domingo, 13 de abril de 2025

12- A incrível história dum casal que recebeu o euromilhões.


Iam assim os dias do casal milionário, ainda sem plena consciência do valor dos milhões que tinham em depósitos, saboreando o desafogo financeiro, mas ainda engaiolados no medo e no segredo.

— Quanto tempo vamos conseguir viver assim? A fazer de conta que não temos nada?

— O que queres dizer?

— Quero dizer… não faz sentido termos tanto dinheiro e continuarmos a viver como se fôssemos pobres.

Ela suspirou.

— Eu sei. Mas se começamos a gastar de repente, toda a gente vai desconfiar. Não te lembras do que aconteceu ao teu primo Toino?

O António era um exemplo conhecido em Vale dos Ovos. Há uns anos, tinha saído para França em busca de uma vida melhor e, quando regressou, apareceu com um carro novo, roupas caras e pôs-se a fazer uma casa estilo “maison”, com janelas “ à la fenêtre” e telhados para a neve, só lhe faltou pôr suportes para colocar os esquis no hall de entrada.. Mas a inveja e os rumores foram tantos que, em pouco tempo, começou a ter problemas. Diziam que se metera em negócios escuros, que devia dinheiro a agiotas. O falatório foi tanto que António acabou por vender tudo e ir-se embora de vez.

— Sim, lembro-me — respondeu o Jacinto. — Mas também não podemos viver como miseráveis. Há coisas que podemos melhorar sem dar nas vistas.

- Então mas não estamos a gastar muito mais do que gastávamos?

- Sim, mas não estamos, nem de perto, a gastar de acordo com o que temos!

- Vamos com calma! Para já vamos aguentar a versão que a Lúcia nos está a ajudar! Depois inventamos outra!

 

Pois, tinham mesmo de inventar outra, havia mais gente de Vale dos Ovos no Luxemburgo. Um deles, o Paleco, veio cá uns dias, esteve no café da estação. Contou que estava perto do Alberto, que via a Albertina todos os domingos à saída da igreja, que o Joaquim trabalha com ele, que a Joaquina tem os filhos na mesma escola, que o Costa está muito bem, tem um café, a coisa não está muito bem é para a Lúcia, a filha da Francisca, passa lá por muitas dificuldades, o gajo embebeda-se e ela vê-se negra para pagar a escola do filho!...

Abílio, primeira testemunha da surpreendente contradição entre o discurso do casal sobre a origem do seu repentino desafogo e as informações fresquinhas do Paleco, recorreu à sapiência de tantos anos a encher copos e engoliu para digerir mais tarde. Como só ele ouvira, aguardaria para testar se o Paleco contaria a mais alguém e, em função disso, moldaria a sua posição pública sobre o assunto.

Uns dias mais tarde, constatando que ninguém trouxera o nome da Lúcia à conversa no café, e tendo já Paleco passado além dos Pirinéus, Abílio mostrou-se amigo de Jacinto e confrontou-o em tom paternal, em privado, com o que não batia certo e queria explicações.

 

Jacinto engasgou-se com o carioca de limão e aproveitou o tempo do engasgo para um raciocínio rápido que o teria de livrar de pôr os pés pelas mãos e dar-lhe as palavras certas para acalmar o inquiridor.

- Ora Abílio, isso é uma longa história! Graças a Deus que, no meio de tanta desgraça, eu e a Francisca temos tido uma ajuda, que não é pequena, mas que ainda não podemos dizer de onde vem. Não contes por favor a ninguém a conversa do Paleco que eu prometo-te que serás o primeiro a saber a verdade.

 

Quando Jacinto, regressado a casa, contou à Francisca o percalço, esta estremeceu em pensamentos por ter recebido notícias menos felizes da vida da filha emigrada – teria de arranjar maneira de a ajudar – mas não questionou a insensibilidade de Jacinto, que parecia apenas preocupado com o facto da mentira ter perdido a validade. Era necessário inventar uma nova mentira com crédito assegurado e, já agora, que desse para poder mostrar a carteira ainda mais cheia.

 

A ideia surgiu na noite abafada e já longa, enquanto partilhavam um copo de vinho ao calor da lareira. O silêncio da aldeia envolvia a casa como um manto pesado e, o peso da manta dos milhões, embora os fizesse sentir agazalhados e protegidos, pesava-lhes cada vez mais.

— A aldeia sabe da história do teu pai — disse o homem, rodando o copo entre os dedos.

A mulher ergueu os olhos.

— Sim, todos sabem. Que ele fugiu para o Brasil depois da morte da minha mãe pelo meu parto.

Jacinto abanou a cabeça positivamente preparando o espaço para a próxima deixa:

— E se… e se ele tivesse entrado em contacto contigo? Se, depois de tantos anos, te tivesse procurado, cheio de arrependimento?

Francisca franziu a testa, tentando acompanhar o raciocínio do companheiro.

— Estás a dizer que…

— Que o teu pai fez fortuna. É, sem exageros, dono de meio Brasil e agora quer compensar-te por te ter abandonado. Pôs uns detetives à tua procura, encontrou-te, vai telefonar-te e começar a enviar carcalhol a rolos. Quem sabe, vai até querer que a gente vá ao Brasil!...

Houve um momento de silêncio, enquanto a ideia se instalava entre os dois. Depois, Francisca começou a exteriorizar satisfação com o novo teatro que teriam de representar.

1 comentário:

Janita disse...

Representar papéis que gostaríamos fossem verdadeiros, também traz o seu gozo enquanto se não pode dar azo ao prazer que o 'carcanhol' em abundância pode proporcionar.
Lá está...de actor e de louco todos temos um pouco. :-)
Um abraço, Monarca ( sem coroa)