domingo, 6 de julho de 2025

24- A história dum casal que foi premiado com o euromilhões

 A humilhação foi de tal monta que, com a noite a abrir-se, o Pisca-pisca desfez-se em emoção alcóolica e dirigiu-se para o destroçado que jazia, silencioso e só, na mesa do canto:

- Estás à espera que não haja mais comboios? A estação não tarda muito fecha!

- Não saio daqui enquanto não souber da minha filha!


- Podes esperar sentado! – acrescentou o Jápintas, que chegara há uns minutos, suficientes para se ter inteirado da situação.

E dito isto, disse também para quem o quis ouvir:

- Há muito tempo que me andava a cheirar a história mal contada. Ora, se está mal contada é preciso pô-la em pratos limpos. Portanto, é assim:

Ou este homem é um impostor e não é o Marçal Marques ou a Francisca nos anda a esconder a origem da sua súbita riqueza! Primeiro era cheques que a filha lhes enviava do Luxemburgo, depois eram depósitos que o pai transferia de Brasil, e agora? Vem de onde? Chove do céu?

Abílio interrompeu:

- Não tens nada a ver com isso!  Tiveram uma ajuda que não querem revelar e agora parece que se estabeleceram lá pró litoral a fazer uns biscates aqui e acolá, afinal de contas, mais ou menos o que faziam aqui. Parece-me abuso falar em riqueza!

- Pois aí é que ela impeça! Segundo o que estes dois olhos puderam ver, não é bem num Parque de Campismo ou numa casita que estão a viver!  

Atalhou Jápintas, continuando com o relato dos encontros que recentemente vivera com o casal, lá para os lados de S. Pedro de Moel.

- E depois?! Podia andar na limpeza e apetecer-lhe mandar um mergulho! – considerou Pisca-pisca em defesa do casal que tinha como amigo.

- Nã! Nã! Essa já não pega! Eles estão a viver lá, num casarão à beira mar, e vieram-me outra vez com a fortuna do pai reaparecido! Não me vão dizer que se estavam a referir a este homem?!

Os olhos do velho Marçal brilharam com estas revelações. Afinal de contas a filha não andava longe dali.

O Abílio, farto do tema e do dia, dava os passos e movimentos que se mostram aos últimos fregueses da noite, mas não queria ser ele a preocupar-se com o desfecho pendente de encaminhamento do indefeso forasteiro.

- Vou ter de fechar a porta!

Marçal Marques ergueu-se, trémulo e lento e, enquanto tomava a direção da porta, perguntou:

- Fico a dever alguma coisa?

- Esqueça isso homem! Leve consigo este pão que sobrou e um pedaço de queijo que deve estar com fome!

Pisca-pisca e Jápintas vieram também para a rua prolongar a conversa habitual do copito a mais, hoje ainda mais justificada porque o tema era quente e, mais do que isso, pareciam dispostos a serem atores vivos deste capítulo da história.

Porque a porta do café tinha a soleira tangente à faixa de rodagem, atravessaram a rua para junto dum banco público que fica no passeio frente ao edifício da estação ferroviária. Após instantes de desencontro, Marçal aproximou-se dos dois e sentou-se a ouvir a conversa como um paciente em sofrimento que ouve os comentários da equipa médica.

Constatamos que os dois copinchas, apesar de não revelarem respeito pela figura menor do velho, abusando com o “tu”, estavam com sensibilidade suficiente para não o deixar ao relento, contrariamente ao Abílio que usando a segunda pessoa do “você”, fechou o café e a sua alma de comerciante, sem se questionar sobre o local onde o pobre diabo iria passar a noite.

- Como és o taxista deles, deves ter o número de um deles? Se não lhes ligares tu, ligo-lhes eu! A Francisca precisa de saber que o pai rico está aqui com fome e sem abrigo!

- Liga-lhe tu que eu não me atrevo a tanto! Já agora, como tenho as chaves da casa deles, pergunta-lhes se podemos lá deixar o homem a dormir.




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