sexta-feira, 28 de junho de 2024

Tomei partido por uma caixa de sapatos

Ela deve ter-se embeiçado por mim porque me ouviu cantar “Michelle, ma belle”, acompanhado à viola, no jardim municipal. E se eu cantava bem! Eu estava com uns colegas de propedêutico, num daqueles bancos de tábuas ripadas, a ensaiar os primeiros acordes dum sonho de vida musical e ela estava com umas amigas, num banco próximo, a exibirem brincadeiras e a atirar olhares para os nossos lados. Não as conhecíamos do liceu - rapariguinhas de pais do operariado que se estavam nas tintas para os estudos e queriam era namorar.

De partida os dois grupos cruzam-se e sinto um encontro de ombros dela, provavelmente provocado pelo empurrão dissimulado duma companheira, simuladamente inadvertido, e divergimos para lados opostos, com risos divertidos de juventude em idade de contacto.

No dia seguinte, repetida a canção, ela vem ter comigo pedindo-me desculpa pelo encontrão da véspera e pediu-me um cigarro, depois um beijo, depois mais beijos e assim fomos nascendo.
Navegando a novidade, uma tarde, sugeriu-me um centro de convívio do seu bairro. Não estava ninguém, entrava-se sem ser preciso chave. Uns sofás, uma mesa baixinha de sala de estar e umas damas. 
- Sabes jogar?

E eu, num "sim" de novato ali e acanhado, rendi-me à solução preliminar e colaborei com destreza no posicionamento das pedras no tabuleiro. 
Beber? Claro, beber faz parte do jogo! Tirar a carica. Pagar? 
- Vê aí os preços nesta folha e faz os trocos com o dinheiro que está nesta caixa de sapatos.
Que associação é esta!? Quem pode confiar assim? Até as caixas de esmola da igreja têm cadeado! Pensei.

Estendeu-me a garrafa e eu levei-a à boca e desajeitado com o momento, babei-me com a cerveja até ao umbigo, tombei o tabuleiro e só dei por mim quando a espuma já untava os corpos próximos, estendidos num leito de eu sei lá. A coisa dava-se e, quando num bater mais acelerado do coração, parei os olhos, vi uma foice e um martelo sobre um fundo vermelho.
-  Qual centro convívio qual carapuça, isto é um centro de trabalho!

Julgo que foi este aparte ou o tom com que me saiu que fez com que o estado de enamoramento não tivesse durado muito mais tempo. Passado um tempo e mais uns beijos e humidades, ela mudou de terra ou de partido, eu mudei de terra mas nunca perdi o encantamento pela gestão daquela caixa de sapatos.
E foi assim, que do borbulhar duma  efémera paixão, parti para a vida de quem toma partido para a vida toda.



5 comentários:

Rogério G.V. Pereira disse...

A minha história é bem diferente
mas o desfecho
foi o mesmo

Abraço de camarada

Janita disse...

Pronto, ponto assente. Se o Monarca deste Reino quis deixar bem ciente qual é o Partido político que o seu coração elegeu na juventude e ficou até aos dias de hoje, tudo bem.
Nada contra!
Agora vai é permitir-me que mercê dessas suas aventuras amorosas, eu sorria abertamente à divertida lembrança daquela outra - foram tantas - com o nome ou cognome, de 'A DO STOP'...
O que me ri com essa história... Eheheheheh

Boa sexta e, claro, até ao Natal!

Pata Negra disse...

Rogério, bem me parecia que éramos da mesma camioneta! Ah!AhA

Pata Negra disse...

Janita, têm sido tantas as escritas e foram tão poucas - as suficientes! - as escrutinadas! Eu não acrescento pontos aos contos, eu empilho-os!
Não faço tatuagens das representações estéticas das minhas opções. Sou, por idiossincrasia, um tipo discreto e não acredito no Natal mas claro: Bom Natal e obrigado pela atenção assídua!

Janita disse...


E que tal se voltasse a cantar '“Michelle, ma belle”, e fizesse um vídeo para os seus leitores?
Provavelmente, faria mais sucesso do que os Beatles.
Experimente!
Vim antes do Natal e já peço o 'presente' antecipadamente.. :))