A humilhação foi de tal monta que, com a noite a abrir-se, o Pisca-pisca desfez-se em emoção alcóolica e dirigiu-se para o destroçado que jazia, silencioso e só, na mesa do canto:
- Estás à espera que não haja mais comboios? A estação não tarda muito fecha!
- Não saio daqui enquanto não souber da minha filha!
- Podes esperar
sentado! – acrescentou o Jápintas, que chegara há uns minutos, suficientes para
se ter inteirado da situação.
E dito isto, disse
também para quem o quis ouvir:
- Há muito tempo
que me andava a cheirar a história mal contada. Ora, se está mal contada é
preciso pô-la em pratos limpos. Portanto, é assim:
Ou este homem é um
impostor e não é o Marçal Marques ou a Francisca nos anda a esconder a origem
da sua súbita riqueza! Primeiro era cheques que a filha lhes enviava do
Luxemburgo, depois eram depósitos que o pai transferia de Brasil, e agora? Vem de
onde? Chove do céu?
Abílio interrompeu:
- Não tens nada a
ver com isso! Tiveram uma ajuda que não
querem revelar e agora parece que se estabeleceram lá pró litoral a fazer uns
biscates aqui e acolá, afinal de contas, mais ou menos o que faziam aqui.
Parece-me abuso falar em riqueza!
- Pois aí é que ela
impeça! Segundo o que estes dois olhos puderam ver, não é bem num Parque de
Campismo ou numa casita que estão a viver!
Atalhou Jápintas,
continuando com o relato dos encontros que recentemente vivera com o casal, lá
para os lados de S. Pedro de Moel.
- E depois?! Podia
andar na limpeza e apetecer-lhe mandar um mergulho! – considerou Pisca-pisca em
defesa do casal que tinha como amigo.
- Nã! Nã! Essa já
não pega! Eles estão a viver lá, num casarão à beira mar, e vieram-me outra vez
com a fortuna do pai reaparecido! Não me vão dizer que se estavam a referir a
este homem?!
Os olhos do velho
Marçal brilharam com estas revelações. Afinal de contas a filha não andava
longe dali.
O Abílio, farto do
tema e do dia, dava os passos e movimentos que se mostram aos últimos fregueses
da noite, mas não queria ser ele a preocupar-se com o desfecho pendente de
encaminhamento do indefeso forasteiro.
- Vou ter de fechar
a porta!
Marçal Marques
ergueu-se, trémulo e lento e, enquanto tomava a direção da porta, perguntou:
- Fico a dever
alguma coisa?
- Esqueça isso
homem! Leve consigo este pão que sobrou e um pedaço de queijo que deve estar
com fome!
Pisca-pisca e Jápintas
vieram também para a rua prolongar a conversa habitual do copito a mais, hoje
ainda mais justificada porque o tema era quente e, mais do que isso, pareciam dispostos
a serem atores vivos deste capítulo da história.
Porque a porta do
café tinha a soleira tangente à faixa de rodagem, atravessaram a rua para junto
dum banco público que fica no passeio frente ao edifício da estação ferroviária.
Após instantes de desencontro, Marçal aproximou-se dos dois e sentou-se a ouvir
a conversa como um paciente em sofrimento que ouve os comentários da equipa
médica.
Constatamos que os
dois copinchas, apesar de não revelarem respeito pela figura menor do velho,
abusando com o “tu”, estavam com sensibilidade suficiente para não o deixar ao
relento, contrariamente ao Abílio que usando a segunda pessoa do “você”, fechou
o café e a sua alma de comerciante, sem se questionar sobre o local onde o
pobre diabo iria passar a noite.
- Como és o taxista
deles, deves ter o número de um deles? Se não lhes ligares tu, ligo-lhes eu! A
Francisca precisa de saber que o pai rico está aqui com fome e sem abrigo!
- Liga-lhe tu que
eu não me atrevo a tanto! Já agora, como tenho as chaves da casa deles,
pergunta-lhes se podemos lá deixar o homem a dormir.
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