domingo, 2 de fevereiro de 2025

2- A incrível história do casal a quem saiu o euromilhões

À voz irritada ela responde com um soluço “sim-sim” com a cabeça! Ele acentua a exaltação, ralha irracionalmente e não a ouve, mesmo quando ela, com o ritmo cardíaco descontrolado e a expressão de quem acaba de saber que lhe morreu alguém, sussura timidamente “mas calhou!...” ele continua e arranca-lhe o talão que ela segura entre ambos os polegares e indicadores e, cego, ergue-o na mão, lança impropérios ao vício do jogo, atira-lhe a autoridade de marido que se esfola a trabalhar para ela, aquela que agora resolveu brincar com o dinheirinho dele, atira-o para o lume e grita-lhe “nunca mais!”.


- Mas calhou!... - repete ela na mesma entoação e na mesma pose com que dissera da primeira vez.

- Não interessa se calhou ou não calhou! Eu disse-te para não jogares e tu jogaste! E ai de ti se voltas a jogar!

- Mas calhou!...

- Não estejas com esse tom de madalena! Calhou o quê? Calhou o quê?

Acomoda-se à lareira a fumar um cigarro de ira e ela corre para o quarto a chorar. Senta-se na cama, repara que o talão ainda permanece apertado entre os seus indicadores e os seus polegares, deve ser o do Milhão!... Não é o... Ele tirou-lhe o errado, ele agarrou o do Milhão! Milagre! O talão com os números continua ali, nas suas mãos! Tenta recompor-se, ergue o corpo, a mente e o caráter, limpa os olhos, esconde o bilhete num dos sapatos de domingo. Dirige-se à cozinha, agora segura e disposta a enfrentar o companheiro.

- Tens aí o papel onde escreveste os números?

- Está aí em cima da mesa. Mas para que os queres tu se o teu talão já ardeu?

- 10, 20, 30, 40, 50 estrelas 2 e 5. Sim, eram estes! Calhou! Calhou! Cinco números e duas estrelas! Tenho a informar-te que acabaste de lançar para a fogueira uma fortuna em dinheiro! Escolheste viver na miséria até à morte! Mas eu não! Não tens perdão! Um dia destes vou-me embora!

Continuou sentado com a mão a esfregar a testa aquecida pela lareira. Resmungou baixinho frases avulso: “não tinhas nada de ter jogado sem a minha autorização”; “ de certeza que viste mal os números!”; “provavelmente enganei-me a escrever os números” ... “e mesmo que fossem certos? O dinheiro ia dar cabo de nós!”…

- Se agora chegasse aqui alguém e começasse a descarregar maços de notas nesta cozinha até a encher até ao teto, tu eras louco para passares a noite a lançá-los para as chamas?

Começa a cair nele, agita-se no banco, coça o carapinha, passa a mão pelo queixo, tira e volta a pôr um cigarro no maço, levanta-se e volta a sentar-se, dá uma volta à mesa incapaz de dispensar um olhar à companheira, dá um gole na garrafa, retoma o seu lugar à lareira.

- Estás a brincar com coisas sérias! Prova lá que o talão tinha estes números ou outros quaisquer!... Viste mal! Pronto! Tu nem sabes ler um papel desses! E se nos tivesse calhado? Que é que fazias agora? Diz lá! ...Vá, diz lá!

Silenciosa, resguardou-se de pé por detrás do marido sentado. Hesitou em dizer-lhe que ele queimou o papel errado. - Digo-lhe?... E se ele o queima também?...  Calo-me?... Mas isto é segredo que se esconda do homem? Sim, é sexta-feira, ele está com mais carga que o costume, pode ter-se enganado nos números...

- Diz lá tu, o que é que fazíamos agora? – perguntou ela.

- Estávamos metidos numa alhada. Primeiro que tudo teríamos de guardar segredo absoluto. Caso contrário, não nos faltariam aqui pobres e desgraçados à porta a pedir piedade, padres e catequistas a pedir caridade e até ricos a pedir participação em investimentos garantidos!... Para além da nossa própria segurança: uma faca ao pescoço e passa para cá uns milhões senão a tua mulher morre!... Eu não aguentaria tanto! Mesmo que fosse verdade que o papel que ardeu tivesse a sorte grande eu não reconheceria isso como sorte! Seria pela certa um pré-anúncio de grandes desgraças!

- Está bem, és um homem fiel aos teus princípios, tens 100 milhões de euros na tua cozinha em notas e, como não acreditas que o dinheiro traga felicidade, queima-los!... É isso?!... Nem sequer pensas em dá-lo a alguém que lhe faça proveito, queima-los e pronto!

- Cala-te com essa conversa e não brinques com coisas sérias!

- E se eu te disser que puseste o papel errado para o fogo e que eu tenho escondido o papelucho que vale uma fortuna?

- Ah! Ah! Ah! E tem-lo escondido aonde?

- Tenho-o escondido de ti e vou contar-te onde está? Tu és parvo ou quê? Queres ter uma segunda oportunidade do queimar?

- Então vamos falar, tens a certeza que os números são esses?

- Tu é que os escreveste!

- Então olha, eu não tenho a certeza de que os números são os que te disse!... E agora?

- Nesse caso vais ao café, devem estar lá afixados, pedes uma caneta e um papel e vens a correr para casa para confirmarmos se estamos ou não ricos! 

Interrompe-se aqui a conversa para curar o mau estar das personagens continuarem sem nome, muito embora isto seja mais gente do tu cá tu lá e, como caso possívelmente verídico, não ser aconselhável a identificação dos contemplados. Tenha-se pois como remédio, para proteção dos visados e conforto do narrador, chamar-lhes Francisca e Jacinto, nomes fictícios pelos quais aqui serão tratados.

Lembremos que a história começa com Francisca a exprimir, nos seus silenciosos pensamentos, que caso a sorte lhe saísse estariam entre destinos certos do dinheiro: uma casa, um carro, uns brincos, ir a Fátima e ao Brasil. Ora a ida a Fátima não seria certamente pelo passeio porque já lá fora muitas vezes, ou não fosse fácil da terra onde viviam, Vale dos Ovos, fazer promessas de ir e vir a pé com légua e meia, pelo que, já se vê, a prometida ida à falada cova da vizinha Serra de Aire, se faria para agradecer aos dois videntes, já beatos e não tardaria muito santos de pleno direito. Eis a forma encontrada para deixar escrita a devida homenagem aos pastorinhos, que alguma mão devem ter metido lá no Céus para que tamanha sorte caísse sobre a tesura do casal, acredita Francisca, não o autor, homem de pouca fé, que dá tão pouco crédito às  aparições que até o nome dos miúdos milagreiros troca.


3 comentários:

Tintinaine disse...

Ah, valente! Gostei da reviravolta que imprimiste à história!
Bom domingo!!!

Pata Negra disse...

Bom domingo, companheiro.

Janita disse...

Afinal, a Francisca não é tão simplória quanto aparentou a princípio.
Vamos ver o seguimento da coisa... :)
Bom Domingo!