Iam assim os dias do casal milionário, ainda sem plena consciência do valor dos milhões que tinham em depósitos, saboreando o desafogo financeiro, mas ainda engaiolados no medo e no segredo.
— Quanto
tempo vamos conseguir viver assim? A fazer de conta que não temos nada?
— O que
queres dizer?
— Quero dizer… não faz sentido termos tanto
dinheiro e continuarmos a viver como se fôssemos pobres.
Ela suspirou.
— Eu sei. Mas se começamos a gastar de
repente, toda a gente vai desconfiar. Não te lembras do que aconteceu ao teu primo
Toino?
O António era um exemplo conhecido em Vale
dos Ovos. Há uns anos, tinha saído para França em busca de uma vida melhor e,
quando regressou, apareceu com um carro novo, roupas caras e pôs-se a fazer uma
casa estilo “maison”, com janelas “ à la fenêtre” e telhados para a neve, só
lhe faltou pôr suportes para colocar os esquis no hall de entrada.. Mas a inveja e os rumores foram tantos que, em
pouco tempo, começou a ter problemas. Diziam que se metera em negócios escuros,
que devia dinheiro a agiotas. O falatório foi tanto que António acabou por
vender tudo e ir-se embora de vez.
— Sim, lembro-me — respondeu o Jacinto. — Mas
também não podemos viver como miseráveis. Há coisas que podemos melhorar sem
dar nas vistas.
- Então mas não estamos a gastar muito mais
do que gastávamos?
- Sim, mas não estamos, nem de perto, a
gastar de acordo com o que temos!
- Vamos com calma! Para já vamos aguentar a
versão que a Lúcia nos está a ajudar! Depois inventamos outra!
Pois, tinham mesmo de inventar outra, havia
mais gente de Vale dos Ovos no Luxemburgo. Um deles, o Paleco, veio cá uns
dias, esteve no café da estação. Contou que estava perto do Alberto, que via a
Albertina todos os domingos à saída da igreja, que o Joaquim trabalha com ele,
que a Joaquina tem os filhos na mesma escola, que o Costa está muito bem, tem
um café, a coisa não está muito bem é para a Lúcia, a filha da Francisca, passa
lá por muitas dificuldades, o gajo embebeda-se e ela vê-se negra para pagar a
escola do filho!...
Abílio, primeira testemunha da surpreendente
contradição entre o discurso do casal sobre a origem do seu repentino desafogo
e as informações fresquinhas do Paleco, recorreu à sapiência de tantos anos a
encher copos e engoliu para digerir mais tarde. Como só ele ouvira, aguardaria
para testar se o Paleco contaria a mais alguém e, em função disso, moldaria a sua
posição pública sobre o assunto.
Uns dias mais tarde, constatando que ninguém trouxera
o nome da Lúcia à conversa no café, e tendo já Paleco passado além dos
Pirinéus, Abílio mostrou-se amigo de Jacinto e confrontou-o em tom paternal, em
privado, com o que não batia certo e queria explicações.
Jacinto engasgou-se com o carioca de limão e
aproveitou o tempo do engasgo para um raciocínio rápido que o teria de livrar
de pôr os pés pelas mãos e dar-lhe as palavras certas para acalmar o inquiridor.
- Ora Abílio, isso é uma longa história!
Graças a Deus que, no meio de tanta desgraça, eu e a Francisca temos tido uma
ajuda, que não é pequena, mas que ainda não podemos dizer de onde vem. Não
contes por favor a ninguém a conversa do Paleco que eu prometo-te que serás o
primeiro a saber a verdade.
Quando Jacinto, regressado a casa, contou à
Francisca o percalço, esta estremeceu em pensamentos por ter recebido notícias
menos felizes da vida da filha emigrada – teria de arranjar maneira de a ajudar –
mas não questionou a insensibilidade de Jacinto, que parecia apenas preocupado
com o facto da mentira ter perdido a validade. Era
necessário inventar uma nova mentira com crédito assegurado e, já agora, que
desse para poder mostrar a carteira ainda mais cheia.
A ideia surgiu na noite abafada e já longa,
enquanto partilhavam um copo de vinho ao calor da lareira. O silêncio da aldeia
envolvia a casa como um manto pesado e, o peso da manta dos milhões, embora os
fizesse sentir agazalhados e protegidos, pesava-lhes cada vez mais.
— A aldeia sabe da história do teu pai —
disse o homem, rodando o copo entre os dedos.
A mulher ergueu os olhos.
— Sim, todos sabem. Que ele fugiu para o
Brasil depois da morte da minha mãe pelo meu parto.
Jacinto abanou a cabeça positivamente
preparando o espaço para a próxima deixa:
— E se… e se ele tivesse entrado em contacto
contigo? Se, depois de tantos anos, te tivesse procurado, cheio de
arrependimento?
Francisca franziu a testa, tentando
acompanhar o raciocínio do companheiro.
— Estás a dizer que…
— Que o teu pai fez fortuna. É, sem exageros,
dono de meio Brasil e agora quer compensar-te por te ter abandonado. Pôs uns
detetives à tua procura, encontrou-te, vai telefonar-te e começar a enviar
carcalhol a rolos. Quem sabe, vai até querer que a gente vá ao Brasil!...
Houve um momento de silêncio, enquanto a
ideia se instalava entre os dois. Depois, Francisca começou a exteriorizar
satisfação com o novo teatro que teriam de representar.
1 comentário:
Representar papéis que gostaríamos fossem verdadeiros, também traz o seu gozo enquanto se não pode dar azo ao prazer que o 'carcanhol' em abundância pode proporcionar.
Lá está...de actor e de louco todos temos um pouco. :-)
Um abraço, Monarca ( sem coroa)
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