Não é isso mulher, depois vinhas para casa a cavalo em quê? Em mim? E não me venhas outra vez com a ideia dos taxistas manhosos ou das confusões dos comboios!
- Temos o fim de semana para pensar, que temos
de ir e podes avisar o patrão que, a partir de segunda-feira, não vais! Ou
melhor, para não dar nas vistas vais! Mas tens de começar a arranjar uma
desculpa para não ires trabalhar daqui a uns dias, começas a queixar-te de dor
de barriga, de dor de costas, de dor de corno, do que quiseres. Tens de ser
convincente, vais adoecer e ter de faltar uns dias, depois, quando tivermos o
nosso dinheirinho, a doença tem de te levar à invalidez! Ou queres continuar a
vergar a mola mesmo rico?... Eu vou para a cama e espero que amanhã acordes com
uma solução para o problema!
- Eu bem dizia que isto só nos ia trazer
problemas!
Claro que ia começar uma longa noite em branco para ambos, entrelaçada de diálogos curtos: tira daí a mão; onde é que escondeste o boletim; será que estou a sonhar; já estás dormir; isto só nos vai trazer problemas; acabaram-se os problemas de dinheiro; não podemos dar nas vistas; vou ter de acabar por contar alguém; não podemos contar a ninguém; tira daí a mão…
Durante o fim de semana seguiram a sua rotina habitual, apenas quebrada por pensativos silêncios, mais e mais curtos diálogos entre ambos. Foram várias vezes ao café do Abílio, mas foram incapazes de meter conversa, dar troco a conversa ou permanecer. Francisca deu vezes sem conta comida ao cão, às galinhas e confirmou o boletim de hora a hora. Jacinto fumou, bebeu, repetiu idas à retrete e na segunda-feira foi trabalhar.
Durante o dia começou a queixar-se que não
andava bem, que não se sentia bem, que não estava bem, que qualquer coisa não
estava bem, deixando no ar a ideia que alguma maleita se estava a apoderar do
seu corpo rijo e são.
Ao serão, marido e mulher, continuaram a ter
dificuldade em falar um com o outro e a noite voltou a ser difícil. Quando se
cruzaram, cada um se virou para seu lado, para dentro de si, cúmplices dum
segredo amordaçado, enjaulados num sonho sem saída, ela interrogando-se se
alguma vez fez sentido serem um casal, se não era este o impulso que daria
sentido à sua liberdade, ele quase que a acusando de ser responsável pela
interrupção do seu quotidiano normal, sem conseguir acreditar que a fortuna
estava à distância duma deslocação à capital.
Até que, ao terceiro dia, concordantes que
tinham de se decidir, que o segredo era a alma da situação e obrigatoriamente
os unia na cumplicidade, que contactar a Santa Casa era inevitável, que inevitável
era também ter de apresentar o bilhete da sorte e dizer a algum humano “isto
tem aqui alguma coisa”, fez-se luz ao trolha de serviço.
Sim, já o dissemos, pelo sim pelo não, queixara-se nos últimos dias aos colegas de trabalho que não andava bem, o fígado, os rins, o coração, eu sei lá o que é, até que ao terceiro dia disse-lhes a eles e ao patrão:
- Amanhã tenho de ir ao médico, não sei o que é que se passa comigo.
1 comentário:
Aguardo o final
para desta história tirar a moral
mas antecipo
mais vale ser amado
do que ser rico
Né?
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