À voz irritada ela responde com um
soluço “sim-sim” com a cabeça! Ele acentua a exaltação, ralha irracionalmente e
não a ouve, mesmo quando ela, com o ritmo cardíaco descontrolado e a expressão
de quem acaba de saber que lhe morreu alguém, sussura timidamente “mas
calhou!...” ele continua e arranca-lhe o talão que ela segura entre ambos os
polegares e indicadores e, cego, ergue-o na mão, lança impropérios ao vício do
jogo, atira-lhe a autoridade de marido que se esfola a trabalhar para ela,
aquela que agora resolveu brincar com o dinheirinho dele, atira-o para o lume e
grita-lhe “nunca mais!”.
- Não interessa se calhou ou não calhou! Eu
disse-te para não jogares e tu jogaste! E ai de ti se voltas a jogar!
- Mas calhou!...
- Não estejas com esse tom de madalena! Calhou
o quê? Calhou o quê?
Acomoda-se à lareira a fumar um cigarro de ira e
ela corre para o quarto a chorar. Senta-se na cama, repara que o talão ainda
permanece apertado entre os seus indicadores e os seus polegares, deve ser o do Milhão!... Não é o... Ele tirou-lhe o errado, ele agarrou o do Milhão! Milagre!
O talão com os números continua ali, nas suas mãos! Tenta recompor-se, ergue o
corpo, a mente e o caráter, limpa os olhos, esconde o bilhete num dos sapatos
de domingo. Dirige-se à cozinha, agora segura e disposta a enfrentar o
companheiro.
- Tens aí o papel onde escreveste os números?
- Está aí em cima da mesa. Mas para que os
queres tu se o teu talão já ardeu?
- 10, 20, 30, 40, 50 estrelas 2 e 5. Sim, eram
estes! Calhou! Calhou! Cinco números e duas estrelas! Tenho a informar-te que
acabaste de lançar para a fogueira uma fortuna em dinheiro! Escolheste viver na
miséria até à morte! Mas eu não! Não tens perdão! Um dia destes vou-me embora!
Continuou sentado com a mão a esfregar a testa
aquecida pela lareira. Resmungou baixinho frases avulso: “não tinhas
nada de ter jogado sem a minha autorização”; “ de certeza que viste mal os
números!”; “provavelmente enganei-me a escrever os números” ... “e mesmo que
fossem certos? O dinheiro ia dar cabo de nós!”…
- Se agora chegasse aqui alguém e começasse a
descarregar maços de notas nesta cozinha até a encher até ao teto, tu eras
louco para passares a noite a lançá-los para as chamas?
Começa a cair nele, agita-se no banco, coça o carapinha, passa a mão pelo queixo, tira e volta a pôr um cigarro no maço, levanta-se e volta a sentar-se, dá uma volta à mesa incapaz de dispensar um olhar à companheira, dá um gole na garrafa, retoma o seu lugar à lareira.
- Estás a brincar com coisas sérias! Prova lá que o talão tinha estes números ou outros quaisquer!... Viste mal! Pronto! Tu nem sabes ler um papel desses! E se nos tivesse calhado? Que é que fazias agora? Diz lá! ...Vá, diz lá!
Silenciosa, resguardou-se de pé por detrás do marido sentado. Hesitou em dizer-lhe que ele queimou o papel errado. - Digo-lhe?... E se ele o queima também?... Calo-me?... Mas isto é segredo que se esconda do homem? Sim, é sexta-feira, ele está com mais carga que o costume, pode ter-se enganado nos números...
- Diz lá tu, o que é que fazíamos agora? –
perguntou ela.
- Estávamos metidos numa alhada. Primeiro que
tudo teríamos de guardar segredo absoluto. Caso contrário, não nos faltariam
aqui pobres e desgraçados à porta a pedir piedade, padres e catequistas a pedir
caridade e até ricos a pedir participação em investimentos garantidos!... Para
além da nossa própria segurança: uma faca ao pescoço e passa para cá uns
milhões senão a tua mulher morre!... Eu não aguentaria tanto! Mesmo que fosse
verdade que o papel que ardeu tivesse a sorte grande eu não reconheceria isso
como sorte! Seria pela certa um pré-anúncio de grandes desgraças!
- Está bem, és um homem fiel aos teus
princípios, tens 100 milhões de euros na tua cozinha em notas e, como não
acreditas que o dinheiro traga felicidade, queima-los!... É isso?!... Nem
sequer pensas em dá-lo a alguém que lhe faça proveito, queima-los e pronto!
- Cala-te com essa conversa e não brinques com
coisas sérias!
- E se eu te disser que puseste o papel errado
para o fogo e que eu tenho escondido o papelucho que vale uma fortuna?
- Ah! Ah! Ah! E tem-lo escondido aonde?
- Tenho-o escondido de ti e vou contar-te onde
está? Tu és parvo ou quê? Queres ter uma segunda oportunidade do queimar?
- Então vamos falar, tens a certeza
que os números são esses?
- Tu é que os escreveste!
- Então olha, eu não tenho a certeza de que os
números são os que te disse!... E agora?
- Nesse caso vais ao café, devem estar lá afixados, pedes uma caneta e um papel e vens a correr para casa para confirmarmos se estamos ou não ricos!
Interrompe-se aqui a conversa para curar o mau
estar das personagens continuarem sem nome, muito embora isto seja mais gente
do tu cá tu lá e, como caso possívelmente verídico, não ser aconselhável a
identificação dos contemplados. Tenha-se pois como remédio, para proteção dos visados e conforto do
narrador, chamar-lhes Francisca e Jacinto, nomes fictícios pelos quais aqui serão tratados.
Lembremos que a história
começa com Francisca a exprimir, nos seus silenciosos pensamentos, que caso a
sorte lhe saísse estariam entre destinos certos do dinheiro: uma casa, um
carro, uns brincos, ir a Fátima e ao Brasil. Ora a ida a Fátima não seria
certamente pelo passeio porque já lá fora muitas vezes, ou não fosse fácil da
terra onde viviam, Vale dos Ovos, fazer promessas de ir e vir a pé com légua e
meia, pelo que, já se vê, a prometida ida à falada cova da vizinha Serra de
Aire, se faria para agradecer aos dois videntes, já beatos e não tardaria muito
santos de pleno direito. Eis a forma encontrada para deixar escrita a devida
homenagem aos pastorinhos, que alguma mão devem ter metido lá no Céus para que
tamanha sorte caísse sobre a tesura do casal, acredita Francisca, não o autor, homem de pouca fé, que dá tão pouco crédito às aparições
que até o nome dos miúdos milagreiros troca.
3 comentários:
Ah, valente! Gostei da reviravolta que imprimiste à história!
Bom domingo!!!
Bom domingo, companheiro.
Afinal, a Francisca não é tão simplória quanto aparentou a princípio.
Vamos ver o seguimento da coisa... :)
Bom Domingo!
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