se, já sabia o que se gastava em casa, não ia cair novamente no uso desnecessário das palavras feias, isso é coisa de pobres! Sentiu-se suficientemente rica para poder dizer ao companheiro de leito:

- Vamos mas é dormir que amanhã podemos não ir trabalhar!

Jacinto mordeu a língua num pensamento de contentamento, quer ela dizer que amanhã podemos… podemos… podemos trocar o pê pelo fê…

1 comentário:

Janita disse...

O trabalho dá sentido à vida! Enriquecer assim, do pé prá mão e não poder ( sem trocas nem baldrocas de consoantes) criar um negócio, ou algo em que se ocupe quem toda a vida trabalhou, acaba por ser um trauma, uma desgraceira.

Vamos ver se a sorte bafejou, ou desgraçou, o Jacinto e a nossa Francisca.
Abraço com votos de boa semana, Monarca.